Mais uma manhã normal no Brasil de 1985. Em Belo Horizonte, na manhã do dia 21 de outubro, é possível ver que várias crianças e adolescentes se encaminham para as escolas em seus uniformes e com suas mochilas pesadas. Adultos em seus carros ou nos pontos de ônibus seguem para mais um dia de trabalho. Os policiais, ainda na rua, finalizando suas rondas, porém bem menos do que nos anos anteriores, mas ainda haviam alguns. Tudo normal, como sempre fora.
A comprida rua, com vários comércios, dava acesso à escola. Era por essa via movimentada que um garoto vinha caminhando. Um jovem punk, calçando botas velhas, short jeans rasgado e a camisa do uniforme da escola. Seus cabelos pretos e bagunçados, de quem está começando a deixá-los crescer mas não os penteia sempre, junto de um rosto bonito porém com marcas de sono e um cigarro no canto da boca. Pedro Silva de Souza era um jovem rebelde, com seus 16 anos e uma repetência sendo cumprida na escola. Pedro segue para mais um dia na escola pública que, para ele, é mais um dia jogado fora. Segue despreocupado, mesmo com alguns dos policiais o encarando, aprendeu da pior maneira que é pior encarar de volta, então segue como se não os visse. Ajusta sua mochila, que contém somente um caderno para desenhos e um lápis grafite. A mochila serve mesmo é para guardar sua jaqueta jeans.
Na mesma rua, quase que pelo mesmo caminho, segue outro jovem, para a mesma escola. Um adolescente de 15 anos, com a cabeça totalmente raspada, calçando sapatilhas e uma calça branca e laranja, sem nenhuma combinação com o uniforme cinza. Tai Shio Tsugi é um jovem deslocado na escola. Filho de chineses, de uma família bastante tradicional, Tai Shio treina Kung-fu e Tai Chi Chuan com seu pai e estuda muito, tudo para deixar a família orgulhosa. A escola o considera um gênio! Enquanto segue para a escola, Tai Shio avista seu estranho amigo fumante. Ele se aproxima de Pedro e pega seu cigarro jogando-o no chão e apagando-o com uma pisada.
- Essa droga ainda vai te matar meu amigo!
- Porra, Japa! Essa parada é cara! – reclama Pedro – E vê se larga do meu pé, ainda mais de manhã…
- Existe uma diferença entre japonês e chinês, mas nem desenhando você entende, não é Pedro!? - uma voz feminina, melodiosa, porém firme, vem do lado dos jovens.
Uma amiga em comum os encontra, talvez a responsável por essa estranha amizade. Rebeca Vasquez Neto é uma linda garota, com seus 15 anos e físico atlético. Filha de educadores físicos e montanhistas, está sempre pronta para alguma atividade física, com seus tênis brancos, short justo e alegria eterna, o que deixa Pedro, às vezes, bem irritado. Rebeca tem uma pele morena, olhos cor de mel e cabelos castanhos, o que sempre arranca um suspiro de Tai Shio, que é apaixonado por ela.
- Não encham o saco, os dois. – Pedro reclama novamente, enquanto arruma a mochila de uma alça só e pega outro cigarro em seu bolso.
Pedro segue na frente de seus amigos, indo direto para a escola. Tai Shio e Rebeca respeitam o espaço de Pedro. Eles sabem que ele tem uma filha, Ana Luiza, que tem a saúde muito frágil. Ana Luiza ainda tem 6 meses e Pedro não mora com a mãe de sua filha, como ele mesmo diz, foi apenas uma noite. Porém, ele registrou a criança e, em noites que ela não está bem, ele acaba ficando para ajudar a cuidar de sua filha. Talvez seja por isso o mau humor, eles pensam.
Os dois também seguem para a escola e, assim que entram, encontram a bagunça de sempre. Alunos em todos os lados, conversando alto, andando e até correndo. Pedro desaparece no meio dessa bagunça. Rebeca avisa a Tai Shio que vai ao banheiro antes da aula e se despede com um beijo no rosto dele. Novamente Tai Shio está sozinho, mas por pouco tempo.
Do meio da bagunça, aparece um jovem bem alto e magro, da mesma turma, com 15 anos. Um garoto negro, com olhos bastante escuros e cabelo bem baixo. Leonardo Barbosa é o mais normal de todos, mas compensa isso sendo o mais implicante da escola! Praticamente conhece todos da escola e se gaba por ser um grande galanteador. Ele carrega um pequeno livro na mão esquerda, que usa para dar um tapa na cabeça de Tai Shio.
- Fala Japão! Como anda o gênio da nossa querida e amada escola? – fala Leonardo logo após bater na cabeça de Tai Shio com o livro, em um tom de ironia.
- Não sou o Japão e muito menos japonês! Também não sou um gênio, então não posso responder a sua pergunta. – responde Tai Shio de forma áspera.
- Nossa, parece que dormiu junto do Pedro. E a noite não foi boa…
- Vai se ferrar Leonardo!
- Calma aí, Tai Shio. Nós somos amigos, cara! – Leonardo fala com uma voz suave e tenta abraçar Tai Shio.
- Nunca fomos amigos. É só uma infeliz coincidência nós sermos da mesma sala desde os 7 anos. – Tai Shio responde enquanto sai do abraço de Leonardo.
- Falando assim você me deixa triste… Guarda o meu lugar na sala, Japão! – Leonardo grita enquanto Tai Shio segue em direção a sala de aula.
Quando entra na sala a cena é a mesma. Seus colegas conversando alto, alguns sentados nas mesas, alguns fumando e até um casal se beijando no fundo da sala. Mas nenhum sinal de Pedro. Tai Shio se perde em seus pensamentos por um segundo, quando alguém belisca sua bunda.
- Para um lutador essa bunda deveria ser mais treinada!
A voz é feminina, mas cheia de autoridade. Ele sabia de quem era, apenas uma garota da turma se comportava daquele jeito, provocando a todos. Bárbara Cunha Perez era da tribo de Pedro, uma roqueira. Cabelos longos, cheios e loiros, maquiagem pesada, calça jeans rasgadas no joelho e tênis sujos. Mesmo assim, era uma das garotas mais bonitas da escola. Uma menina de 15 anos, com um corpo magro e atlético, que mais parecia uma mulher adulta.
- Anda broto, ou pretende não deixar mais ninguém entrar?
- Não precisava disso Bárbara. – reclama Tai Shio, enquanto se afasta da porta e caminha para o fundo da sala – Você viu o Pedro?
- Não, porquê? Treta com a filha?
- Parece que sim. Ele estava muito mal humorado. – fala enquanto arruma a sua mesa e cadeira.
- Olha lá – Bárbara fala apontando para a porta –, independente do que for, o zé mané do Leonardo vai acabar inventando alguma história.
Leonardo entra na sala, com um dos braços por sobre os ombros de Rebeca e o outro gesticulando alto. Bárbara se vira e começa a falar sobre música com outro colega dela e, novamente, Tai Shio está sozinho. Ele espera por Pedro, mas seu amigo não aparece, assim como o professor. Tai Shio pensa em falar com Bárbara, mas ela não pára de falar de pratos de bateria e seus preços. Infelizmente Rebeca está do outro lado da sala, com os amigos de Leonardo. Tai Shio não é um adolescente depressivo, mas não importa onde esteja, ele sempre se sente sozinho. Então ele aguarda.
Depois de uns 10 minutos de espera que, para Tai Shio, mais pareceram com horas, Pedro entra na sala, com a cabeça baixa e, logo atrás dele, um homem branco, de sobretudo preto e cabelos longos e um pouco grisalhos, carregando uma pasta preta. Pedro segue até o fundo da sala, na carteira logo atrás de Tai Shio. Ele se senta rapidamente, jogando a mochila por cima da mesa e se deitando em cima dela.
Tai Shio faz menção de se virar para falar algo com Pedro, porém o homem que entrou na sala e não falou nada, colocou a sua pasta sobre a mesa fazendo um pouco de barulho, muito mais do que se colocasse com calma a pasta, porém muito menos do que se a jogasse. Os alunos começam a ficar em silêncio aos poucos e o homem fica parado, esperando.
- Bom dia a todos! – a voz do homem é rouca, áspera, forte – Bem, como todos já devem saber, o professor de História de vocês teve que sair de licença, logo, eu irei substituí-lo nesse último trimestre. Meu nome é Dave LerChandu e, sim, não sou brasileiro. Mas isso é para outra hora.
O professor aparenta ter por volta de uns 40 anos, mas parece ter uma energia de um jovem de, no máximo, 20 anos. Ele anda um pouco pela sala enquanto fala e, quando se aproxima da mesa novamente, ele tira o sobretudo. Quando ele coloca o sobretudo sobre a mesa, um barulho estranho é ouvido, como se houvesse algo de metal em um dos bolsos do sobretudo, mas antes que alguém pudesse falar algo, todos ouvem um barulho de alguém caindo no chão. Por algum motivo, Rebeca caiu de sua cadeira que estava inclinada para o lado. Vários alunos riram e alguns a ajudaram. O professor deu uma leve risada também.
- Você está bem, minha jovem?
- Estou, desculpe. A cadeira deve ter escorregado. – Rebeca está claramente envergonhada, porém algo em seu olhar denuncia que ela não confia no professor. Ela se levanta rapidamente e volta para o seu lugar.
- Caso precise de alguma coisa, ou tenha se machucado, não sei, pode falar, ok? – o professor fala com um tom mais amigável agora, até abre um leve sorriso, numa tentativa fracassada de parecer uma pessoa sociável – Bem, como já sabem, o professor Herculano estava organizando uma festa de Halloween aqui na escola e, mesmo com seu afastamento, a festa ainda acontecerá. Não seria justo cancelar essa festa com menos de uma semana para a sua realização. – alguns alunos comemoram a notícia, mas não fazem muita bagunça e nem conversam muito. – Então, só para reforçar, a festa será aqui na escola, no próximo sábado, dia 26 de outubro, à fantasia, das 16 às 20 horas. Quem ainda não comprou o seu convite, pode providenciá-lo comigo. Acredito que essa seja a única pendência, então, tudo esclarecido, vamos à aula que já está atrasada!
Os últimos 25 minutos da aula foram interessantes. O professor Dave fala muito bem, deixando a aula mais leve. Tai Shio gosta bastante da aula, mas percebe que Rebeca não tira os olhos do professor, como se procurasse por algo, e Pedro fica muito inquieto, mas não fala nada.
A aula acaba, o professor pega seu material e se despede de todos. Assim que ele sai da sala, Tai Shio se vira para falar com Pedro e, ao mesmo tempo, Pedro se aproxima de Tai Shio, o que os coloca bem próximos. Antes mesmo de Tai Shio perguntar qualquer coisa, Pedro já começa a falar.
- Você também ouviu um zumbido? Por que esse professor estranho? Porque ele falou, de cara, que era estrangeiro? – Pedro estava claramente transtornado. Estava pálido e, agora, muito agitado.
- Ei, calma cara. Você não está achando que esse professor seja um espião? Não estamos em guerra para isso…
- Não seja ingênuo Tai Shio, falam que a ditadura já acabou mas isso não está colando não! Fora que essa treta da Guerra Fria pode muito bem ter vindo para cá e estar longe do fim… Só sei que desde que entrei na escola não paro de ouvir essa porra de zumbido e piorou com o professor aqui dentro.
- Cara, isso deve ser por falta de sono. Por falar nisso, sua filha está bem? Você parece que não dormiu de noite.
Não houve tempo de Pedro responder. Assim que Tai Shio finalizou sua pergunta, uma mulher entrou na sala, pigarreando muito alto e já dando ordens para abrirem os livros e cadernos. Era a megera professora de matemática, que amava Tai Shio mas odiava Pedro. Porém Pedro conseguiu responder a pergunta de Tai Shio de modo bem sutil e rápido – A Ana Luiza está bem.
Finalmente a aula acabou, todas as aulas acabaram. Enquanto Tai Shio organiza suas coisas, Bárbara e Pedro conversam sobre a banda e sobre música e Rebeca e Leonardo vão até o encontro dos três. Os cinco conversam um pouco, mas nem Pedro e nem Tai Shio falam do tal zumbido ou das teorias da conspiração de Pedro, eles estão tirando sarro da cara de Rebeca que caiu da cadeira na primeira aula do dia. Rebeca fica envergonhada, mas não conta o motivo de sua queda.
Quando chegam na saída da escola, começam a ouvir muito barulho e algumas pessoas gritando “Briga, briga, briga!”. Quando chegam fora da escola conseguem ver o que está acontecendo. Um colega deles está brigando com outros 5 garotos na porta da escola. Mesmo com a boca e o supercílio esquerdo sangrando, Alexandre permanece de pé e encarando os outros garotos.
Estranhamente um forte instinto para ajudar o amigo nutre Tai Shio, Pedro e Leonardo que, literalmente, vão à luta. Bárbara faz menção de ir também, mas Pedro e Tai Shio jogam em cima dela suas mochilas, dando tempo só de ouvir um belo palavrão: – Seus filhos de uma puta!
Pedro é até um jovem bom de briga, um ano mais velho que todos seus amigos e com um treinamento que somente a vida e os namorados de sua mãe poderiam lhe dar. Ele então pula no meio de todos, empurra um dos jovens que estava para atacar Alexandre pelas costas e lhe dá um belo soco na boca. O soco pega em cheio e o jovem cai com o impacto e parece desmaiado.
Leonardo não é tão agressivo quanto Pedro, mas gosta de se exibir. Ele empurra um outro rapaz e o chama para brigar. Leonardo sabe o básico de boxe, o que o faz se esquivar de um soco do garoto e o deixa bem em posição de acertar um lindo gancho no queixo dele. O rapaz simplesmente cai nocauteado no chão, assim como um de seus dentes. Leonardo logo se vira com um sorriso no rosto.
Tai Shio, ao contrário de seus amigos, treina Kung-fu e Tai Chi Chuan com seu pai todos os dias desde os cinco anos de idade. Lutar é natural para ele, porém, como ditam os ensinamentos de seu pai, deve ser evitado ao máximo. Quando ele entra no círculo, um dos rapazes estava para acertar um soco na lateral do rosto de Alexandre, mas Tai Shio o impede, usando de um movmento de Tai Chi Chuan, onde empurra o braço do garoto para o lado e depois o corpo do mesmo. Ele posiciona uma das mãos espalmada para o rapaz e tenta falar com ele.
- Pára com isso cara. Isso é desnecessário e você poderá se machucar muito aqui!
Essa atitude pacifista custou caro. Tai Shio sente uma forte pressão na cabeça, algo que nunca sentiu antes. Sua mão também aquece de uma forma nem um pouco normal ou natural. Porém, o rapaz pára. Ele olha para os seus companheiros caídos e decide sair correndo, fugindo da briga. Assim que ele sai, um filete de sangue escorre pelo nariz de Tai Shio e ele cai de joelhos, bastante tonto.
Alexandre é um rapaz estranho. Todos sabem que ele luta caratê e que é bastante antissocial. Provavelmente não possui amigos na escola, apenas colegas que as vezes ele conversa. Mas ninguém imaginaria que ele fosse de arrumar briga e muito menos ser tão bom. Rapidamente ele ataca um dos seus agressores, tirando a mão de defesa do seu oponente e acertando um soco reto no nariz dele. Enquanto o rapaz cambaleava para trás ele já avança no outro, que tenta acertar um chute, mas Alexandre desvia e acerta um soco bem no peito do rapaz, derrubando-o no chão.
O rapaz caído tenta rastejar para trás, enquanto vê seus amigos caídos. O que foi atacado por Pedro sai correndo, ficando no chão somente os dois que desmaiaram. Ele levanta e corre também, enquanto grita.
- Vai ter volta. Não acabou aqui não!
Leonardo faz menção de correr atrás dele, mas Alexandre o impede.
- Deixa para lá, depois eu resolvo isso. – Alexandre fala calmamente enquanto pega sua mochila – Valeu pela ajuda, mas acho melhor sairmos daqui também.
Quando Alexandre fala isso, eles ouvem um apito. Todos os alunos que estavam na bagunça saem correndo. Quatro policiais, com armas em punho vem em direção à porta da escola. Alexandre sai correndo, deixando seus colegas para trás. Leonardo pega Tai Shio pelo braço e o leva para dentro da escola. A polícia chega e o tumulto acaba. Eles olham para Pedro e perguntam:
- Ei rapaz, o que aconteceu aqui? Esses pretinhos tentaram assaltar alguém?
Não é do feitio de Pedro se controlar, mas dessa vez ele conseguiu – Não sei senhor policial. Quando cheguei já estava formada a bagunça e logo os senhores chegaram. Eu não sei o que aconteceu e nem quem são esses meninos.
- Você estuda nessa escola? – perguntou outro policial.
- Estudo sim.
- Eles são alunos? – pergunta apontando para os dois rapazes desmaiados.
- Não que eu saiba. – Pedro consegue controlar a situação.
- Não precisa perguntar muita coisa não. Tá na cara! Dois jovens negros tentaram assaltar algum aluno da escola que revidou. Vamos levar esses pivetes daqui.
Os policiais guardam suas armas e pegam os rapazes do chão, dando alguns tapas no rosto deles para que acordem. Pedro vira as costas e entra na escola.
- Porcos racistas malditos! – exclama baixo Pedro.
- Que lindo, não sabia que era ativista, Pedro. – Rebeca fala com um tom de sarcasmo.
- Não sou ativista, só não gosto que julguem as pessoas assim de cara. Isso é ridículo!
- Calma, cara. Infelizmente é assim que as coisas são. Ainda bem que era você lá fora e não eu. Eles não iam acreditar muito em mim. – Tai Shio fala enquanto limpa o nariz sangrando – Imigrante também não vale muito, em lugar nenhum.
- É para ficar comparando o tamanho da desgraça de cada um? Se for isso vamos imaginar eu lá fora então… – argumenta Leonardo, que também é negro.
- A professora Gelta adoraria esse papo sobre globalização. Usem dessa raiva para passar em geografia! – completa Bárbara.
Pedro dá um tapa de leve no ombro de Leonardo. Todos riem um pouco e ajudam Tai Shio. Depois cada um segue para sua casa.
Tai Shio chega em casa, que está vazia. Seus pais estão trabalhando na padaria, ao lado. Ele vai até o banheiro para ver o que aconteceu. Não há marca de que ele apanhou nem que ele atacou alguém. Nada que explique o sangramento do nariz. Sua blusa está um pouco suja de sangue, mas, com certeza, sua mãe conhece alguma receita caseira para tirar essa mancha. Ele se sente estranho. O que ele fez naquela briga que fez com que o garoto fugisse? Seria intimidação? Ou tudo que seu pai fala sobre o poder dos espíritos e da crença, do chi, realmente é verdade? A cabeça de Tai Shio ainda dói e ele decide se deitar. Tudo ainda está muito confuso.
O dia acaba e um novo dia se inicia. Emmily Santos de Souza é uma garota muito branca, de olhos verdes e cabelos pretos com duas mechas loiras na frente, a cor natural do seu cabelo. Sempre se veste totalmente de preto, bem ao estilo das bandas de pós-punk, mas com uma pegada diferente. Ela calça suas botas pretas, por cima de uma calça jeans preta e surrada. Sobre a blusa do uniforme, veste uma jaqueta de couro. Usa uma maquiagem pesada, com sombra preta, batom bem vermelho e as unhas pintadas de roxo. Como um ritual, antes de sair para ir para a escola, ela vai até a geladeira e marca no calendário a data: 22 de outubro de 1985, terça-feira. A única coisa que deixa Emmily feliz é estar no controle, logo, situações que podem deixá-la fora do controle são evitadas, como por exemplo, interações sociais.
Ela segue até a escola a pé, uma caminhada de aproximadamente 30 minutos, mas ela prefere isso do que ter que ouvir de seu pai sobre as suas roupas e o quanto isso era ridículo para uma mocinha de família como ela. A escola podia ser chata, mas era melhor do que ouvir de seu pai sobre o seu comportamento social não aceitável pelas leis de Deus.
Como sempre, a escola estava uma bagunça na entrada. Muitos adolescentes juntos sempre gera confusão. Emmily encosta na parede do outro lado da rua e, assim que coloca um cigarro na boca, um gesto nobre acompanhado de uma voz conhecida vem para lhe deixar um pouco mais calma.
- Bom dia, garotinha linda! – disse Pedro enquanto aproximava um fósforo acesso do cigarro de Emmily.
- Bom dia meu caro colega fumante. – retruca Emmily, após dar um primeiro trago no cigarro – Como andam as coisas com a mãe da sua filha?
- Bem, eu não sei. Só vou até a casa dela para visitar a minha filha. Mas essa pergunta me pareceu ter um tom de ciúmes… – Pedro ri ao falar isso e pega o cigarro de Emmily para fumarem juntos.
- Vá se ferrar! É que meu pai me disse que você passou o fim de semana na casa da sua ex namorada, então fiquei curiosa.
- Não veio à aula ontem mas ficou sabendo da minha vida… Acho que você me ama! – exclama Pedro, enquanto solta uma leve cortina de fumaça em direção a Emmily.
- Por favor pessoas, vocês vão morrer com essa porcaria! – como sempre Tai Shio chega recriminando o comportamento de seus amigos.
- Tudo culpa do Pedro, eu sou inocente em tudo! – Emmily aproveita que o cigarro está na mão de Pedro e levanta as mãos para Tai Shio.
- Vocês dois nunca vão aprender. – Tai Shio fala com tristeza, mas logo se vira para Emmily – Porque não veio ontem?
- Sabe como é… Estava indisposta.
O sinal da escola soa e os portões finalmente são abertos. Aquele aglomerado de alunos começa a entrar na escola. Os três preferem entrar por último, sem precisar passar pela bagunça toda. Nesse momento Tai Shio tira da mochila uma carta e começa a falar com os amigos.
- Vocês não imaginam o que está para acontecer! A embaixada chinesa aqui no Brasil está reunindo um grupo pequeno de pessoas que seguem o budismo para fazerem uma visita técnica até o incrível Monastério de Zaem Jáo! Poucos foram selecionados porque precisa dominar o cantonês, mas meus pais me ensinaram desde criança, então eu devo ir! Muito melhor do que passar o carnaval aqui em Belo Horizonte.
- Você vai para a China no carnaval? Mas os seus pais não fugiram de lá? – questiona Emmily enquanto pega sua mochila do chão e se arruma para entrar na escola.
- Sim, mas essa será uma visita guiada. Além do mais, a embaixada chinesa não vai sofrer com os bloqueios do governo. Estamos indo para falar bem do país, então é bom para eles!
- Eles estão é procurando as pessoas que fugiram para matar todos! Escuta o que te falo, essa tal Guerra Fria está longe do fim, não é como os professores vem falando. – completa Pedro enquanto os três seguem em direção à entrada.
Dentro da escola estava a mesma bagunça de sempre. Os três seguiram juntos até a sala de aula e se sentaram, ainda conversando sobre as teorias da conspiração de Pedro sobre a Guerra Fria, dessa vez citando o professor Dave.
Tudo foi normal, exceto que nem Alexandre e nem Leonardo apareceram na escola. Pedro não viu o professor Dave, mas falou bastante dele e sobre o zumbido que ouvia enquanto estava na escola.
Todos foram para casa ao término da aula. Pedro passou em casa rápido, como sempre. Almoçou e seguiu para a oficina mecânica perto de casa, onde ele trabalha. Pretendia ficar até tarde, como de costume, mas a mãe de sua filha ligou para a oficina. Ela avisou que estava indo ao hospital com a criança, porque ela estava com uma febre muito alta que não queria baixar de jeito nenhum. Pedro foi para casa, tomou um banho, trocou-se e foi para o hospital também.
Foi somente no hospital que Pedro foi saber da gravidade do caso. Ana Luiza, sua filha, estava com 41ºC de febre e ficou praticamente o dia todo chorando ou dormindo. A criança de apenas 6 meses foi colocada no soro e monitorada. A febre realmente não abaixava e a criança não se mexia, somente a respiração e o coração continuavam ativos. Ficava desse jeito durante umas duas horas, quando de repente acordava chorando alto e a febre começava a baixar, mas isso durava pouco menos de 30 minutos, quando a febre subia rapidamente e a criança novamente dormia.
Foi assim a madrugada toda, até as 5 horas, quando tudo normalizou. A criança acordou como se nada tivesse acontecido, querendo mamar. A febre sumiu e qualquer outro sintoma estranho também. Os exames, colhidos durante a madrugada, ainda estavam sendo analisados, por esse motivo os médicos pediram para que a criança e a mãe ficassem por mais um dia no hospital. Pedro voltou para casa. Hoje não era um bom dia. Pedro decide ficar em casa.
Nesta quarta-feira era dia de Educação Física, uma aula tão amada por alguns e odiada por outros. O professor de Educação Física é um homem rígido, que exige que todos os alunos façam alguma atividade. As aulas são bem completas, com alongamentos, atividade física e até aulas teóricas sobre os esportes jogados. Leonardo e Tai Shio vão jogar futebol, Bárbara e Emmily vão jogar handebol, enquanto que Rebeca vai jogar vôlei.
A aula seguiu como sempre. Todos jogaram seus jogos preferidos, responderam à chamada e foram para os vestiários, para se trocarem. Bárbara e Emmily vão juntas para o vestiário mas não encontram com Rebeca. As duas entraram conversando, como sempre com pressa pois demoraram para pegar suas coisas. Emmily entra na frente de Bárbara e acaba vendo uma menina se trocando. Ela estava colocando a calcinha quando sua toalha caiu e deixou suas costas expostas. Emmily pôde ver de relance que as costas da garota estavam meio que arranhadas, mas não pareciam arranhões de unhas, pareciam mais com chicotadas. Além de sua coxa esquerda estar com uma marca bem profunda e roxa. Foi tudo muito rápido, quando a toalha caiu a menina pegou e viu as duas, ela se enrolou na toalha e correu para outra parte do vestiário, trancando-se dentro de um box.
- Você por acaso viu as costas daquela garota, Bárbara?
- Na verdade não, só vi que a louca saiu correndo e eu não entendi foi nada.
Emmily vai até o box fechado e bate na porta, com delicadeza.
- Ei colega, tudo bem com você? Eu sou a Emmily, a garota estranha do colégio.
A única coisa que se ouve são barulhos de bolsa e de roupas. Mas de repente a porta abre violentamente e a garota sai correndo de dentro do box. Sem querer ela esbarra com força no ombro de Emmily, mas não pára para pedir desculpas, simplesmente vai embora quase que correndo.
- Ei, deixa o meu ombro, eu só quero ajudar! – exclama Emmily.
- Aquela não era a Marisa? – indaga Bárbara.
- A carola? Não acredito!
- Sim, era ela. Ela é muito bonita, mas só usa uns vestidos estranhos e tal. Nunca pensei que ela fizesse Educação Física.
- Nunca pensei que ela fizesse sexo! Devia ter visto as costas dela, parecia uma arte moderna sadomasoquista! – espanta-se Emmily, enquanto segue até os bancos.
- Do que você está falando? A safada daqui é você, essa menina é mega religiosa. Coisa esquisita.
- Deixa ela pra lá. Tentei ajudar e tomei uma ombrada. Vida que segue! – Emmily tira a blusa e começa a se despir para tomar uma ducha rápida.
- Pois é, vamos rápido porque senão vamos receber outra advertência. – Rebeca também tira as suas roupas e corre para a ducha.
As duas tomam sua ducha rápida e trocam de roupa. Em menos de 20 minutos estão prontas e são as últimas a saírem da quadra. Seguem para a saída da escola e seguem para suas respectivas casas, relativamente próximas uma da outra.
Pedro, que estava dormindo até o momento, acorda com vozes altas e coisas quebrando em casa. Ele olha para o relógio e vê que já são 14 horas. Dormiu mais do que devia, terá que, novamente, fazer hora extra na oficina mecânica. Ele já está acostumado com as brigas da sua mãe com seu namorado, então ele não se preocupa tanto. Troca de roupa, ajusta sua mochila e sai do quarto, para se arrumar e ir trabalhar.
- Que coisa linda de se ver, a princesa acordou de seu sono profundo? – Téo é o novo namorado de sua mãe. Um homem alto, careca, machista e, claro, alcoólatra. Tudo que sua mãe parece amar, todos os últimos namorados dela seguiram esse padrão.
Pedro não liga para a provocação. Ele sabe que será muito pior. Simplesmente segue em direção ao banheiro para escovar os dentes.
- Eu estou falando com você, sua mocinha. Quando o homem da casa fala os outros prestam atenção! – vocifera Téo.
Pedro continua seu caminho, mas agora ele levanta a mão por sobre o ombro e levanta o dedo médio para Téo - Falta muito para você ser considerado como um homem, Téo. Muito mesmo.
- Não tem medo de morrer, seu merdinha? – Téo grita enquanto arremessa um copo que estoura na parede, bem ao lado da cabeça de Pedro.
- Cara, você é maluco? – Pedro ruge. Ele solta a mochila no chão e enrola a corrente que usa na carteira em sua mão direita e avança em direção à Téo.
Enquanto avança, com uma raiva insana no olhar, sua mãe entra no meio dos dois e empurra Pedro pelo peito.
- Por favor filho, tenha respeito com o Téo.
Pedro parece não entender o que sua mãe está dizendo. Ele fica extremamente confuso e faz uma cara de nojo.
- Como você aguenta esses porcos? Quer saber de uma coisa, fodam-se os dois. Eu fui! – Pedro pega sua mochila no chão e sai da casa, extremamente irritado.
Enquanto saia, Téo abria mais uma garrafa de cerveja e bebia no bico da garrafa mesmo.
- É bom sair mesmo, sua mocinha. Tá achando que eu vou aguentar um vagabundo dentro de casa? – Téo continua falando na porta da casa de Pedro, enquanto sua mãe tenta levá-lo para dentro.
Pedro sai sem pensar em muita coisa, somente em nunca ser como seu pai, que abandonou sua mãe na primeira oportunidade que teve, ou como os namorados dela, que abusam dela, a agridem e até mesmo roubam dela. Uma lágrima escorre pelo rosto de Pedro, mas rapidamente ele a limpa, pegando um cigarro e seguindo para a oficina. Lá ele poderia escovar os dentes em paz.
Como não pretendia voltar para casa, Pedro acabou dormindo na oficina e faltando a aula na quinta-feira, de novo. Além de precisar pagar as horas em que não foi trabalhar, não tinha cabeça para a escola e nem para os seus amigos. Não por hoje.
Na escola, tudo continua como sempre. As aulas começam e tudo segue normalmente até a hora do intervalo. Nesse momento, quando Emmily está sozinha, saindo do banheiro, Marisa aparece perto dela. - Oi. Queria conversar com você, rapidinho pode ser? – pergunta Marisa. - Puta merda, que susto menina. Sempre no banheiro, mas que tara, em. Pode falar. As duas entram no banheiro, que está vazi
Na manhã de domingo Pedro teve que ser ágil. Deixou um bilhete para Emmily e saiu pela janela, antes do pai de Emmily acordar. Ele nunca acreditaria que os dois só dormiram juntos, muito menos no que aconteceu depois da explosão na escola. Ele segue para a oficina, ainda precisa trabalhar e é bom não pensar no dia anterior. Porém não deu para fazer muito. A única coisa que as pessoas conversavam na rua era sobre a explosão na escola. Já era notícia! Pedro foi para a oficina, trabalhar, mas o pessoal ficava perguntando muito o que tinha acontecido e coisas do tipo. Ele sabia que não devia falar do professor e nem de Alexandre, então simplesmente respondia que não sabia o que houve, somente que uma parte do segundo andar da escola havia explodido e ele e os amigos foram embora correndo.
Na segunda-feira, dia 04 de novembro, todos vão para a aula normalmente. Porém, já dentro de sala, no último horário do dia, Pedro avisa para Tai Shio que ele está escutando o maldito apito na sua cabeça. Assim que Pedro finaliza sua fala o professor Dave LerChandu reaparece na porta da sala, para mais uma aula de História. Seu semblante estava diferente, não havia aquela estranha tentativa de ser simpático. Parecia mais com algum misto de raiva com cansaço, bastante semelhante com algumas das vezes em que Pedro se encontrava. O professor entra sem falar nenhuma palavra e vai direto para sua mesa, onde coloca sua
A semana passou, pesada e cheia de complicações, mas passou. Os amigos conseguem combinar de se encontrarem em um bar do lado da escola, na sexta-feira a noite. Todos se encontram e conversam bastante, um pouco sobre tudo, porém são atrapalhados várias vezes por pessoas que sabem que eles são estudantes da escola e que sobreviveram ao que foi chamado de “Massacre Comunista”. A mídia, manipulada pela ditadura, conseguiu unir o fato de dois homens nus estarem mortos dentro de uma escola, junto de 16 adolescentes também mortos, como uma forma de protesto da esquerda comunista. A história apresentada é que três homens invadiram a escola no final da aula e, nus, massacraram os adolescentes, usando de armas de corte pesadas e espadas. Term
A sexta-feira de todos foi relativamente tranquila, sem saídas e sem encontros. Pedro tenta conversar com Emmily, mas não a encontra em casa, ou simplesmente o seu pai não quis que ele a visse, é uma possibilidade. Pedro ainda está na oficina, mas precisará passar em casa logo, suas roupas estão acabando e ele precisa pegar novas. Lavar roupas no tanque não é divertido e demora muito mais para secar.O sábado iniciou normalmente. Pedro pegou um serviço bastante complexo e demorado, mas que vai render uma grana extra muito bem-vinda. Esse serviço o deixará ocupado durante alguns dias. Um carro da década de 50 veio para ser todo reformado,
Na terça-feira, Emmily acorda bem cedo. Estranhamente cedo, ainda estava amanhecendo. Ela se levanta e vai até o banheiro. Lava o rosto e se olha no espelho. Então ela lembra da reunião do dia anterior, do seu momento com Marisa e algumas coisas lhe vem a memória. Emmily volta correndo para o quarto e pega um caderno e uma caneta. Ela se senta na sua cama e começa a relembrar todos os fatos da reunião e a anotar alguns. O primeiro é sobre Anaã e sua assistente sem nome. Ambos muito pálidos e a menina tinha a pele muito fria. Emmily não se le
Rebeca chega na casa de Tai Shio por volta das 14:00 horas. Ela toca a campainha e quem atende é Emmily. Rebeca se assusta, mas corre e dá um abraço na amiga. Então começa a chorar. - O que foi amiga, por que está assim? O que aconteceu? – questiona Emmily. - Tudo aconteceu. Você sumiu, um lobisomem matou os nossos colegas, o Pedro acha que somos loucos e eu tenho certeza que estou ficando louca. – Rebeca fala alto, enquanto chora. - Acalme-se Rebeca, você não es
A mãe de Tai Shio não fala nada com o filho. Ela finaliza as tarefas diárias sem esboçar nenhum sentimento. Ela prepara o jantar para a família e não fala sobre o que aconteceu a tarde, Tai Shio também não comenta nada com o seu pai. Ele acredita que sua mãe está com muita raiva e alimentar essa raiva não é bom. Ele conversará com o seu pai outro dia.Rebeca chega em casa. Ela não passou na casa de Bárbara, pretende passar no outro dia. A