Benicio

                - Acho que precisamos conversar. – falei entrando na cozinha onde Júlio estava fazendo um café. O que tinha dado na minha cabeça?

                - Não precisa falar nada. – ele respondeu virando o corpo na minha direção – Foi um deslize, não é? Casual. – a voz dele era desprovida de raiva, que eu entenderia se ele estivesse sentindo.

                - Júlio, eu... – tentei encontrar palavras para o que eu tinha feito, mas não sabia como descrever. Por que eu tinha corrido ali? Para camuflar a chateação que eu estava sentindo? Isso era horrível. Eu tinha usado ele.

                - Tudo bem. – ele se aproximou e apoiou a mão no meu ombro – Eu entendo que você não agiu racionalmente quando veio aqui. Somos amigos e isso que aconteceu foi apenas... – ele procurou as palavras olhando ao redor – uma parte um pouco colorida da amizade. – suspirei para ele – Não estou esperando que retomemos o relacionamento.

                - Foi um erro. – reclamei.

                - Não. – balançou a cabeça enfaticamente – Foi ótimo. Para nós dois. E a amizade continua. Agora senta e toma um café comigo.

                Sentei sem protestar. O mínimo que eu podia fazer era não sair correndo logo em seguida de ter me jogado nos braços dele. Eu devia agir com um pingo de decência.

                - É outro cara? – ele perguntou de repente após longos minutos de silêncio.

                - O que? – perguntei surpreso - Não. – neguei.

                - É uma mulher então? – ele estava disposto a tirar alguma informação de mim.

                - Não temos que falar sobre coisas assim. – eu não queria magoar seus sentimentos.

                - Tudo bem, me conta. – insistiu tomando mais um gole do café – Estamos separados há mais de um ano, não vai me chatear.

                - Se você insiste. – coloquei a xícara na mesa – Conheci uma garota na festa de aniversário de pijama louca que minha irmã deu e me ofereci para levar ela para casa.

                - E aí vocês ... – ele escolheu as palavras – Dormiram juntos?

                - Não, não, não... – chacoalhei a cabeça sorrindo – Fomos a pé e então sentamos por um instante numa praça e nos beijamos.

                - Loucamente, não é? – ele deu um pequeno sorriso.

                - Sim. – confirmei um tanto constrangido – Levei ela para uma rua mais escura e nós dois... – me interrompi, lembrando dos nossos corpos colados.

                - Sexo na rua? – ele levantou as sobrancelhas.

                - Eu não fiz nada com ela. – protestei, revirando os olhos – Mas ficamos bem animados ali e então eu interrompi e a levei embora. A despedida foi um tanto estranha e aí eu decidi ir até a escola no dia seguinte para tentar falar com ela.

                - Escola? – ele se surpreendeu.

              - Não acabei de falar que conheci na festa da minha irmã? – questionei levemente irritado.

              - Menor? – ele perguntou com cuidado.

               - Não, ela tem dezoito anos. – revirei os olhos outra vez – O ponto é que vi um garoto falando com ela e pensei que era o namorado, então fui embora, depois ela me encontrou sentado na praça onde ficamos e meio que discuti com ela por causa do cara.

                - Você foi se lamentar? – o sorriso de Júlio era sarcástico.

                - Aí ela me beijou. – continuei sem me importar com a provocação dele – E eu fui embora feito um idiota. – passei as mãos pelo rosto – E hoje cedo resolvi ir até a casa dela para finalmente parar de ser idiota e conversar com ela feito adulto.

                - Deixa eu adivinhar. – ele ergueu uma mão me interrompendo – E aí você flagrou o tal carinha lá?

                - Sim. – confirmei apoiando os cotovelos na mesa – Estava saindo naquela hora, com roupa amassada, cara de sono e de felicidade.

                - E você acha que eles ficaram juntos. – ele concluiu.

                - Você também teria visto. Ela estava descabelada. – gemi – A cara de sortudo dele não deixava margem para outra interpretação.

                - Benicio. – ele segurou minha mão – A garota não é nada sua, e você agiu muito estranho com ela. Não me espanta ela ter pulado na cama com outro. – olhei para ele com desanimo – Não porque ela esteja com raiva ou algo do tipo. Simplesmente porque ela é solteira, desimpedida e cheia de hormônios. – ele deu um meio sorriso – Se gosta dela, vá até lá e fale isso para ela. Deixe ela escolher.

                - Quem disse gostar? – eu ri.

                - Oras, tudo isso que você disse, somado com ter corrido para mim, só me mostra que você se apaixonou por ela.

                - Não, não, não... – me levantei balançando a cabeça – Isso é impossível.

                - Aparentemente não. – ele levantou – Sei que parece meio louco o que estou dizendo, acredite que eu também acho, mas você está agindo como um cara apaixonado. Se é paixonite ou amor cabe a você descobrir. – ele cruzou os braços.

                - Não. – balancei a cabeça em negação – Eu a conheci horas atrás, e só tivemos uma conversa decente. Eu só estou... – eu não sabia. Não sabia o que estava sentindo por Betina. Sentei novamente, pensando na possibilidade de estar apaixonado por ela.

                - Apaixonado. – Júlio concluiu por mim. – Você não estaria desse jeito se tivesse sido uma coisa qualquer. – ele sorriu – Com certeza não teria tido um ataque de ciúmes na porta de uma escola feito um adolescente.

                - Ciúmes... – repeti com uma risada sarcástica.

                - Não se faça de tonto. – Júlio colocou uma mão no meu ombro – Você sentiu ciúmes quando o garoto estava apenas conversando com ela, então imagino quando viu os dois juntos de verdade. – ele estava sendo empático de verdade comigo, e eu nem estava merecendo isso depois de ter vindo correndo para usar ele.

                - Me desculpa por tudo isso hoje. – estava me sentindo muito pior depois de contar o motivo por eu ter aparecido e agarrado ele do nada, logo depois de ter afirmado que éramos melhores como amigos.

                - Eu estou bem. – ele sorriu calmamente para mim – Não se preocupe.

                Levantei, sabendo que aquela conversa precisava acabar o quanto antes. Eu já estava abusando demais da compreensão de Júlio e ele tinha me dado material demais no qual pensar. Sair correndo mais uma vez atrás de Betina seria um erro, nas duas vezes em que eu tinha feito isso não tinha dado certo. Eu precisava pensar racionalmente e menos emocionalmente.

                - Preciso ir para casa.

                Júlio levantou e me abraçou apertado:

                - Espero que faça a coisa certa.

                Sai da casa com a cabeça a mil por causa de Betina, mas com o coração apertado pelo que tinha feito a Júlio. Mesmo ele afirmando várias vezes que estava bem, eu não tinha certeza se era verdade. Em algum momento ele deve ter imaginado que eu poderia ter decido reatar a relação mesmo tendo falado várias vezes que isso não ia acontecer. A esperança estava viva dentro dele, eu podia perceber por pequenas frases.

                Algumas horas após eu ter chegado em casa, Luisa me telefonou perguntando se eu poderia dar uma carona para ela e disse que sim. Seria bom não pensar em nada daquilo por um tempo e apenas ser o irmão mais velho. Poucas vezes eu tinha feito alguma coisa efetivamente por ela, mas todas as vezes que ela pediu, eu estava lá independentemente do que estivesse acontecendo comigo.

                Quando entrei na casa da minha mãe, Luisa estava me esperando toda vestida de preto, o que achei muito estranho. Ela sempre usava coisas coloridas e vibrantes. Franzi a testa para ela, confuso:

                - O que aconteceu com você?

                - É o velório da mãe de uma conhecida. – ela levantou e foi andando até a porta da frente.

                - Sério? – fui seguindo-a um pouco incomodado. Isso era o oposto da noite tranquila que pensei que iria ter.    

                - Óbvio. – respondeu secamente – Somos apenas conhecidas, mas a situação é muito triste para eu deixar de ir. – ela cruzou os braços, parando ao lado da moto – Ela perdeu o pai há alguns anos com câncer e agora a mãe sofreu um acidente horrível. Tipo, a família dela acabou.

                - Nossa. – entreguei o capacete em suas mãos – Isso é muito trágico.

                - Não vamos demorar, tá? – ela tentou me tranquilizar.

                Fui guiando pelas ruas desejando ter colocado uma camiseta preta em vez da branca. Luisa podia ter pelo menos me avisado a onde a gente ia, mas era a cara dela não fazer isso.               Quando estacionamos, vi vários adolescentes e muito poucos adultos ali. Decidi entrar com minha irmã e me sentar no canto mais discreto e longe de todos.

                Deixei que Luisa entrasse na frente e se juntasse a um grupo de garotas, seu grupo fiel, e notei quando Sarah ergueu o olhar esperançosamente para mim. Acenei amigavelmente e fui para o lado oposto. Tudo que eu menos precisava agora era que essa menina viesse novamente se declarar para mim, eu já tinha muitas coisas para pensar.

                Fui andando em meio as pessoas e acabei avistando o caixão rodeado por poucas pessoas, todas chorando, menos uma. Me espantei quando reconheci Betina com o olhar vidrado, parecendo quase outra pessoa, com os olhos terrivelmente secos e estáticos. Estava longe de ser a garota que eu lembrava intensamente das vezes que nos encontramos, não havia vida nenhuma nela. Estava completamente em choque.

                Minha ficha caiu. Era a mãe dela. Senti um peso dentro do estômago.

                Sem pensar muito, fui andando firmemente em direção a ela, desviando das pessoas que estavam entre nós dois. Ela só me percebeu quando eu estava muito perto e piscou muitas vezes, claramente confusa por eu estar ali, mas não se mexeu e nem disse nada. Eu também não disse nada, apenas a abracei com força.

                Num primeiro momento, ela ficou chocada com a minha atitude e permaneceu parada, em seguida sua cabeça se aconchegou em meu peito e seus braços retribuíram meu abraço. Fechei os olhos, decidido a ignorar o garoto loiro que estava bem ali ao lado, com uma expressão confusa.

                Depois de um longo minuto ela começou a chorar, primeiro baixinho, apenas um soluço, mas o choro foi aumentando. Eu podia sentir as lágrimas molhando minha camiseta, mas não me mexi e a mantive firmemente contra mim. Enquanto os braços dela estivessem fortes ao meu redor, eu não a soltaria por nada.

                Logo o choro chamou a atenção das pessoas por conta de sua intensidade, eu podia sentir a aproximação de outros corpos perto de nós, mas os ignorei totalmente. Apenas Betina importava.

                Abri os olhos e vi o garoto com uma expressão irritada, talvez imaginando que aquele lugar era dele e não meu. E Luisa estava completamente confusa com o que eu estava fazendo, parada ao lado de suas amigas com uma expressão de choque.

                Eu não sairia dali se a vontade não partisse de Betina.

                O garoto loiro se aproximou e tocou o braço dela. Evitei o olhar dele, por mais que ele estivesse claramente me encarando. Não era hora para cenas, nem da minha parte e nem da dele. Finalmente, diante do toque, os braços dela afrouxaram ao meu redor e eu deixei que seu corpo se afastasse de mim.

                Por um pequeno instante, nossos olhos se encontraram. Os dela estavam inchados e vermelhos. A tristeza era tão grande que eu senti vontade de puxá-la de volta para meus braços e segurá-la ali para sempre.

                - Obrigada. – ela sussurrou antes de se virar e seguir com o garoto loiro.

                Olhei ao redor por um instante, várias pessoas olhavam para mim, confusas. Me virei e segui para a porta a passos rápidos. Percebi Luisa correndo atrás de mim sozinha. Ótimo, hora de ir.

                - O que foi isso? – ela perguntou quando estávamos chegando na moto.

                - Condolências. – respondi secamente, tentando a impedir de falar qualquer coisa.

                - Fala sério. – ela não ia facilitar para mim – Vocês passaram uns dez minutos abraçados.

                - Não é da sua conta. – sentei na moto, decidido a bancar o irmão chato.

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