Com o encanto quebrado, prestei atenção no que ela falava e o diálogo que se seguiu, sem contar as dificuldades para compreender um ao outro, foi mais ou menos assim:
— …quando você chegou aqui e qual o seu nome? — perguntou pela terceira vez, que foi quando saí do transe.
— Bem… onde é “aqui”, senhorita? — respondi, tentando fechar o sorriso bobalhão.
— Eu faço as perguntas — retrucou em tom autoritário, mas gentil.
Não tente entender a contradição. “Que gata selvagem!” — pensei extasiado, inclinado a responder tudo o que ela quisesse saber.
— Meu nome é Laius — apresentei-me. — Não sei precisar quando cheguei. Você me acordou de um sono no qual não lembro de ter entrado. Aliás, acho que não me acordou, porque a única lógica aqui é que isso deve ser um sonho — concluí, correndo os olhos pela aldeia.
Súbito, ela deu uma palmada em minha face esquerda. Um tapa de quem quer acordar alguém.
— E agora, ainda parece sonho? Para nós parece pesadelo! — enfatizou séria.
A expressão endurecera e o bom humor de antes sumiu.
— Calma, senhorita! Foi você quem me acordou me lambendo no meio do mato e eu nem sei como fui parar lá. Aliás, não sei nem onde estou, pois estou offline e nem mesmo consigo acessar o MPS para verificar minha localização — explanei naturalmente porque para mim era, mas pela expressão deles ninguém entendeu o que eu disse.
— Para saber onde está? Você quer dizer GPS2? — indagou a beldade.
— MPS: Multiversal Positioning System, mas alguém que fala uma língua antiga como a de vocês não deve conhecer ainda, creio. Não é?
Eram visivelmente seres de tecnologia subdesenvolvida. Imaginei que faziam parte de alguma tribo esquecida que começava a despertar.
— Língua antiga? Você é quem fala estranho — disparou e prosseguiu depois de uma pausa. — Eu não sei de onde você é, mas vejo que não é daqui e imagino que deva ter chegado há pouco. Portanto, eu lhe peço, leve-nos a sério. Já tivemos muitos problemas desde que chegamos a esse mundo estranho e o que menos queremos é perder mais tempo do que já perdemos — discursou convicta.
Fez mais uma pausa, na qual fitou-me de cima a baixo antes de prosseguir.
— Você é o quê? Um viajante do espaço, do futuro, por acaso? — perguntou com sarcasmo ao observar meus trajes.
De onde teriam vindo? Não há registros de seres assim na Terra e mesmo que fossem de lá estariam ainda às margens da tecnologia? Minha cabeça fervilhava com interrogações cada vez mais intrigantes. Decidi não revelar todas as minhas divagações de imediato para não chocá-los e tentei uma abordagem que me fizesse parecer mais amigável. Pelo menos até eu ter certeza do que, de onde eram e onde eu estava.
— Na verdade, sou um explorador. E vocês, são de onde?
Ela pensou um pouco, fitando-me de cima abaixo pensativa e desconfiada. Levantou a sobrancelha esquerda ao ver alguma coisa em meu traje, mas eu não percebi o que foi.
— Olha, não sei de que cinema você saiu, mas se o que estou pensando de você for verdade poderá ajudar — declarou, ignorando minha pergunta, com tom menos agressivo.
— Cinema? Eu? E vocês se transformando como se fossem lobisomens! Só que felinos! Como se chamam? “Tigromens”? — arrisquei uma quase piada, estampando um sorriso raso.
— Licantropos — respondeu séria.
— “Licantropos”? — indaguei espantado.
Já tinha ouvido ou lido a palavra, mas não lembrava onde ou o que significava.
— Sim, nós somos licantropos ou metamorfos como os lobisomens que você citou.
E ela falou com a mesma naturalidade com a qual eu falara do MPS.
— Ah, claro! Fui eu quem saiu do cinema… — rebati debochando e sorrindo.
— Querido — chamou delicada, porém séria.
Aproximou-se e me encarou de perto. Contive-me para não suspirar!
— Nós sempre existimos na Terra desde tempos imemoriais, nos ocultando das pessoas da mesma forma que os lobisomens, e muitas outras criaturas que pelo visto pareceriam cinematográficas para você — completou delicada, quase contando vantagem.
— Você disse Terra? — espantei-me com retardo. — Quer dizer o planeta Terra?
— Sim, o planeta Terra, é lógico — declarou segura.
— Você está falando que vocês todos são da Terra?
— Foi o que eu disse — reafirmou. — Por quê? Qual é a surpresa?
— Não, é… só que eu sempre quis conhecê-la, mas nunca tive oportunidade — disfarcei.
Pelas expressões que se formaram, minha tentativa causou efeito contrário ao de “disfarçar”.
— Você não é de lá? — questionou, arregalando os olhos.
— Bem, tecnicamente sim, porque ela é o berço da civilização humana, entretanto não nasci lá e ainda não tive a oportunidade de visitá-la. Mas se os habitantes atuais forem como vocês, fico mais curioso ainda por conhecer o “Planeta Mãe”.
— Habitantes atuais? Planeta Mãe? De que raios você está falando? — interpelou, mais intrigada do que nunca.
Silêncio outra vez. Dava para ouvir as cigarras ou, seja lá qual for o equivalente deste planeta. Minha cabeça, a mil, tentava decifrar o que se passava.
— Você acabou de me dizer que são da Terra e nós estamos em qualquer lugar, menos na Terra. Aliás, por que vocês vivem em segredo? E como vieram parar aqui? — ignorei as indagações dela, disparando minhas dúvidas.
Senti que não podia revelar muito e queria respostas. Foi quando o outro “tigromem”, que até então só observava, interveio. Era muito alto e musculoso de cabelos também longos, pretos azulados e pele corada de sol. Em total contraste com a aparência, dirigiu-se a mim com gentileza e educação:
— Senhor Laius, meu nome é Cassius, sou o alfa dessa recém-formada tribo de tigres e irmão de Cassiene, a que lhe fala. Espero que perdoe a falta de delicadeza dela.
Falava como um líder e eu o escutei atento. A palavra “irmão” fez eco em meu ouvido, causando-me alívio. “Ele é apenas o irmão!” — pensei aliviado.
— Nossa raça de licantropos — continuou — é formada, como o senhor pode ver, por “seres” que podem assumir a forma de tigre, de homem ou uma forma intermediária a que chamamos “krinus”, ou forma guerreira, que equivale ao lobisomem das lendas que o senhor demonstra conhecer. Nós, assim como o senhor, não sabemos como chegamos aqui, mas sim, viemos da Terra do ano de 2021, há quase seis meses, e sabemos que esse planeta não é a Terra por causa do sol, da lua e da gravidade, que são sensivelmente diferentes. O senhor já demonstrou que também não é daqui, portanto esqueça a conversa confusa que teve até agora com minha irmã e perdoe-me por não interferir antes. Ela é impulsiva às vezes. Fale um pouco de você para que possamos, talvez, ajudarmos uns aos outros a voltar para casa.
Atento a tudo o que dizia, também por receio da figura intimidadora, apesar de todo o carisma, entendi que ele acabara de dar um primeiro passo. Falou um pouco sobre eles esperando que eu falasse um pouco de mim. Pena que na hora não percebi e explodi em sarcasmo:
— Você só pode estar brincando! Terra, 2021? Isso foi há quase dois mil anos! É impossível! — exclamei às gargalhadas.
— Dois mil anos? Pirou de vez! — intrometeu-se a gata.— Impossível? Então por que você não nos conta de onde veio? — trovejou Cassius firme, mas sem perder a calma.Ao que, os burburinhos calaram e Cassiene apassivou-se em respeito. Ele demonstrava ser mais aberto do que a irmã. Segundos mais tarde, dei-me conta que para algumas das perguntas que me fiz há apenas alguns minutos, poderia encontrar respostas no que ele acabara de relatar. E eu não tinha motivo para duvidar, pois diante de tudo o que vi desde que acordei na floresta, nada mais me surpreenderia, pensei. Ledo engano, mas decidi falar um pouco.— Tudo bem, farei um resumo: antes de acordar aqui, a última coisa de que me lembro é de entrar no hiperespaço com
Enfim, vi-me sozinho com a estonteante mulher e não deixaria, de modo algum, escapar a chance de me aproximar.— Nesses quase seis meses aqui já tiveram algum tempo para fazer explorações, imagino, então me conte, por favor, o que encontraram de interessante por aí?— Muitas coisas estranhas. Conhecemos alguns belos seres que se autointitulam “elfos”. É surpreendente como as lendas podem se tornar realidade de uma hora para outra, não é? — perguntou quase em tom de afirmação, sarcástica e satisfeita.— É claro, “lenda viva” — respondi, provocando-a com um sorriso descontraído.— Ao que parece, são seres de bo
Quando acordei, ainda estava escuro. Voltei para a árvore e por lá fiquei até o nascer do sol, o que não demorou. Os irmãos me chamaram para voltar à aldeia, mas neguei. Eles insistiram dizendo que era perigoso ficarmos expostos, mas mesmo assim não fui. Queria estudar a cidade na tentativa de encontrar uma luz no fim do túnel, que nos conduzisse de volta para casa. Além do mais, eu não faria nada além do meu trabalho: explorar. O que, modéstia à parte, faço bem.O movimento na cidade era grande. Vagões de madeira puxados por bois e por cavalos, passavam a toda hora para lá e para cá, levando e trazendo gente e cargas. Uns chegavam outros saiam e muitos circulavam lá dentro. Vi o nome da cidade rusticamente entalhado em um arco de pedra na entrada sul: “Nova Esparta”. Ti
Era o que eu tinha até o momento: lugar com alto nível de Mana? Merlin e Gandalf eram magos e magos faziam “magias”! Dois senhores cujos modos e vestes assemelhavam-se aos deles em uma era medieval? Ainda mais dando instruções dentro de um castelo? Depois do que a gata relatou sobre “manipulação de mana” aliado a tudo de impossível que eu presenciara, imaginei:“Magos!” — seria possível alguma outra conclusão? Com seus conhecimentos poderiam nos ajudar! Uma possibilidade absurda, admito, entretanto o que não era absurdo aqui? Concluí que eu precisava fazer contato com aqueles senhores.Contar toda a verdade seria imprudente, uma vez que essa gente antiga costumava ter crenças fundamentalistas e eram capazes de atrocidades terrívei
Desci a colina em direção à cidade encoberto pela vegetação. Não entraria por um dos portões por serem bem guardados. Identificara um ponto do muro perto de uma torre vazia e, portanto, pouco vigiado, por onde poderia escalar. Algumas pedras soltas e com falhas no paredão ajudaram, além das vantagens do meu traje. Concluída a escalada, corri para a torre vazia. Creio que eram tempos de paz, porque a vigilância era frouxa. Da torre, percebi uma faixa de terra de cinquenta metros da muralha até o início da zona urbana para acomodação de tropas, supus. Corri rampa abaixo e cheguei à borda da urbanização nos fundos de casebres. Em um deles, uma senhora estendia roupas em um varal. Esquadrinhei as roupas camponesas com as lentes que transmitiram a informação para o computador de bordo e para o traje.
Depois de muito divagar, percebi que chegara o que chamavam de comida: um gorducho sujo, suado e peludo empurrava uma rudimentar carroça com rodas de madeira que rangiam sobre a qual se via um caldeirão de ferro em que borbulhava um engodo repugnante que o obeso servia em pequenas gamelas de argila. Os servos correram para formar uma fila à frente da carrocinha. Fiquei por último e ao pegar minha tigela fui me sentar ao lado de Yole.Experimentei para constatar que, como desconfiei, o gosto era terrível e rançoso! Cuspi! Os outros comiam tão vorazmente que nem perceberam. Entreguei o meu a Michael, que apenas devorou. Recorri a uma pastilha de nutrição, que me mantém alimentado por vinte e quatro horas, bebi água e dormi.Ao acordar, lavei o rosto sendo notado com curiosidade pel
“Oh, céus! Como fui me meter nisso” — eu ruminava, deitado de costas observando as estrelas quando o guarda da escolta pessoal do necromante cutucou de leve minhas costelas com a ponta da bota e disse:— Taurus quer falar contigo, agora — sussurrou e deu-me as costas voltando à sua posição.Afora o crepitar da fogueira e os sons selvagens da mata, no acampamento reinava o silêncio, mas duvido que todos estivessem dormindo depois do pavoroso ataque. Dirigi-me à tenda de Taurus e entrei encontrando-o sentado a uma pequena mesa rústica sobre a qual havia um embrulho encurvado que desconfiei ser o braço do morto. Não me deu atenção enquanto não terminou de redigir uma carta, a qual lacrou usando cera vermelha e o brasão de Nova Roma.
O rei Victorio leu a mensagem que eu trouxera e recebeu com pesar a notícia da morte do irmão, embora se esforçasse para disfarçar, pois julgava que eu desconhecia a informação, que era quase um segredo. De fato, o rei tinha vergonha daquele irmão caçula, um homem dos mais desprezíveis, mau caráter, trapaceiro, estuprador, bêbado e arruaceiro.É difícil imaginar que um homem bem-nascido consiga reunir tantos defeitos e que tenha conseguido fazer tanta maldade a ponto do irmão, o próprio rei, tê-lo deserdado. Mas Titus conseguiu, e, conta-se, a gota d'água foi quando tentou estuprar a então princesa, noiva de Victorio.Ninguém sabe ao certo onde terminam os boatos e começam as verdades, mas parece que o primogênito conseguiu impedir o ato e deu uma surra no irmão com a parte chata da lâmina da espada, e depois esmurrou-