Aos poucos recobrei a consciência e o tato. Deitado, senti algo úmido, mole e áspero esfregar-se em meu rosto. Assustado, fiquei imóvel enquanto abri um dos olhos buscando me mover devagar para não provocar ou assustar o que quer que estivesse me lambendo e me apavorei ao perceber que era um animal selvagem que eu jamais vira. Não sabia precisar que bicho era, mas era lindo!
Pardo avermelhado com listras pretas e manchas brancas no focinho, apresentava-se dócil parecendo um gato doméstico só que muito maior e mais robusto. Devia pesar uns trezentos quilos.
De pé, ainda meio desnorteado, olhei a minha volta e compreendi menos ainda. A sensação foi boa, a brisa fazia farfalhar as copas de gigantescas árvores por todo lado e sons de animais silvestres dos mais diversos inundavam o ambiente e o melhor de tudo: o ar mais puro que já respirei. No chão, folhas e galhos secos mesclados à terra molhada e vegetação rasteira, regados a um clima quente e úmido. Era uma pequena clareira numa floresta tropical.
A não ser pelos arquivos históricos sobre a Amazônia, apreciei tal abundância natural em poucas oportunidades e, mesmo assim, nunca de forma tão intensa.
Percebi que o belo animal agora repousava, deitado em posição de esfinge, observando-me fixamente. Apalpei-me pelo corpo para conferir se nada faltava e, para minha alegria, todos os meus equipamentos e membros se faziam presentes.
Conferi a integridade dos sistemas e, ao checar o computador de bordo, aproveitei para fazer uma rápida pesquisa sobre a criatura que me encarava com admiração e me encantava de modo que eu não podia explicar. Ele me permitia acariciá-lo e constatei que a pelagem era macia. Colhi um pelo que inseri em meu escâner e o resultado da análise de DNA saiu rápido e preciso a partir dos arquivos históricos do computador de bordo que me trouxe uma foto e um texto descritivo mais ou menos assim:
Reino: Animalia
Filo: Chordata
Classe: Mammalia
Ordem: Carnívora
Família: Felidae
Gênero: Panthera
Espécie: Panthera Tigris Tigris
Popular: Tigre de Bengala
Mamífero da família dos Felinos ou Felídeos. É uma das quatro espécies dos “grandes gatos” que pertence ao gênero Panthera, ao lado do Leão, da Onça Pintada (ou Jaguar) e do Leopardo. Todos predadores carnívoros, sendo o Tigre o maior. São caçadores noturnos e enxergam bem em escuridão quase total. Apesar do tamanho, podem se aproximar das presas em silêncio e atacá-las à curta distância. Entre os carnívoros terrestres, têm os maiores dentes, maiores garras e a mais poderosa mordida. É um grande nadador.
Peso médio: de 260 kg a 300 kg
Recordista documentado: 395 kg
Presas: podem chegar a 12 cm
Pressão da mordida: aproximadamente 600 kg
Garras: atingem 10 cm e são retráteis
Pela foto que os arquivos históricos mostravam, sem dúvida, era o animal à minha frente. Um belo exemplar de Tigre de Bengala do sexo feminino. O arquivo tinha alguns extras, dentre os quais, constava que o bichano era originário da Terra e, assim, a conclusão foi lógica: “estou na Terra” — pensei.
Não tenho ideia de como poderia ter acontecido, mas era o que os indícios afirmavam. O computador também alertava que “Tigre de Bengala” era a hipótese mais próxima do DNA do espécime, mas que havia uma discrepância quase desprezível no DNA do pelo. Não dei atenção ao detalhe.
Aproveitei a docilidade da tigresa e decidi pesquisar as plantas colhendo amostras e repetindo o processo aplicado ao felino. Sem sucesso. Fiquei confuso, pois tinha em minha presença um ser originário da Terra enquanto a análise me dizia que as plantas não eram da Terra.
Foi aí que tomei um susto: percebi que os sistemas estavam offline! Tenho o catálogo completo da biodiversidade da Terra no meu computador e, se estivesse no planeta, não faria diferença estar online ou offline. Entretanto, para saber se a biodiversidade de um planeta estranho fora catalogada, eu precisaria me conectar. Jamais ficara offline em nenhum sistema planetário que explorei, o que me deixou apreensivo.
Súbito, percebi que além de offline, o que por si só já era uma catástrofe, eu me encontrava sozinho no meio da mata sem nenhum tipo de transporte ou comunicação externa. Em um impulso ativei o MPS1 para tentar descobrir minha localização, mas sem sucesso. Entrei em pânico! Num lampejo de razão busquei tentar entender como seria possível ficar desconectado. Foi quando uma dúvida maior me abateu:
— Como vim parar aqui? — questionei-me em voz alta.
Então aquele belo animal levantou-se, arrancando-me dos devaneios, encarou-me com olhos de caçador felino serpenteando a cauda e deu um estrondoso rugido! “Estou ferrado!” —pensei por instinto ao sentir o sangue gelar.
No entanto, ela virou as costas e deu alguns passos tranquilos, voltou a cabeça para trás olhando-me, deu as costas mais uma vez e mais alguns passos. Repetiu o gesto e interpretei como se ela me pedisse para acompanhá-la. Em um lapso de insanidade, imaginei que ela poderia ter entendido o que falei e, receoso, a segui de longe com cautela porque se mostrara amistosa até então.
Íamos a passos lentos por uma floresta densa de belas árvores, altas e das mais variadas espécies, formas e cores. A umidade e a temperatura elevadas eram amenizadas pela vegetação abundante. Um festival de sons e cheiros inundava o ambiente tornando-o tão agradável quanto assustador. A toda hora avistava diferentes aves piando, se comunicando e se assustando com nossa passagem. Insetos barulhentos e exóticos animais rastejantes além do ranger das árvores ao vento.
Depois de quase meia hora em meio a plantas entrelaçadas que eu jamais vira dificultando a caminhada, chegamos a outra clareira pouco maior que a primeira. Ao centro, um acampamento de cabanas de palha não muito altas, formato redondo na base com raio avantajado e telhado cônico também de palha. Cada uma poderia abrigar umas cinco pessoas, calculei. Outra coisa que até então só vira por arquivos. Dispostas em um círculo quase perfeito, totalizavam seis e eram parecidas com ocas de extintas tribos de homens selvagens da Terra. A palha era nova o que indicava que eram recentes.
Continuei a seguir o felino até o meio da aldeia, verificando mais indícios de civilização primitiva, tais como gamelas, jarros, vasos, pratos, copos e outros vasilhames de argila moldada. No centro, entre as choupanas, jaziam cinzas e pedaços de madeira carbonizada em um buraco raso e largo no chão de onde emanava um leve calor e cheiro de queimado. Os utensílios se agrupavam em torno da fogueira apagada, junto a primitivas facas mal forjadas e machadinhas de pedra lascada.
A não ser pelos sons naturais, o silêncio era tumular. Olhei para todos os lados procurando os donos do lugar esperando encontrar seres como índios da Amazônia, entretanto só vi grandes peles de animais esticadas sobre as moradias, secando ao sol. Muitas. Tantas que em outro local mais atrás, um varal de cipó fora construído para o mesmo fim.
Levei mais um susto quando a tigresa deu um rugido ensurdecedor e, o que veio a seguir foi o que me empalideceu: começaram a sair das choupanas vários outros tigres!
Todos ao mesmo tempo, com andar e olhar de caçadores, se aproximaram juntos com a cauda serpenteante levantada ao céu. Fecharam o círculo à minha volta, aproximando-se com os olhos fixos em mim! Movimentos tão perfeitamente sincronizados que quase hipnotizaram a vítima: eu.Tomado por súbito medo de virar refeição, senti a adrenalina jorrar. Com um movimento lento, pus a mão no cabo da minha lâmina e fiquei imóvel, tentando prestar atenção em todos os que cabiam em meu raio de visão. Um deles, um macho em especial, dirigiu-se com ferocidade à tigresa que me trouxera e rugiram um para o outro sem se tocar, repetindo o gesto algumas vezes. Tive a impressão que se comunicavam ou, mais precisamente, discutiam seriamente sobre mim, porque entre uma rugida e outra, encaravam-me de relance.
Com o encanto quebrado, prestei atenção no que ela falava e o diálogo que se seguiu, sem contar as dificuldades para compreender um ao outro, foi mais ou menos assim:— …quando você chegou aqui e qual o seu nome? — perguntou pela terceira vez, que foi quando saí do transe.— Bem… onde é “aqui”, senhorita? — respondi, tentando fechar o sorriso bobalhão.— Eu faço as perguntas — retrucou em tom autoritário, mas gentil.Não tente entender a contradição. “Que gata selvagem!” — pensei extasiado, inclinado a responder tudo o que ela quisesse saber.— Meu nome &eacut
— Dois mil anos? Pirou de vez! — intrometeu-se a gata.— Impossível? Então por que você não nos conta de onde veio? — trovejou Cassius firme, mas sem perder a calma.Ao que, os burburinhos calaram e Cassiene apassivou-se em respeito. Ele demonstrava ser mais aberto do que a irmã. Segundos mais tarde, dei-me conta que para algumas das perguntas que me fiz há apenas alguns minutos, poderia encontrar respostas no que ele acabara de relatar. E eu não tinha motivo para duvidar, pois diante de tudo o que vi desde que acordei na floresta, nada mais me surpreenderia, pensei. Ledo engano, mas decidi falar um pouco.— Tudo bem, farei um resumo: antes de acordar aqui, a última coisa de que me lembro é de entrar no hiperespaço com
Enfim, vi-me sozinho com a estonteante mulher e não deixaria, de modo algum, escapar a chance de me aproximar.— Nesses quase seis meses aqui já tiveram algum tempo para fazer explorações, imagino, então me conte, por favor, o que encontraram de interessante por aí?— Muitas coisas estranhas. Conhecemos alguns belos seres que se autointitulam “elfos”. É surpreendente como as lendas podem se tornar realidade de uma hora para outra, não é? — perguntou quase em tom de afirmação, sarcástica e satisfeita.— É claro, “lenda viva” — respondi, provocando-a com um sorriso descontraído.— Ao que parece, são seres de bo
Quando acordei, ainda estava escuro. Voltei para a árvore e por lá fiquei até o nascer do sol, o que não demorou. Os irmãos me chamaram para voltar à aldeia, mas neguei. Eles insistiram dizendo que era perigoso ficarmos expostos, mas mesmo assim não fui. Queria estudar a cidade na tentativa de encontrar uma luz no fim do túnel, que nos conduzisse de volta para casa. Além do mais, eu não faria nada além do meu trabalho: explorar. O que, modéstia à parte, faço bem.O movimento na cidade era grande. Vagões de madeira puxados por bois e por cavalos, passavam a toda hora para lá e para cá, levando e trazendo gente e cargas. Uns chegavam outros saiam e muitos circulavam lá dentro. Vi o nome da cidade rusticamente entalhado em um arco de pedra na entrada sul: “Nova Esparta”. Ti
Era o que eu tinha até o momento: lugar com alto nível de Mana? Merlin e Gandalf eram magos e magos faziam “magias”! Dois senhores cujos modos e vestes assemelhavam-se aos deles em uma era medieval? Ainda mais dando instruções dentro de um castelo? Depois do que a gata relatou sobre “manipulação de mana” aliado a tudo de impossível que eu presenciara, imaginei:“Magos!” — seria possível alguma outra conclusão? Com seus conhecimentos poderiam nos ajudar! Uma possibilidade absurda, admito, entretanto o que não era absurdo aqui? Concluí que eu precisava fazer contato com aqueles senhores.Contar toda a verdade seria imprudente, uma vez que essa gente antiga costumava ter crenças fundamentalistas e eram capazes de atrocidades terrívei
Desci a colina em direção à cidade encoberto pela vegetação. Não entraria por um dos portões por serem bem guardados. Identificara um ponto do muro perto de uma torre vazia e, portanto, pouco vigiado, por onde poderia escalar. Algumas pedras soltas e com falhas no paredão ajudaram, além das vantagens do meu traje. Concluída a escalada, corri para a torre vazia. Creio que eram tempos de paz, porque a vigilância era frouxa. Da torre, percebi uma faixa de terra de cinquenta metros da muralha até o início da zona urbana para acomodação de tropas, supus. Corri rampa abaixo e cheguei à borda da urbanização nos fundos de casebres. Em um deles, uma senhora estendia roupas em um varal. Esquadrinhei as roupas camponesas com as lentes que transmitiram a informação para o computador de bordo e para o traje.
Depois de muito divagar, percebi que chegara o que chamavam de comida: um gorducho sujo, suado e peludo empurrava uma rudimentar carroça com rodas de madeira que rangiam sobre a qual se via um caldeirão de ferro em que borbulhava um engodo repugnante que o obeso servia em pequenas gamelas de argila. Os servos correram para formar uma fila à frente da carrocinha. Fiquei por último e ao pegar minha tigela fui me sentar ao lado de Yole.Experimentei para constatar que, como desconfiei, o gosto era terrível e rançoso! Cuspi! Os outros comiam tão vorazmente que nem perceberam. Entreguei o meu a Michael, que apenas devorou. Recorri a uma pastilha de nutrição, que me mantém alimentado por vinte e quatro horas, bebi água e dormi.Ao acordar, lavei o rosto sendo notado com curiosidade pel