2 - LAIUS DESLOCADO

Aos poucos recobrei a consciência e o tato. Deitado, senti algo úmido, mole e áspero esfregar-se em meu rosto. Assustado, fiquei imóvel enquanto abri um dos olhos buscando me mover devagar para não provocar ou assustar o que quer que estivesse me lambendo e me apavorei ao perceber que era um animal selvagem que eu jamais vira. Não sabia precisar que bicho era, mas era lindo!

Pardo avermelhado com listras pretas e manchas brancas no focinho, apresentava-se dócil parecendo um gato doméstico só que muito maior e mais robusto. Devia pesar uns trezentos quilos.

De pé, ainda meio desnorteado, olhei a minha volta e compreendi menos ainda. A sensação foi boa, a brisa fazia farfalhar as copas de gigantescas árvores por todo lado e sons de animais silvestres dos mais diversos inundavam o ambiente e o melhor de tudo: o ar mais puro que já respirei. No chão, folhas e galhos secos mesclados à terra molhada e vegetação rasteira, regados a um clima quente e úmido. Era uma pequena clareira numa floresta tropical.

A não ser pelos arquivos históricos sobre a Amazônia, apreciei tal abundância natural em poucas oportunidades e, mesmo assim, nunca de forma tão intensa.

Percebi que o belo animal agora repousava, deitado em posição de esfinge, observando-me fixamente. Apalpei-me pelo corpo para conferir se nada faltava e, para minha alegria, todos os meus equipamentos e membros se faziam presentes.

Conferi a integridade dos sistemas e, ao checar o computador de bordo, aproveitei para fazer uma rápida pesquisa sobre a criatura que me encarava com admiração e me encantava de modo que eu não podia explicar. Ele me permitia acariciá-lo e constatei que a pelagem era macia. Colhi um pelo que inseri em meu escâner e o resultado da análise de DNA saiu rápido e preciso a partir dos arquivos históricos do computador de bordo que me trouxe uma foto e um texto descritivo mais ou menos assim:

Reino: Animalia

Filo: Chordata

Classe: Mammalia

Ordem: Carnívora

Família: Felidae

Gênero: Panthera

Espécie: Panthera Tigris Tigris

Popular: Tigre de Bengala

Mamífero da família dos Felinos ou Felídeos. É uma das quatro espécies dos “grandes gatos” que pertence ao gênero Panthera, ao lado do Leão, da Onça Pintada (ou Jaguar) e do Leopardo. Todos predadores carnívoros, sendo o Tigre o maior. São caçadores noturnos e enxergam bem em escuridão quase total. Apesar do tamanho, podem se aproximar das presas em silêncio e atacá-las à curta distância. Entre os carnívoros terrestres, têm os maiores dentes, maiores garras e a mais poderosa mordida. É um grande nadador.

Peso médio: de 260 kg a 300 kg

Recordista documentado: 395 kg

Presas: podem chegar a 12 cm

Pressão da mordida: aproximadamente 600 kg

Garras: atingem 10 cm e são retráteis

Pela foto que os arquivos históricos mostravam, sem dúvida, era o animal à minha frente. Um belo exemplar de Tigre de Bengala do sexo feminino. O arquivo tinha alguns extras, dentre os quais, constava que o bichano era originário da Terra e, assim, a conclusão foi lógica: “estou na Terra” — pensei.

Não tenho ideia de como poderia ter acontecido, mas era o que os indícios afirmavam. O computador também alertava que “Tigre de Bengala” era a hipótese mais próxima do DNA do espécime, mas que havia uma discrepância quase desprezível no DNA do pelo. Não dei atenção ao detalhe.

Aproveitei a docilidade da tigresa e decidi pesquisar as plantas colhendo amostras e repetindo o processo aplicado ao felino. Sem sucesso. Fiquei confuso, pois tinha em minha presença um ser originário da Terra enquanto a análise me dizia que as plantas não eram da Terra.

Foi aí que tomei um susto: percebi que os sistemas estavam offline! Tenho o catálogo completo da biodiversidade da Terra no meu computador e, se estivesse no planeta, não faria diferença estar online ou offline. Entretanto, para saber se a biodiversidade de um planeta estranho fora catalogada, eu precisaria me conectar. Jamais ficara offline em nenhum sistema planetário que explorei, o que me deixou apreensivo.

Súbito, percebi que além de offline, o que por si só já era uma catástrofe, eu me encontrava sozinho no meio da mata sem nenhum tipo de transporte ou comunicação externa. Em um impulso ativei o MPS1 para tentar descobrir minha localização, mas sem sucesso. Entrei em pânico! Num lampejo de razão busquei tentar entender como seria possível ficar desconectado. Foi quando uma dúvida maior me abateu:

— Como vim parar aqui? — questionei-me em voz alta.

Então aquele belo animal levantou-se, arrancando-me dos devaneios, encarou-me com olhos de caçador felino serpenteando a cauda e deu um estrondoso rugido! “Estou ferrado!” —pensei por instinto ao sentir o sangue gelar.

No entanto, ela virou as costas e deu alguns passos tranquilos, voltou a cabeça para trás olhando-me, deu as costas mais uma vez e mais alguns passos. Repetiu o gesto e interpretei como se ela me pedisse para acompanhá-la. Em um lapso de insanidade, imaginei que ela poderia ter entendido o que falei e, receoso, a segui de longe com cautela porque se mostrara amistosa até então.

Íamos a passos lentos por uma floresta densa de belas árvores, altas e das mais variadas espécies, formas e cores. A umidade e a temperatura elevadas eram amenizadas pela vegetação abundante. Um festival de sons e cheiros inundava o ambiente tornando-o tão agradável quanto assustador. A toda hora avistava diferentes aves piando, se comunicando e se assustando com nossa passagem. Insetos barulhentos e exóticos animais rastejantes além do ranger das árvores ao vento.

Depois de quase meia hora em meio a plantas entrelaçadas que eu jamais vira dificultando a caminhada, chegamos a outra clareira pouco maior que a primeira. Ao centro, um acampamento de cabanas de palha não muito altas, formato redondo na base com raio avantajado e telhado cônico também de palha. Cada uma poderia abrigar umas cinco pessoas, calculei. Outra coisa que até então só vira por arquivos. Dispostas em um círculo quase perfeito, totalizavam seis e eram parecidas com ocas de extintas tribos de homens selvagens da Terra. A palha era nova o que indicava que eram recentes.

Continuei a seguir o felino até o meio da aldeia, verificando mais indícios de civilização primitiva, tais como gamelas, jarros, vasos, pratos, copos e outros vasilhames de argila moldada. No centro, entre as choupanas, jaziam cinzas e pedaços de madeira carbonizada em um buraco raso e largo no chão de onde emanava um leve calor e cheiro de queimado. Os utensílios se agrupavam em torno da fogueira apagada, junto a primitivas facas mal forjadas e machadinhas de pedra lascada.

A não ser pelos sons naturais, o silêncio era tumular. Olhei para todos os lados procurando os donos do lugar esperando encontrar seres como índios da Amazônia, entretanto só vi grandes peles de animais esticadas sobre as moradias, secando ao sol. Muitas. Tantas que em outro local mais atrás, um varal de cipó fora construído para o mesmo fim.

Levei mais um susto quando a tigresa deu um rugido ensurdecedor e, o que veio a seguir foi o que me empalideceu: começaram a sair das choupanas vários outros tigres!

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