O hospital tinha um jeito estranho de silenciar gritos. Às vezes, os mais altos vinham de dentro.Ele não quis contar. Não quis colocar para fora. Naquela manhã, o corredor principal da ala cirúrgica estava cheio de passos apressados, vozes apressadas, e a urgência constante que pulsava como um coração gigante. Mas Rafael Moretti caminhava por ele como um espectro. O jaleco impecável, os cabelos perfeitamente alinhados, os olhos escondendo tudo o que o resto do corpo não conseguia disfarçar.Ele cruzou a ala sem dizer bom dia. Não que fosse seu costume ser caloroso, mas naquela manhã, até o silêncio dele parecia mais frio. Mais duro.— Ele está pior — comentou uma das residentes, em voz baixa, enquanto organizava os prontuários. — Parecendo... instável.— Dormiu aqui de novo, aposto — disse outra. — Esse caso de ontem mexeu com ele.Helena ouviu os sussurros ao fundo, mas não deu atenção. Seus olhos seguiram Rafael até ele desaparecer na antessala do centro cirúrgico. Algo em seu and
A noite caiu sobre o hospital como um cobertor pesado e abafado. Lá dentro, as luzes frias continuavam acesas, indiferentes ao que o tempo lá fora insistia em esconder. Rafael Moretti observava a cidade pela janela do oitavo andar. As ruas refletiam o brilho dos faróis como veias pulsando em meio à escuridão. Tinha encerrado a última cirurgia do dia sem uma palavra, e desde então, permanecia ali, imóvel, com o jaleco pendurado na cadeira e as mãos nos bolsos da calça. Ele havia voltado a fechar o rosto. — Achei que fosse ficar pra jantar com a equipe — disse Helena, surgindo à porta, com uma bandeja de comida embrulhada em isopor. — Até te trouxe isso. — Ela levantou o pacote. — Arroz, frango, saladinha que você provavelmente vai ignorar... Ele não se moveu. — Não estou com fome — respondeu, sem sequer olhar. Ela pousou a bandeja sobre a mesa de centro e cruzou os braços. — Você vai mesmo fingir que aquele momento de hoje cedo não aconteceu? — A cirurgia foi bem-sucedid
Ela chegou em casa e jogou a bolsa no sofá com força. O apartamento escuro parecia menor do que nunca. O silêncio gritou em seus ouvidos.Helena passou as mãos nos cabelos, andou de um lado para o outro e tentou — em vão — racionalizar o que sentia. Mas era impossível.Ver Rafael assim foi como sentir o próprio peito aberto. Porque ela sabia, mais do que qualquer um, o que havia por trás daquele comportamento. Era fuga. Autopunição. Uma forma de enterrar a dor antes que ela o engolisse por completo.Mas ela não era babá. Nem terapeuta.E, naquele momento, não sabia se estava mais decepcionada com ele... ou consigo mesma por ter acreditado que ele podia ser diferente.A única certeza era que, depois daquela noite, algo dentro dela também havia mudado.E talvez não tivesse mais volta.O dia seguinte amanheceu cinzento e abafado, como se o próprio céu soubesse que algo não estava certo. O hospital seguia seu ritmo habitual
A porta da sala de descanso ainda estava se fechando quando Rafael sentiu o silêncio se tornar ensurdecedor.A frase final de Helena ecoava em sua mente como um bisturi mal direcionado: “Estou tentando esquecer que também te admirava como homem.”Ele ficou parado por longos minutos, olhando para o vazio, com os punhos cerrados e a mandíbula rígida. Queria dizer que ela estava errada. Queria convencer a si mesmo de que não precisava daquilo — dela. Mas a verdade era que, pela primeira vez em anos, alguém o tinha visto. E agora o olhava com decepção.E Rafael odiava decepcionar. Odiava mais ainda sentir.Jogou-se na cadeira como se os joelhos finalmente cedessem. Passou as mãos pelo rosto, tentando apagar o gosto metálico da raiva e o amargor do arrependimento. Ainda podia sentir o cheiro do perfume barato da mulher da noite anterior em sua roupa, mesmo depois de trocar o jaleco. Uma lembrança sórdida de sua fraqueza.Ele não tinha planejad
Helena atravessou os corredores do hospital com os ombros tensos e o coração apertado. Tentava focar na rotina, nos pacientes, nas tarefas. Tentava fingir que o dia anterior — e tudo que veio antes dele — não havia deixado um rastro dentro dela. Mas era impossível ignorar a cena que ainda queimava sob suas pálpebras: Rafael, saindo do bar, cambaleante, com uma mulher pendurada no braço.Ela não se sentia traída. Eles não tinham nada — nenhuma promessa, nenhum compromisso. Mas, ainda assim, ver aquilo a atingiu com força. Não por ciúmes. Era decepção. Decepcionada por ter acreditado que havia algo mais sob a frieza dele. Algo que ela podia alcançar.Eu fui ingênua, pensou, enquanto anotava o prontuário de um paciente recém-operado. Suas mãos tremiam levemente, mas o rosto permanecia impassível. Ela tinha prática nisso. Ser forte. Ser racional. Ser quem aguenta tudo.Ao cruzar com Rafael no corredor pela manhã, o ar pareceu sumir por um instante. Ele desviou
A cirurgia começou pontualmente. O paciente era um homem de meia-idade, vítima de um acidente doméstico grave. A fratura era complexa e exigia sincronia absoluta entre a equipe.Rafael deu os primeiros comandos.— Precisamos estabilizar o quadril antes de avançar. Ferreira, o afastador.Helena entregou o instrumento sem dizer uma palavra. O contato entre suas mãos foi mínimo. Quase um toque fantasma.Ele esperava uma resposta, um comentário, até mesmo uma provocação. Mas ela permaneceu em silêncio.— Fixadores externos — pediu ele, após um tempo.— Estão prontos, doutor — respondeu, profissional, fria.A cirurgia seguiu como um balé impessoal. Cada passo técnico era executado com perfeição, mas faltava algo — aquela conexão quase telepática que eles tinham nas salas anteriores. A sintonia silenciosa agora estava quebrada.Duas horas depois, ao fim do procedimento, Rafael tirou as luvas e olhou para ela. Helena e
O hospital parecia respirar um ritmo próprio, abafado e pesado, como se cada parede carregasse fragmentos do que havia acontecido entre eles. Helena passou o dia mergulhada no trabalho, os olhos fixos em prontuários, os passos rápidos pelos corredores, a mente focada em tarefas que a impediam de pensar demais.Rafael, por outro lado, parecia uma sombra em seu campo de visão. Ele estava ali — nas reuniões rápidas, nas salas de cirurgia, nos corredores estreitos —, mas sempre à distância, sem ousar se aproximar. Era como se o espaço entre eles tivesse se tornado um território proibido, repleto de silêncios que diziam muito mais do que qualquer palavra.No fim da manhã, foram escalados para trabalhar juntos novamente: um paciente jovem, vítima de um acidente esportivo, precisava de uma cirurgia ortopédica delicada.Quando Helena entrou na sala de cirurgia, já paramentada, encontrou Rafael ajeitando os instrumentos na bancada. O olhar dele cruzou o dela por uma fração de segundo — rápid
O segundo dia de Clara no hospital começou com a mesma energia vibrante dela — e um cuidado especial em observar tudo ao seu redor. Helena, fiel a si mesma, tentava manter a distância de Rafael, focando apenas no trabalho, mas Clara, com seu olhar atento, já começava a juntar as peças.Durante a troca de plantão, Helena e Clara estavam revisando as fichas dos pacientes no balcão da emergência quando Rafael se aproximou. A tensão no ar era quase palpável.— Ferreira — chamou ele, num tom que tentava soar neutro. — Preciso que me acompanhe em uma avaliação no centro cirúrgico.Helena manteve os olhos na prancheta por mais um segundo, respirou fundo e, só então, ergueu o olhar.— Claro, doutor Moretti — respondeu, com uma formalidade cortante.Sem sequer um olhar para Clara, Rafael virou-se e começou a caminhar. Helena o seguiu, mantendo uma distância segura, como alguém que conhece o calor do fogo e sabe que se aproximar demais é um erro.Clara observou a cena, o cenho levemente fra