– Mas... Doutor, você tem ideia do que está me pedindo? Logo para mim?
Um homem alto, magro, com óculos e vestido com jaleco branco, sentado de frente para ele respondeu bem seguro:
– Essa é a única opção que consegui para você. Depois de tudo o que aconteceu, não acho que você tenha muitas escolhas, meu amigo.
– Mas... depois de tudo... É muito difícil.
– Eu sei, Alex. Entretanto, você sabe qual é a outra opção.
Alex coçou a cabeça. Estava vestindo uma calça preta, camisa azul e um casaco cinza. Era quase final da tarde e o frio insistia em chegar.
– Não sei se seria tão ruim assim.
– Alex, não quero entrar de novo nessa questão. Você sabe que seria ruim sim.
– É o que me resta...
– Restava. Consegui uma alternativa, como lhe prometi.
Mesmo sendo um homem alto, sentia-se pequenininho naquele momento. Sabia que o doutor tinha razão. Aquela era a chance de sua vida. Se a perdesse, não teria um destino muito agradável o esperando.
Por outro lado, não sabia se queria uma chance. As memórias recentes o atormentavam.
Em sua mente, percorreram lembranças de quando era garoto e idealizava chegar exatamente na vaga que estavam lhe concedendo. Era um sonho antigo. Porém, agora, depois de todos os acontecimentos recentes em sua vida, não se sentia mais capacitado para aquele fim. Não era questão de formação. Era questão de quem ele se tornara e tudo que fizera recentemente.
– Doutor, eu...
– Pense bem nisso tudo. Olhe como um todo. É a chance de voltar a fazer a coisa certa.
Olhou para um espelho que ficava na parede da direita. Viu aquele rosto abatido, envelhecido pela vida.
“Quem é esse que me tornei? Onde foi que me perdi?”
Não se sentia incapacitado. Sabia que poderia realizar tudo com muita segurança. Aliás, era uma de suas especialidades. Sentia apenas que assumir a sagrada profissão de educador naquele exato momento da sua vida não era certo. E o doutor sabia disso também.
– Alex, você sabe que de todos que tenho, é o único que posso confiar em realizar um trabalho certo e confiável. Além disso, com a seriedade de todas as coisas, essa pode ser mais do que uma chance para você. Tem ideia do que pode lhe acontecer?
– Não é esse somente o problema.
– Então qual é?
Alex tentou mais uma vez:
– Doutor, o que será se eles descobrirem tudo que aconteceu?
O doutor levantou e respirou fundo:
– Alex, estou fazendo o possível para que essa história continue em sigilo. Pretendo que seja assim até que eu consiga convencê-los de que você está bem e não precisa ser monitorado mais. Por mais que uma parte foi descoberta, nem tudo eles sabem. Os principais detalhes estão entre nós dois. Mais do que isso. Essa é a chance de provar que eles estão errados.
– E se eles estiverem certos?
O doutor respirou, levantou os óculos e coçou os olhos que ardiam. Estava há dias sem dormir, analisando se aquela era realmente a melhor opção.
– Confie em mim, Alex. Sei o que estou falando.
Alex levantou. Olhou para o doutor, aquele que era o único a quem confiara todos os seus segredos, manias, erros e acertos. Era, durante todo esse tempo, o único amigo.
Por mais que não achasse correto, sabia que não poderia ignorar tudo que seu amigo fizera. Não era sua obrigação, mas tomara difíceis para que Alex pudesse rever a vida e seguir em frente.
Sim, deveria aceitar por todo tempo investido, por tudo que lhe foi dado, pela confiança em meio ao caos.
– Doutor, se você confia em mim, acho que devo fazer isso. Afinal, você é o único em quem confio.
O doutor não escondeu um sorriso:
– Alex, vamos acertar tudo. Primeiro, veja como uma oportunidade de recomeçar. Você vai deixar tudo e começar uma nova vida. Além disso, duas vezes na semana no mínimo preciso de um encontro pela internet com você para que me passe um relatório de tudo que está acontecendo em sua vida naquele lugar. Mais do que isso, preciso que você observe o funcionamento daquele abrigo e a conduta de todos que ali trabalham. Recebi recentes denúncias de problemas internos, e quero que descubra tudo o que puder para mim. Lembre-se. Você vai atuar como professor. Só que entre nós, mais do que isso. Vai descobrir o que acontece lá.
Os dois se abraçaram. Alex sabia que demoraria a se encontrar com seu amigo pessoalmente de novo.
Era o momento da virada. Deixaria para trás sua vida, seus problemas e recomeçaria tudo. Na verdade, era o que precisava naquele momento. Sabia que o doutor tinha razão. Ali, estava se destruindo.
Uma semana se passou desde aquele encontro. Alex entrou em um ônibus de viagem. Passaria cinco horas e meia ali para chegar a uma cidade no interior, onde assumiria a vaga como professor de informática em um abrigo de crianças órfãs.
Sabia que realizar aquele trabalho social poderia trazer nova vida a ele. Esperava assim. Não aguentaria mais problemas como o que recentemente enfrentou.
Por outro lado, sabia que fora enviado para este cargo por algum motivo especial. “Algo está acontecendo lá e quero que você descubra”. As palavras do doutor ecoavam em sua mente. Se por um lado iria recomeçar, por outro, temia o que poderia encontrar.
Olhou para trás pela última vez e disse baixinho:
– Adeus, para tudo que vivi aqui. Não levo comigo nem mesmo as recordações.
O ônibus percorria um caminho por meio a árvores e matas. Alex escutava uma música relaxante que dizia:
“Que uma estrela do anoitecer
Brilhe sobre você
Que quando a escuridão cair
Seu coração seja verdadeiro.”
Uma lágrima solitária percorreu seu rosto e, pela primeira vez em um ano, deixou um sorriso tímido brotar em seus lábios.
Adormeceu, com a certeza que seu novo destino estava traçado.
Alex desceu do ônibus na frente da antiga casa que se tornara um orfanato. Viu uma placa, já apagada, escrito apenas “Abrigo”. Era uma manhã de primavera e o sol despontava sobre o lugar exibindo a beleza daquela construção. A casa pertencera a um senhor milionário que morara na rua quando criança e não queria ver nenhuma criança passando pelo que passou. Equipou a casa com quartos e salas de aula. Assim, poderia dar educação de qualidade e abrigo para todos. A casa, com 3 andares, contava com 18 quartos, 6 salas, 3 cozinhas e 8 banheiros. O primeiro andar ainda contava com a administração e a sala dos professores. A fachada lembrava uma catedral europeia do século XVII. Criara o abrigo cinquenta anos atrás, e o admin
Alex dormira mal. Tivera pesadelos. Os mesmos de sempre. Lembranças que o perseguiam e que jamais sairiam de sua mente. Eram tão intensos que acordara e sua camisa estava molhada de tanto transpirar. Tomou um banho frio. Detestava água fria, mas era o que fazia desde então. Cada gota fria em seu corpo era como se apanhasse, como se culpasse seu corpo e alma por tudo que acontecera. Escutara do doutor que não foi sua culpa e que deveria deixar o passado de lado e procurar um novo sentido para sua vida, porém era em cada banho gelado que se punia. E nada poderia fazer com que se sentisse menos culpado. Saiu, com frio, e viu o corpo com uma coloração roxa no espelho. Se secou e colocou uma roupa quente. De um dia
Amanheceu. Alex não dormira em nenhum momento. Levantou de sua cama vestindo ainda a roupa que usara no trabalho no dia anterior. Sentia-se sufocado. Tirou a roupa e entrou para seu banho gelado. Ao sair, colocou uma roupa confortável. Estava se sentindo mal ainda. Falta de ar. Sua cabeça doía. Ele se arrastou até o canto da cama, de onde pegou uma caixa de remédios. Tremia. Suas vistas estavam embaralhadas. Dentro da caixa, pegou um pequeno recipiente e pingou diretamente na boca dez gotas de um remédio. Lembrou do doutor falando: “não use mais do que duas gotas por dia”. Duas gotas. Não faziam efeito para Alex
Alex passou o dia em torno de Jenifer. Queria realmente ter a certeza de que a deixaria bem. O seu nível de preocupação com a menina era tão alto que deixou de lado até mesmo sua crise de ansiedade e seus problemas, focando somente em deixa-la bem.Assim como nos outros dias, a turma de Jenifer foi a última a ser levada para a sala. Curiosamente, Pedro chamou a menina para ser sua dupla. E ela aceitou. Alex não pode deixar de ficar feliz e encantado com as crianças, que, tão inocentes, deixaram de lado uma briga para poderem estudar e se divertir juntos naquele momento.Por outro lado, Alex conhecia a maldade humana em sua essência e não se enganava com as pessoas. Percebera que Estela e João estavam planejando algo para a menina. E não poderia deixar de se preocupar, já que a menina era pequena e inocente.Talvez nem tanto. Talvez ela tivesse algum segredo tamb&eacu
Dois dias se passaram sem que nada acontecesse diferente naquele abrigo. A menina Jenifer continuava passando os dias na sala de informática, sem que nenhum professor fizesse questão que ela estivesse nas aulas. Estela observava a menina e a relação que estava criando com Alex. João tentava encontrar uma forma de entrar na sala de informática, sem sucesso.A menina conversava um pouco mais com o professor, sem revelar nenhum detalhe. Só dizia que estava se sentindo mais feliz. Ainda mais depois que fizera amizade com Pedro, o menino que anteriormente entrara em conflito com ela.No final de semana, várias crianças, incluindo Pedro, iam para casa de parentes. No abrigo, ficaram apenas Jenifer e mais três crianças. Alex resolvera fazer um intensivo naquele lugar. Dissera para Estela que aproveitaria o final de semana para consertar os computadores antigos.Assim, passou tempo monitorando a
Aquela semana correu sem nenhuma novidade para Alex. Todas as aulas foram sem problemas. Jenifer parecia estar feliz com a companhia de Pedro e trocava algumas palavras com Alex.Ele, por sua vez, não queria que a menina se sentisse pressionada e não perguntou mais sobre o vestido. Por mais que tenha procurado todos os dias no abrigo, em todos os lugares. Sabia que aquele vestido poderia trazer as respostas, mas não poderia imaginar quem pegara no lixo.O doutor conversava quase que diariamente com Alex, procurando sempre ajudar o professor a se manter firme e a exercer sua profissão com excelência, sem esquecer de observar a menina Jenifer, que ainda não entrara na lista que recebia do abrigo.Como um dos responsáveis pela ONG, sentia-se responsável por cada criança que entrasse no abrigo. Conhecia bem a filosofia daquele lugar. Tinha um parentesco distante com o fundador do abrigo e queria manter a
Amanheceu novamente e o apartamento de Alex fora tomado por raios solares logo cedo. Passarinhos cantavam em sua janela e já se começava uma movimentação na cidade. Mesmo sendo uma cidade pequena, no interior, ela possuía um centro comercial grande perto do prédio que Alex morava. Ali, havia grande movimentação todos os dias.A estrada que levava ao abrigo se afastava da cidade e seguia em direção à estrada. Era a estrada que Alex percorria todos os dias naquele lugar. Criara uma rotina logo nos primeiros dias ali presente.Naquela manhã, sentia mais disposição. Talvez porque os dias estavam calmos no abrigo. Jenifer estava feliz e já aproveitava das amizades que ali fizera. Estela e João continuavam com seu comportamento estranho, entretanto, não faziam nada em relação a menina. As cozinheiras estavam com seu padrão comum, ignoran
Sair do abrigo perto da hora do almoço fora algo interessante para Alex e a menina Jenifer. Os dois andaram de mãos dadas até o carro do professor. Ali, ele colocou a mochila no banco de trás. A menina insistiu em sentar na frente.– Desculpe, Jenifer. Tenho que seguir a lei. Não posso arriscar perder a minha carteira novamente.Ela demonstrou irritação e sentou no banco de trás.– Para onde vamos?Alex olhou para ela, sorrindo:– Criança, temos uma tarde inteira para fazermos o que quisermos. Mas, antes, precisamos almoçar. Está na hora de você comer.Ela sacudiu a cabeça. Não comera nada naquele dia. Tivera uma manhã triste ao saber que os amigos iriam para casa de pessoas e ela ficaria ali, sozinha. Não é que não tivesse alguém, mas esperava que esse alguém não a encontrasse al