Helena não conseguiu tirar Rafael Moretti da cabeça, mesmo após o término da cirurgia. Ela havia entrado naquele centro cirúrgico com a confiança de quem sabe o que está fazendo, mas sair dali com o peso da frustração e da irritação foi algo novo para ela. Ele não havia sido rude, exatamente, mas seu tom autoritário e sua falta de reconhecimento a deixaram desconfortável. Ela estava acostumada a trabalhar com médicos exigentes, mas havia algo no jeito de Rafael que a fazia sentir como se fosse invisível, como se fosse só uma peça no quebra-cabeça da sua grandiosidade.
Ela estava no vestiário do hospital, ainda com o avental de cirurgia, lavando as mãos com mais força do que o necessário, tentando descarregar a raiva que começava a se acumular. A água fria estava lhe dando um pouco de alívio, mas a irritação em seu peito não desaparecia. Ao olhar para o espelho, viu o reflexo de si mesma: seus cabelos castanhos, agora molhados, e o olhar cansado. Ela nunca fora de se deixar abalar por qualquer coisa, mas Rafael tinha o poder de fazê-la questionar tudo que ela acreditava sobre seu próprio controle. Quando ela finalmente se trocou e estava pronta para sair, alguém bateu na porta com firmeza. Ela hesitou antes de abrir, mas quando a porta se abriu, o rosto de Rafael Moretti apareceu no batente. Ela não teve tempo de esconder o desgosto que sentia por ele. — Enfermeira Ferreira — disse ele, a voz calma e calculada. — Preciso que me acompanhe até a sala de recuperação. O paciente que operamos hoje pode ter complicações, e você será fundamental para garantir que tudo corra bem. O tom dele, impessoal, não deixou espaço para uma recusa, mas Helena não podia negar que havia algo em seus olhos. Algo mais humano, mais vulnerável, que a fez sentir uma pontada de curiosidade. Mas ela não se deixaria enganar tão facilmente. Rafael era um enigma, e ela não estava disposta a ser uma de suas peças descartáveis. — Claro, Dr. Moretti — ela respondeu, tentando manter a voz firme, mas com uma pequena dose de sarcasmo que ele, provavelmente, não perceberia. Enquanto eles caminhavam pelos corredores do hospital, a tensão no ar era palpável. Helena podia sentir o peso do silêncio, e cada passo ao lado dele parecia aumentar a distância entre os dois. Rafael andava com uma postura impecável, seu traje cirúrgico sempre perfeito, sem nenhum fio de cabelo fora do lugar, uma verdadeira representação de controle e superioridade. Ela, por outro lado, não se importava muito com a perfeição. Ela era eficiente, prática e, quando necessário, direta. Era assim que ela sempre se destacava. — Você não é o tipo de pessoa que se intimida facilmente, não é? — Rafael perguntou de repente, quebrando o silêncio. Sua voz era fria, mas havia algo de observador nela, como se ele tentasse medir cada palavra que ela dissesse. Helena olhou para ele, surpresa com a pergunta. Era como se ele estivesse tentando sondá-la de maneira sutil, sem admitir que estava interessado em conhecê-la melhor. — Não, Dr. Moretti, não sou — ela respondeu, tentando não deixar o tom desafiador escapar. — Não sou fã de jogos de poder. Quando trabalho, estou focada no que importa: salvar vidas. Ele parou de andar por um momento, e Helena sentiu um calafrio percorrer sua espinha. Ele a encarava, com aquele olhar de quem via mais do que parecia à primeira vista. — Eu não estou jogando, enfermeira Ferreira. Eu sou assim, não faço concessões, especialmente quando se trata de vidas humanas — ele disse, a intensidade nos olhos revelando algo mais profundo. Talvez fosse a pressão do trabalho ou algum demônio pessoal que ele carregava, mas a maneira como ele disse aquelas palavras fez Helena perceber que Rafael não era apenas um cirurgião perfeccionista. Havia algo mais em sua determinação. — Eu entendo — ela respondeu, tentando manter a calma. Mas, no fundo, a palavra "concessões" ecoava em sua mente. Ela sabia que ele não aceitava falhas, mas o que ela ainda não sabia era se ele era incapaz de admitir suas próprias fraquezas. Eles seguiram para a sala de recuperação, onde o paciente estava sendo monitorado. Tudo parecia correr bem até que um sinal nos aparelhos começou a piscar de maneira alarmante. Os dois se aproximaram rapidamente, e Helena, instintivamente, se colocou ao lado de Rafael, suas mãos trabalhando em conjunto para estabilizar a situação. Enquanto trabalhavam, Helena percebeu algo curioso: apesar de sua postura fria, Rafael tinha uma calma quase desconcertante. Ele tomava decisões rápidas e eficazes, sem hesitação. Ela, por outro lado, era mais impulsiva, mas sabia que sua rapidez de raciocínio e sua experiência eram tão valiosas quanto sua habilidade técnica. Mas quando a situação foi resolvida e o paciente foi estabilizado, uma tensão inesperada tomou conta da sala. Eles estavam de pé, próximos um do outro, e Helena podia sentir o calor do corpo de Rafael à sua altura. Algo naquele momento parecia diferente. O olhar dele, que antes era apenas analítico, agora parecia mais... intenso. Ela não sabia se era a pressão do momento ou se ele estava reagindo da mesma maneira, mas uma faísca de desejo passou entre eles. Rafael foi o primeiro a se afastar, quebrando o silêncio com um suspiro que parecia ter sido tirado de seus pulmões. — Você não é uma enfermeira qualquer, Helena Ferreira — disse ele, o nome dela saindo de seus lábios com uma suavidade inesperada. — Mas cuidado. Pessoas como eu não se deixam envolver. Isso pode ser... perigoso. Helena olhou para ele, seu coração batendo mais rápido do que deveria. Ela não sabia o que ele queria dizer com isso, mas o que ela sentia era claro: havia algo ali, algo que poderia ser fatal ou transformador. O que ela não podia prever era o quanto suas emoções estariam prestes a se misturar com as linhas tênues entre atração e conflito. — Eu sei me proteger, Dr. Moretti — respondeu ela, com um sorriso enigmático. Ela se virou para sair da sala de recuperação, mas antes que a porta se fechasse, ela ouviu sua voz mais uma vez. — Não se proteja demais, Helena. Às vezes, a proteção é o que nos impede de sentir. Ela parou, a porta ainda aberta, e olhou para ele. O que ele havia dito reverberava em sua mente, e pela primeira vez, ela não sabia se deveria se afastar ou se aproximar. Ela não estava preparada para o que viria, mas uma coisa era certa: a história deles estava apenas começando.Helena entrou na sala de descanso das enfermeiras, jogando a bolsa com pressa na cadeira, sua mente ainda agitada pela última situação no hospital. O dia havia sido longo, e ela sabia que o que aconteceu na ala de recuperação entre ela e Rafael não podia continuar. As palavras que haviam trocado, as olhadas carregadas de tensão, tudo isso criava um peso que ela não estava pronta para carregar.Ela sentou na cadeira, tentando respirar fundo. Mas não demorou muito até que o som de passos firmes a tirasse da tentativa de relaxamento. Ela sabia quem era antes mesmo de vê-lo. A maneira como ele andava, tão confiante, tão dominante. Rafael Moretti não fazia questão de ser discreto. E ali estava ele, na porta da sala de descanso, com seu jaleco perfeitamente ajustado e um olhar que mais parecia avaliar do que cumprimentar.— Enfermeira Ferreira — disse ele, sem rodeios, sua voz baixa e impositiva. — Precisamos conversar.Helena respirou fundo e virou-se para encará-lo, os olhos dele queimand
O som ritmado dos sapatos de Helena ecoava pelos corredores do hospital como um metrônomo de frustração. Ela caminhava com pressa, o jaleco pendendo de um dos ombros, a prancheta apertada contra o peito. O relógio marcava sete e cinquenta e cinco da manhã — cinco minutos para o início do plantão. Mas o que a incomodava não era o horário.Era ele.Rafael Moretti.Dr. Perfeição, como algumas enfermeiras suspiravam nos corredores. Helena quase revirava os olhos sempre que ouvia os comentários. *“Ele é um gênio”, “Ele nunca erra”, “Você viu como ele segura o bisturi? Parece uma dança”*. Sim, ela já tinha visto. E sim, ele era mesmo tudo aquilo. Mas também era arrogante, controlador, metódico ao ponto de parecer que a humanidade havia sido extraída junto com o apêndice dos pacientes.E ela estava cansada disso.Abriu a porta do vestiário feminino com um empurrão e se jogou no banco de madeira ao lado dos armários. Tirou o jaleco amarrotado da bolsa, esticando-o com raiva antes de vesti-lo.
O silêncio da sala de descanso foi quebrado por um alarme estridente que ecoou pelos corredores como um grito de alerta. Helena levantou o olhar do prontuário que revisava, sentindo o frio familiar escorrer por sua espinha. O som do código vermelho era inconfundível: trauma grave, paciente em estado crítico chegando à emergência.Ela saltou da cadeira, já puxando a touca do bolso do jaleco e prendendo o cabelo com agilidade. Seus passos ecoavam acelerados pelos corredores do hospital enquanto enfermeiros corriam em direções opostas e o rádio no peito de um residente anunciava:— Acidente na rodovia central! Motociclista em politraumatismo, instável! Está a caminho da cirurgia. Tempo estimado: dois minutos.No centro cirúrgico, Rafael Moretti já estava em pé, como se tivesse previsto a chegada. O olhar cortante, a postura ereta, o bisturi já em mãos mesmo antes de vestir a paramentação completa. Quando o residente entrou e deu o relatório, ele nem piscou.— Quero a sala dois pronta em
O silêncio do corredor contrastava com a agitação que ainda pulsava dentro de Helena. Suas mãos tremiam levemente enquanto retirava a touca, o elástico enroscando-se no cabelo desgrenhado. O corpo pedia descanso, mas a mente ainda estava presa à sala cirúrgica — ao sangue, ao som ritmado dos monitores, ao olhar intenso de Rafael que a acompanhara o tempo todo como se ela fosse seu porto seguro no meio da tormenta.Ela encostou-se à parede fria do corredor, respirando fundo. Por mais que já tivesse enfrentado outras emergências, aquela... aquela fora diferente.— Tá tudo bem? — A voz grave, baixa, fez com que ela abrisse os olhos rapidamente.Rafael estava parado a poucos passos, ainda em avental cirúrgico, com a máscara pendurada no pescoço e o semblante mais... humano do que ela jamais vira. Sem a couraça da frieza habitual, ele parecia exausto. E mais bonito do que ela gostaria de admitir.— Sim — respondeu, ajeitando os cabelos soltos com os dedos. — Só recuperando o fôlego. E você
Helena passava os dedos pela alça da mochila quando avistou a silhueta parada junto ao portão lateral do hospital. Rafael. Ele estava ali, parado no escuro, como uma sombra fora de lugar. O jaleco jogado sobre o braço, o celular na outra mão, mas sem olhar a tela. Apenas... esperando. Ela considerou fingir que não o viu. Estava exausta. Não tinha mais energia para suas ironias ou sua frieza calculada. Mas também não era do tipo que recuava. — Me seguindo agora, doutor? Rafael virou o rosto, a expressão tão difícil de ler quanto sempre. — Te procurei para entregar isso — disse, erguendo algo em direção a ela. Um crachá. O dela. Helena passou a mão automaticamente no peito e percebeu que de fato não estava lá. — Ah. Obrigada. Ela esticou a mão para pegar, mas ele não soltou de imediato. Os dedos dele encostaram nos dela por um breve instante, e foi o suficiente para que um arrepio lhe percorresse os braços. Helena puxou o crachá sem comentar. Enfiou no bolso da mochila.
O hospital tinha um jeito estranho de silenciar gritos. Às vezes, os mais altos vinham de dentro.Ele não quis contar. Não quis colocar para fora. Naquela manhã, o corredor principal da ala cirúrgica estava cheio de passos apressados, vozes apressadas, e a urgência constante que pulsava como um coração gigante. Mas Rafael Moretti caminhava por ele como um espectro. O jaleco impecável, os cabelos perfeitamente alinhados, os olhos escondendo tudo o que o resto do corpo não conseguia disfarçar.Ele cruzou a ala sem dizer bom dia. Não que fosse seu costume ser caloroso, mas naquela manhã, até o silêncio dele parecia mais frio. Mais duro.— Ele está pior — comentou uma das residentes, em voz baixa, enquanto organizava os prontuários. — Parecendo... instável.— Dormiu aqui de novo, aposto — disse outra. — Esse caso de ontem mexeu com ele.Helena ouviu os sussurros ao fundo, mas não deu atenção. Seus olhos seguiram Rafael até ele desaparecer na antessala do centro cirúrgico. Algo em seu and
A noite caiu sobre o hospital como um cobertor pesado e abafado. Lá dentro, as luzes frias continuavam acesas, indiferentes ao que o tempo lá fora insistia em esconder. Rafael Moretti observava a cidade pela janela do oitavo andar. As ruas refletiam o brilho dos faróis como veias pulsando em meio à escuridão. Tinha encerrado a última cirurgia do dia sem uma palavra, e desde então, permanecia ali, imóvel, com o jaleco pendurado na cadeira e as mãos nos bolsos da calça. Ele havia voltado a fechar o rosto. — Achei que fosse ficar pra jantar com a equipe — disse Helena, surgindo à porta, com uma bandeja de comida embrulhada em isopor. — Até te trouxe isso. — Ela levantou o pacote. — Arroz, frango, saladinha que você provavelmente vai ignorar... Ele não se moveu. — Não estou com fome — respondeu, sem sequer olhar. Ela pousou a bandeja sobre a mesa de centro e cruzou os braços. — Você vai mesmo fingir que aquele momento de hoje cedo não aconteceu? — A cirurgia foi bem-sucedid
Ela chegou em casa e jogou a bolsa no sofá com força. O apartamento escuro parecia menor do que nunca. O silêncio gritou em seus ouvidos.Helena passou as mãos nos cabelos, andou de um lado para o outro e tentou — em vão — racionalizar o que sentia. Mas era impossível.Ver Rafael assim foi como sentir o próprio peito aberto. Porque ela sabia, mais do que qualquer um, o que havia por trás daquele comportamento. Era fuga. Autopunição. Uma forma de enterrar a dor antes que ela o engolisse por completo.Mas ela não era babá. Nem terapeuta.E, naquele momento, não sabia se estava mais decepcionada com ele... ou consigo mesma por ter acreditado que ele podia ser diferente.A única certeza era que, depois daquela noite, algo dentro dela também havia mudado.E talvez não tivesse mais volta.O dia seguinte amanheceu cinzento e abafado, como se o próprio céu soubesse que algo não estava certo. O hospital seguia seu ritmo habitual