Capítulo 4

O som ritmado dos sapatos de Helena ecoava pelos corredores do hospital como um metrônomo de frustração. Ela caminhava com pressa, o jaleco pendendo de um dos ombros, a prancheta apertada contra o peito. O relógio marcava sete e cinquenta e cinco da manhã — cinco minutos para o início do plantão. Mas o que a incomodava não era o horário.

Era ele.

Rafael Moretti.

Dr. Perfeição, como algumas enfermeiras suspiravam nos corredores. Helena quase revirava os olhos sempre que ouvia os comentários. *“Ele é um gênio”, “Ele nunca erra”, “Você viu como ele segura o bisturi? Parece uma dança”*. Sim, ela já tinha visto. E sim, ele era mesmo tudo aquilo. Mas também era arrogante, controlador, metódico ao ponto de parecer que a humanidade havia sido extraída junto com o apêndice dos pacientes.

E ela estava cansada disso.

Abriu a porta do vestiário feminino com um empurrão e se jogou no banco de madeira ao lado dos armários. Tirou o jaleco amarrotado da bolsa, esticando-o com raiva antes de vesti-lo.

— Odeio ele — murmurou, sozinha. — Odeio aquele olhar clínico que analisa tudo como se o mundo fosse um paciente anestesiado. Odeio aquela mania de corrigir tudo. Odeio...

A frase morreu antes de terminar. Porque, na verdade, ela não sabia se o que sentia era realmente ódio. Não completamente. O que Rafael despertava nela era um emaranhado de emoções que ela não sabia nomear. Uma mistura de irritação com... curiosidade. Raiva com... admiração. E, em certos momentos, um calor no estômago que ela fingia não notar.

— Não. Eu odeio ele — repetiu, como um mantra, tentando convencer a si mesma mais do que ao mundo. — Odeio até aquele cabelo ridiculamente bem penteado.

Ajeitou os fios soltos atrás da orelha e fitou o próprio reflexo no espelho do armário. Olheiras. Testa franzida. Lábios contraídos. Parecia exausta, e não era só pela carga de trabalho.

*Era ele. Sempre ele.*

Do outro lado do hospital, Rafael estava parado diante da janela de sua sala, observando o movimento frenético lá fora. Enfermeiros entrando, médicos trocando plantões, pacientes sendo levados em cadeiras de rodas. Tudo acontecia com a precisão de um relógio suíço. Como ele gostava.

Exceto por uma variável que ultimamente tinha bagunçado a engrenagem de seu dia a dia: Helena Ferreira.

Ele passou a mão pelo queixo, pensativo. Nos últimos meses, ela havia sido o único elemento de sua rotina que não conseguia prever — nem controlar. E isso o deixava inquieto.

— Enfermeira Ferreira... — disse em voz baixa, como se saboreasse o nome. — Vulcânica, desbocada, teimosa... perigosa.

Ele lembrava perfeitamente da discussão da noite anterior. As palavras afiadas, o tom de voz dela cortando o ar como bisturi. Helena não aceitava suas ordens sem questionar. Ela argumentava, enfrentava, e quando sentia que estava certa, o desafiava com aquele olhar que misturava fúria e fogo.

E aquilo... aquilo era o que o deixava mais desconcertado.

— Por que ela me tira do eixo desse jeito? — perguntou-se, voltando à mesa e folheando prontuários como desculpa para ocupar as mãos.

Mas as imagens voltavam. A maneira como ela franzia a testa quando se concentrava. Como mordia o lábio inferior quando estava tentando se conter. Como a voz ficava mais baixa quando ela falava sobre os pacientes mais frágeis.

Ela tinha algo que ele não conseguia definir. Talvez fosse a coragem de ser autêntica, mesmo dentro de um sistema que exigia máscaras e etiquetas. Talvez fosse a intensidade com que ela vivia cada plantão, cada paciente, como se aquilo realmente importasse. Ou talvez fosse o fato de que, apesar de tudo, ela não parecia se importar nem um pouco com quem ele era.

— Ela não me idolatra... — murmurou, e percebeu o quanto isso era raro. A maioria dos colegas — e até de chefes — o tratava com reverência. Mas Helena o tratava como um igual. Ou melhor, como um rival.

*E isso era perigosamente atraente.*

No corredor principal, Helena atravessava apressada em direção ao bloco cirúrgico. Sabia que encontraria Rafael em instantes — a primeira cirurgia do dia era uma laparotomia de emergência, e ele já devia estar pronto.

Ela tentou preparar o espírito. Respirou fundo, ajeitou o crachá e manteve o olhar firme. Mas a verdade é que só de pensar nele, seu peito apertava de um jeito esquisito. Como se odiasse e desejasse, tudo ao mesmo tempo.

Entrou na sala de cirurgia e encontrou Rafael já paramentado, de costas, conferindo os instrumentos. O jaleco impecável. O cabelo no lugar. As luvas calçadas com precisão quase coreografada.

— Bom dia — disse ela, seca.

Ele se virou, e os olhos se encontraram por um segundo. Um segundo longo demais.

— Enfermeira Ferreira — respondeu ele, com o que parecia ser um sutil... sorriso?

Helena não gostava daquele sorriso. Ele tinha um ar de desafio, como se dissesse *"eu sei o que estou fazendo com você"*. E talvez soubesse.

— Tudo pronto? — ela perguntou, tentando soar indiferente.

— Sempre está — respondeu ele, e aquela resposta a irritou. Como se ele estivesse dizendo que só o toque dele bastava para o mundo funcionar.

Helena quis retrucar. Mas conteve-se. Estavam diante da equipe. Diante do paciente.

— Vamos salvar uma vida hoje — ela disse, em voz baixa, mais para si do que para ele.

— Sempre é esse o objetivo — respondeu Rafael, ainda olhando para ela.

E naquele instante, antes da cirurgia começar, antes da tensão explodir no centro cirúrgico, havia algo no ar. Um silêncio carregado. Um campo elétrico prestes a gerar faíscas. Ambos sabiam que estavam andando numa corda bamba entre repulsa e desejo. E ninguém sabia quem cairia primeiro.

Mas uma coisa era certa.

Eles já estavam perigosamente próximos do abismo.

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