Capítulo 2

Capítulo 2.

Gabriela narrando.

Gabriela aos 18 anos de idade.

— Senhora, é sério. Não precisa perder o seu tempo comigo.

Apesar das minhas palavras, sei que não adianta argumentar com a Maria.

Felizmente, muito rapidamente aprendi qual era o meu lugar na vida do barão Solto Maior.

Eu sou tudo: a empregada da casa que não precisa de empregadas, a garota de recados e o pássaro de estimação que o barão deixa preso em uma gaiola.

Tudo o que não sou é sua filha.

Faz muito tempo que o seu desprezo por mim e falta de amor não me causam mais tristeza. Simplesmente me conformei com a realidade da minha vida e faço o melhor que posso com o que tenho.

Foi difícil quando eu era criança, mas a vida me moldou para ser quem sou e agora sei que está muito perto do dia em que pegarei os poucos pertences que tenho e então voltarei para o lugar de onde não deveria ter saído.

Eu sempre soube que o meu lugar não era em uma mansão luxuosa.

Não pedi para crescer onde cresci, mas nem mesmo a minha mãe me quis.

A única pessoa que deveria ter me amado e a única pessoa que amei, me descartou com facilidade. Nunca mais tive notícias dela.

Não sei se a mamãe está viva ou morta.

Ainda que eu carregue uma profunda mágoa dela, sei que teria ido procurá-la em algum momento nos últimos anos, o problema é que sempre fui vigiada e meu querido papai não permitiu nem mesmo que eu colocasse um dos meus pés para fora das terras.

Não sei nada sobre a vida e, aos dezoito anos de idade, não experimentei nada que uma garota como eu deveria ter experimentado.

Não fui a faculdade.

Não me formei.

Não tive a chance de me apaixonar.

Simplesmente não existo para qualquer pessoa além das minhas irmãs, minha madrasta, meu pai e os frequentadores da mansão do barão.

Ainda sonho com a liberdade, mas o meu espírito está cada dia mais abatido.

— Ei, menina.

De maneira delicada, a senhora Maria sacode o meu ombro.

Quando olho para ela, sinto dificuldade para enxergar o seu rosto bondoso, porque os meus olhos estão cheios de lágrimas e minha visão está embaçada.

Eu não sei porque faz tanto por mim quando é apenas a irmã mais nova da minha madrasta, que nunca escondeu o fato de não gostar de mim.

Embora meu pai tenha inventado uma mentira sobre como o seu coração foi bondoso quando decidiu pegar a filha do seu funcionário para cuidar, sua esposa certamente não acreditou na história.

No fundo, mesmo quando mantém a boca fechada para não confrontar o marido poderoso, a mulher sabe que sou filha biológica dele.

Marlucia sabe que sou bastarda e não só porque supostamente fui adotada.

A verdade está escrita nos meus olhos que, infelizmente, são iguais aos dele.

Quase todos a minha volta me odeiam, mas, preso por causa da ameaça que foi feita anos atrás pela minha mãe, meu pai biológico nunca teve coragem de me jogar na rua.

Passei a vida sendo um estorvo que ele teve que aguentar, mas duvido que continue com essa farsa agora que tenho dezoito anos de idade.

Sempre sonhei com a minha liberdade, todavia, como posso almejar conhecer o mundo quando não tenho onde cair morta?

Eu não fiz nada além de serviços domésticos e não tenho experiência com mais nada nessa vida.

Apesar de todos os seus esforços, o máximo que Maria conseguiu foi me ensinar a ler e a escrever.

Se não fosse por ela, nem isso eu teria.

— Por que você está estranha hoje? Conforme os anos foram passando, você foi ficando cada dia mais calada e retraída, mas estou sentindo que hoje está agindo diferente do seu normal.

— Hoje é o meu aniversário de dezoito anos — a minha voz é praticamente um sussurro, enquanto esperamos na fila da clínica.

Eu tenho as mãos entrelaçadas uma na outra e as palmas suadas de nervosismo.

É a primeira vez que saio na rua em muitos anos e não sei como me comportar. Mal consigo olhar para os rostos das pessoas que passam perto de mim.

Eu quase não me lembro mais de como socializar, essa é a verdade.

Fechei-me tanto dentro de mim mesma que as pessoas que me cercam, sobretudo todos os funcionários da mansão, desistiram de tentar se aproximar de mim há muito tempo.

Todos simplesmente desistiram.

Não posso julgar ninguém, não quando eu mesma desisti.

— Querida! Não deveria estar mais feliz? Afinal, não é todos os dias que uma mocinha linda como você completa dezoito anos de idade.

— Senhora… que razão eu tenho para me sentir feliz? Quantas vezes comemorei o meu aniversário nos últimos anos?

— Sei que sua vida não é fácil e você não faz ideia do quanto tento torná-la melhor, mas o meu cunhado simplesmente mantém aqueles olhos de águia em cima de mim e não me deixa fazer muito.

— Maria, a senhora faz por mim mais do que qualquer outra pessoa. Sempre serei grata.

— Seja grata se mantendo forte. Seja grata nunca deixando que a sua esperança morra, porque algo me diz que você ainda será muito feliz, minha pequena. Antes de partir, verei a sua felicidade.

— Não quero que fale em partir. A senhora ainda é muito jovem e vai viver muitos anos.

— Deus te ouça. Mas agora quero que prometa que vai deixar essa tristeza de lado e que voltará a ser a menina que sorria, mesmo sem ter motivos suficientes para isso.

— Eu prometo — falo apenas para fazê-la feliz, porque não tenho mais forças nem mesmo para fingir sorrisos.

— Gabriela Peri — a voz desconhecida de uma mulher interrompe a minha conversa com a única amiga que tenho.

Quando ergo a cabeça e seco as lágrimas que nem tinha notado que estava derramando, me deparo com a médica segurando uma prancheta e olhando para mim.

Pela primeira vez depois de muitos anos, a senhora Maria decidiu ousar um pouco mais em suas tentativas de me ajudar.

Primeiro ela me ensinou a ler e a escrever escondido do meu pai, minha madrasta e das minhas irmãs.

Ela também comprou algumas roupas e sapatos para mim no decorrer dos anos. Apenas por sua causa tive o que vestir.

Realmente não exagero quando digo que o meu próprio pai me odeia, tudo porque ele transferiu para mim a raiva que sente pela minha mãe por causa da chantagem que fez.

Ele não se preocupou em suprir as minhas necessidades mais básicas, nem mesmo no que tange a minha saúde.

É por isso que é a primeira vez que estou longe das terras do barão.

E a primeira vez que venho a uma clínica médica em muitos anos.

Maria não sabia que hoje é meu aniversário, porque nunca deixei a data escapar.

Sempre perguntou e nunca respondi até hoje.

Nunca foi importante, mas hoje algo me fez falar.

Se ela soubesse da informação, não teria me trazido para fazer exames de prevenção com a ginecologista justamente hoje.

Embora esteja um pouco assustada e com medo das pessoas, um lado de mim está feliz por ter finalmente constatado que ainda existe vida fora das terras do meu pai.

Ainda existe um mundo inteiro me esperando quando eu conseguir ser livre.

— Eu sou a Gabriela — digo com um pouco de insegurança, depois de quase um minuto inteiro em silêncio, apenas observando a doutora.

— Você pode me acompanhar? — Eu não sei a razão, mas ela está analisando algo na sua prancheta e me olhando de um jeito confuso.

Na verdade, há uma fila de pelo menos cinco pessoas esperando por seu atendimento.

Eu imagino que não deveria haver fila em uma clínica de luxo como essa, então provavelmente a doutora acabou se atrasando um pouco, o que atrasou também as consultas que ela tinha marcado.

Antes de me levantar e seguir a médica, olho para a senhora e ela acena positivamente para mim. Está tentando me acalmar com o olhar, dizendo sem abrir a boca que terei que entrar sozinha na sala com a médica.

— Vai ficar tudo bem, minha menina. É apenas um exame de rotina de prevenção.

Eu balanço a cabeça para ela e sigo em frente. Mais uma vez, não deixo de notar o quanto a médica morena parece aturdida e um pouco cansada.

Eu não sei nada sobre como exercer qualquer profissão, mas me pergunto se está certo que faça atendimentos quando parece fora de si.

No fim das contas, antes mesmo de entrar na sala com ela, tiro a ideia da minha cabeça. Eu sei que a doutora deve ser uma das melhores de Solari, ou então a senhora Maria não teria me trazido até ela.

Além do mais, quem sou eu para julgar o cansaço de alguém?

Assim que acordei, porque nos dias em que faço aniversário o barão me odeia mais do que em qualquer outro dia, é quando se lembra da minha existência e do dia em que nasci, ele exigiu que eu ajudasse o jardineiro a cuidar das flores, de todas elas.

Como o idiota que é, o homem se aproveitou que tinha a minha ajuda e fez com que eu trabalhasse mais do que ele.

Passei o dia quase todo debaixo do sol e agora no final da tarde o resultado é um cansaço que me leva a quase não aguentar o meu peso sobre as pernas.

Embora esteja tentando parecer levemente animada, mal estou conseguindo manter os meus olhos abertos.

Quando a senhora revelou que havia dito para o meu pai que precisava muito de mim para acompanhá-la em uma consulta importante com sua médica, não entendi o que estava querendo fazer, mas não argumentei, não com a única pessoa que se preocupa comigo.

Durante a viagem, explicou-me que estava na hora de fazer exames com a ginecologista, além do exame de sangue.

Ela realmente se preocupa comigo e não tenho coragem de reclamar de uma simples vinda a clínica, por mais que tudo que queira no momento é uma cama quente e uma boa noite de sono.

Não que minha cama seja a melhor do mundo, mas ainda assim é a minha cama.

Apesar de tudo, sinto que posso começar a ter um pouco de fé no futuro.

Agora que tenho dezoito anos de idade, Maria terá mais poder para me ajudar.

Ela passou anos falando que depois que eu fizesse dezoito anos poderia fazer mais por mim.

Sendo maior de idade, posso ir e vir quando bem entender.

Se a falta de um lugar para morar for um problema, ela terá a solução.

Não tenho um emprego que pague um salário mensal para que eu consiga me sustentar, mas acredito piamente que Maria tem influência o suficiente para encontrar algo que eu possa fazer.

Na situação em que me encontro, aceitaria qualquer coisa.

— Você pode se deitar na cama e relaxar.

A mulher não precisa pedir duas vezes. Eu simplesmente me deito e suspiro profundamente.

Segundos depois, ela desaparece e volta depois de mais ou menos cinco minutos, preparada para me atender com máscara e tudo.

Então a mulher pede para que eu me vista com uma daquelas camisolas azuis de hospital, que via na televisão quando era criança.

Quando a doutora fala que posso deitar-me novamente de costas na cama e dobrar os meus joelhos com os pés apoiados no móvel, simplesmente deixo escapar um sorriso, tudo porque realmente estou precisando deitar, mesmo que seja em uma cama de hospital.

Depois de um longo suspiro, simplesmente não vejo mais nada.

Não sei quanto tempo passou.

Eu não sei o que a médica fez comigo, se foi doloroso ou se foi o exame mais simples do mundo.

A verdade é que apenas confiei na senhora Maria quando ela disse que era necessário que eu fizesse exames que nunca havia feito, afinal, ela é uma mulher vivida e sabe muito mais da vida do que eu.

Quando abro os meus olhos novamente, tem uma mão sacudindo o meu ombro.

— Terminou?

Encaro o rosto da mulher e acabo ficando sem jeito quando deixo escapar um longo bocejo.

— Terminamos.

— Vou enviar os resultados dos seus exames para a senhora Maria daqui alguns dias, tudo bem? — ela pergunta e eu aceno positivamente com a cabeça. — Vejo que você está cansada, eu também estou. Foi um longo dia, mas ainda não terminou para mim.

— Realmente foi um longo dia — exausta, rebato.

****

— Está tudo certo? — Maria pergunta quando deixo a sala de exames.

— Correu tudo bem.

— Você quer tomar um sorvete para comemorar o seu aniversário?

Não sei se me lembro de como se parece ter um sorvete derretendo na minha língua, mas, por mais que a ideia seja tentadora, estou cansada demais para dar uma resposta diferente.

— Agradeço a oferta, senhora. Mas eu gostaria de ir para casa. Estou muito cansada… — a minha voz é apenas um sussurro.

Não estou conseguindo me aguentar em pé.

— Muito trabalho?

— A senhora não imagina o quanto — falo quando os meus ombros caem.

Morrendo de pena de mim, ela acaricia minha bochecha.

Embora não tenha dito nada para qualquer outra pessoa, confiei a verdade para a Maria. A irmã da minha madrasta conhece a história de como cheguei a vida do seu cunhado.

Eu era apenas uma criança que não entendia muito o que estava acontecendo na minha frente quando ouvi a conversa entre a minha mãe e o barão. Conforme fui ficando mais velha, as peças começaram a se encaixar e as frases soltas que tinha na minha memória passaram a fazer sentido.

Ela me ouviu e simplesmente acreditou na história que contei. A irmã da minha madrasta sabe que sou filha biológica e bastarda do barão.

Não é por falta de vontade que não o enfrenta por mim. As pessoas simplesmente temem o meu pai.

Quem seria louco o suficiente para encarar um homem tão poderoso?

Apenas um homem tão poderoso quanto o barão poderia fazer algo assim.

Mas duvido muito que exista qualquer chance de acontecer nessa vida.

— Não fique tão chateada no dia do seu aniversário. Você está fazendo dezoito anos hoje e te prometo que não vai demorar para que o seu calvário chegue ao fim. Vou te tirar das mãos do meu cunhado, nem que seja a última coisa que faça nessa vida.

Liberdade.

Ela está me prometendo a minha liberdade.

Essa promessa por si só muda completamente o meu dia e considero esse um dos aniversários mais felizes dos últimos anos.

Esperança.

A esperança está latejando no meu coração.

Mas eu deveria saber que para mim algo como esperança não existe.

Sempre que ela surge, logo é esmagada e morta.

****

Três semanas depois...

— Pelo amor de Deus! Não olha por onde anda, estorvo? — Marta esbraveja quando esbarro nela no jardim.

Essa é a minha querida irmã.

As duas são lindas com seus cabelos escuros e peles morenas, mas a beleza de fora não reflete por dentro. Por dentro, ambas são vazias e podres.

Nunca me trataram bem.

Sempre que tem a chance, as duas me humilham e zombam da minha cara de todas as maneiras que são capazes.

Quando eu era criança, não entendia por que agiam dessa forma.

Agora sei que as duas simplesmente não podem aceitar ter alguém como eu como irmã.

Eu sou indigna. Não sou filha da mãe delas e a ideia de que sou adotada me torna inferior.

O que me deixa aliviada é que na maior parte do tempo não tenho que lidar com as duas idiotas.

Elas não ficam no meu caminho.

Só me chamam quando precisam que eu seja a empregada.

Quando vão as compras, sou aquela que tem que guardar as peças novas no guarda-roupas.

— Perdoe-me — digo tarde demais, porque a mulher já está a alguns metros de distância, caminhando ao lado de uma de suas amigas, que está sorrindo de mim.

Sem cabeça para pensar em qualquer coisa relacionada à minha irmã agora, arrasto os meus pés para um dos bancos que fica no jardim da propriedade.

Estou suando não só porque o dia está muito quente, mas também porque há algo errado comigo e faz algum tempo que estou me sentindo estranha.

Ao me sentar, a sensação é de que o mundo está girando e que vou vomitar tudo o que comi hoje até não sobrar nada no meu estômago.

Estou tentando segurar a barra, pois tenho muito trabalho para fazer, mas todas as noites rezo para que passe logo, porque não posso me dar ao luxo de ficar doente nesse momento da minha vida.

Tudo pode mudar a partir de agora e estou esperando apenas a visita da senhora Maria para saber se ela já tem algo para mim.

Ela prometeu que iria me ajudar.

Eu só preciso de um emprego e de um lugar para morar.

Sair da prisão onde sou indesejada é mais do que um querer, é uma necessidade.

Depois de respirar profundamente por um tempo, a tontura passa.

Quando olho adiante, vejo a única pessoa que eu queria ver agora se aproximando de mim.

Mas ela também não parece bem.

A preocupação e o medo no seu rosto, que está sempre sorridente, me assustam.

Maria se senta ao meu lado e imediatamente segura as minhas mãos.

— Senhora? Está bem?

— Eu…

— Pode falar — digo. Meu coração está disparado.

— A médica que te consultou há algumas semanas cometeu um erro. Um erro muito grave. Ela… Ainda não entendo como foi capaz de…

Já não estou mais prestando atenção.

Como assim um erro?

Erro.

Erro.

Erro.

Muito grave.

A palavra fica se repetindo na minha cabeça quando a tontura volta.

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