Feche os olhos e ouça o clamor de sua alma.”
Cada vez que minha pele sente o gélido toque da noite, simultaneamente minha mente é invadida por um tsunami de lembranças. Momentos passados, tão claros, tão vívidos que chegam a parecer com instantes pessoais e atuais. Mas de quem são essas memórias?
Hélio estava curioso do porque tinha de urinar de pé enquanto sua mãe o fazia sentada. A explicação era categoricamente fria e vazia; porque você é menino. As perguntas giravam em sua mente o tempo todo, e as mais fortes e em maior constância eram: e se ele fosse menina, e o que tinha depois do céu? Obviamente as perguntas não estavam relacionadas, não ainda. Mas tanto fazia, pois, inexoravelmente suas questões ficariam sem respostas mesmo.
Hélio nunca teve problemas em aceitar outras crianças em seu círculo social. O que não se repetia quando ele tentava entrar em outros círculos. Mesmo sendo criança, ele detinha para si um código valioso de ética e moral, que até então nem mesmo ele sequer sabia que existiam. Esses valores eram inatos a ele, e para uma criança, ele os colocava em prática de maneira muito eficaz. Se tenho algum exemplo? Claro!
As imagens são borradas, distantes e um pouco enevoadas. As falas são imprecisas e contam com um pouco de interpretação e imaginação, mas a essência do evento é indelével. A garota, prima de segundo grau dele, estava sobre uma mureta. Ele segurava sua mão, ajudando-a se equilibrar enquanto ela caminhava até o final da trilha, que imaginava ser uma corda bamba sobre um rio perigoso. O primo legitimo, estava por perto, mas não lhe estendia a mão e sim gritava a cor da calcinha da menina. Envergonhada, ela tenta descer da mureta e rala o pé. Hélio a abraça e pede que deixe “o banana” — sendo essa a maior ofensa que conhecia no momento — do primo para lá.
O episódio foi tão impactante para Hélio, que ele contou para sua mãe e pediu que ela brigasse com o primo, mas isso não aconteceu, por conta de vários motivos óbvios.
Hélio dizia à sua prima que sempre a protegeria, fosse o que fosse, poderia contar para ele, que o problema seria resolvido. O mundo mágico infantil não possui limitações, estas são inseridas mais tarde, conforme as crianças dão ouvido aos adultos. Ele cresceu com sua prima, sempre preocupado e sempre curioso sobre sua situação e seus sentimentos, mas acabaram se afastando na adolescência de maneira permanente.
Ah sim! O vento sopra um pouco mais forte agora, posso sentir meus cabelos chicoteando em suas asas e varrer a minha face. Cabelos… madeixas… longa guedelha.
Hélio tinha uma grande admiração por cabelos longos, mas os seus eram enrolados demais para crescer, sobretudo na fase dos piolhos. Ao invés de tratar do problema com algum produto químico, sua mãe raspara sua cabeça, arrancando o mal pela raiz, literalmente. Hélio sentia-se despido, desprotegido, incompleto, mas sabia que fios negros voltariam a crescer, no entanto, nunca seriam compridos e então passou a desejar que seus cabelos mudassem para ficarem iguais aos da She-Ra. Mesmo pedindo ao papai do céu e papai Noel, isso não aconteceu. Ele acabou adormecendo esse desejo.
Sim, pois, nenhum desejo desaparece por completo.
“Feche os olhos e ouça o mundo gritar e chorar ao seu redor.”As luzes azuis e vermelhas piscam freneticamente. Ouço sons agudos e distantes ecoando ao meu redor. Será possível que tamanha cacofonia me impedirá de mergulhar mais fundo nessas memórias? Não, penso que não. Essas luzes me lembram…O natal chegara depressa. Ao menos o primeiro de que Hélio se lembrava. Nenhum dos seus desejados presentes estava na sala quando despertou. A bicicleta vermelha, o tênis que pulava bem alto, a boneca Barbie, o boneco do Fofão e nem mesmo a marreta do Chapolin. Bastava um, mas nenhum estava lá. Ao invés desses havia um caminhão de madeira repleto de soldadinhos de plástico, um rádio à pilha e um revólver de espoleta. Fora o primeiro natal traumático daquela criança.Hélio possuía uma simpatia m
“Feche os olhos, e ouça minha voz, ela acalentará seu coração.”Hélio era filho de mãe solteira, diarista que dependia da ajuda da família para cuidar de seus filhos enquanto estava fora. Nada aborrecia mais o garoto do que ficar na casa da avó. Os motivos eram muitos. Ele não podia correr, espalhar brinquedos pela casa, brincar com o cãozinho do tio, fazer barulho, pois, atrapalhava a soneca vespertina da vó, nem assistir televisão por que gastava muita energia… Os dias na casa da avó eram tediosos e longos.Mas não era isso que o faziam não querer ir para lá. O tédio era suportável, as chineladas e pimentas na boca — quando escapava um palavrão — também. Os brinquedos que iam parar no lixo eram mais difíceis, mas ainda assim suportável.O que amedrontava o garoto era se
“Feche os olhos, não quero que me veja chorar.”O cheiro é muito forte. Gasolina em combustão, borracha queimada, e um odor ferroso se espalham no ar. Cheiros sempre trazem muitas recordações.Era próximo do dia das mães e a professora decidiu presentear a todas com um cisne em miniatura, de gesso, pintados pelos alunos. Cada um pintaria uma peça e entregaria para sua mãe no dia da festa.Os meninos pintavam o cisne de azul, branco, preto e até amarelo. Algumas meninas pintaram de vermelho, branco, e azul-claro. Hélio estava indeciso e perguntou à professora se podia pintar de qualquer cor. Ela disse que sim. Então ele misturou as tintas branca e vermelha, criando uma tonalidade de rosa, e pintou o cisne com essa cor. O cheiro daquelas tintas são tão fortes, por que liberam para o uso infantil, heim?Os meninos caçoavam dele
“Feche os olhos e sinta as nuvens se abrirem e do céu ecoar milhares de trombetas celestiais.”Uniformes azuis. São tão presentes em minha vida, talvez em todas as vidas. Eles se movem tão lentamente. Isso me lembra…O ginásio veio de repente. A escola era diferente de tudo o que Hélio tinha como habitual. Talvez essa seja uma das fases mais longas na vida dele, minha vida ou nossa vida. Muitas das experiências de vida foram adquiridas durante a adolescência. As dúvidas mais sombrias também apareceram nessa fase.Já de início Hélio percebeu que aquele lugar não seria legal. Ele não poderia se expressar como se sentia, não podia ser ele mesmo. Como ele percebeu isso? Bem, iniciando diálogos com os garotos, descobriu que as bandas de rock das quais ele gostava, os moleques julgavam que eram bandas para bichas. Depois, dis
“Abra os olhos, quero que me veja em todo meu esplendor.”A chuva está um pouco mais forte. As gotas estão geladas e já não são mais bem-vindas. O céu é constantemente iluminado por raios azuis. Mesmo sabendo que são, na verdade uma descarga elétrica mortal, ainda assim os acho maravilhosos. Talvez seja uma coisa de pessoas solitárias, olhar os céus nos dias de chuva.A chuva escorria pelos vidros do ônibus como se fossem lágrimas vistas do lado de dentro. Hélio retornava de uma excursão escolar. O parque visitado era maravilhoso, repleto de árvores raras, lagos e animais silvestres. Contrastando a vida, existiam as pistas de decolagem de aviões em miniatura e as quadras poliesportivas.Hélio decidiu tentar uma aproximação com alguns garotos. Eles o aceitaram no time de futsal, mas ele não levava j
“Abra os olhos, veja minhas alvas asas envolver-te sob a chuva.”O tempo corre, ou corremos pelo tempo? Garantidamente, nossas vidas passam inexoravelmente. Quanto tempo temos? Essa é uma pergunta que não podemos responder olhando para um relógio.Ano novo; vida nova? Não. Hélio vivia a mesma vida, embora as diferenças fossem claras para alguns, para ele mesmo não era. O garoto mirrado, vestido timidamente com o uniforme escolar, tornou-se o rapaz de rosto pintado vestindo jeans rasgados e camisetas pretas. Hélio não reclamava mais do padrasto e o enfrentava com mais afinco.Ele não se escondia mais atrás das portas e da multidão, agora ele tomava a frente, embora ainda estivesse se escondendo atrás da maquiagem e dos crucifixos prateados. A rebeldia não surgiu repentinamente, foi construída de forma demorada e pesadamente. Item por item
“Abra os olhos, olhe meu sorriso, vai ficar tudo bem.”Primeiro um disparo, depois outro e por fim o terceiro. Desde que foram inventadas as armas de fogo, quantas pessoas será que morreram vítimas delas? É muito difícil responder, mas bem fácil de imaginar. Basta que você imagine uma só pessoa, aquela de quem mais gosta e extrapolar a dor para todo o mundo.No exército o mundo era diferente, não é a toa que eles o chamam de inferno verde. Lá Hélio sentia a grande pressão que era exercida em cima de seu ser, de sua mente, sua alma, suas vontades, tudo estava aprisionado em baixo de um uniforme camuflado. Já de início, ele soube que teria de suprimir todos os seus desejos. Seus cabelos foram cortados, assim como suas unhas. Por um bom tempo ele estaria longe dos palcos, longe de sua essência.Hélio fora ensinado a disp
“Abra os olhos e me veja erguer-me perante o mundo.”É incrível como as pessoas projetam sua felicidade em atos e corpos alheios e não se dão conta de que a verdadeiro júbilo não existe. Não existe um pote de ouro no fim do arco-íris. O que lhe faz feliz, é a jornada em busca da felicidade, e os momentos felizes que vive. Infelizmente Hélio percebera isso muito tempo depois. Assim como a maioria das pessoas, ele ainda estava atado a ideia de que é necessário algo ou alguém para torná-lo satisfeito da vida.O namoro ia bem, eles se entendiam e conversavam bastante. A garota era legal, bonita e inteligente. Planejavam viagens e o futuro dos dois. Hélio estava feliz. Sua mente começava a descansar e se desprender dos ensinamentos militares, deixara de lado o patriotismo ilusório e passou a questionar a sociedade na totalidade. Aos pou