“Feche os olhos e sinta o vento de minhas asas tocar a sua face.”
É noite. Sinto o ar gélido arrepiar minha pele. A chuva cai molhando meu corpo deitado ao chão. Sinto as gotas tocarem minha pele e escorrerem por ela, procurando seu inexorável destino cíclico. Minha visão está turva, manchada de vermelho, mas ainda posso ver as luzes artificiais brilhando acima dos homens tentando enganá-los, dizendo que são estrelas, não caio mais nessa. Vejo além delas, as nuvens carregadas e escuras despejando sobre a Terra seu pranto desesperado, por todos os filhos perdidos e todo o mau recebido, por nossa culpa. Elas se afastam e então vejo luzes piscando de maneira lenta e fraca, são poucas, mas elas estão lá, estrelas vivas de verdade.
As estrelas parecem estar ao alcance de minha mão erguida ao céu, mas quando fecho os dedos, nada posso sentir entre eles. Não, não estou decepcionada, elas existem para serem contempladas e não para serem possuídas. Essa é maravilhosa essência das estrelas.
Meu corpo está arrepiado por conta da chuva e do sopro álgido da noite. Tento me recordar de como tudo aconteceu, de como cheguei aqui, de quem sou, e tudo o que me vem à mente é… Estrelas.
Sinto que às vezes posso chegar até lá. Pertinho delas, olhá-las de igual para igual, sentir o calor de seus corpos e contemplar a beleza incomparável de uma obra de arte criada a partir de poeira universal. Ou será que realmente foi uma divindade que construiu tudo isso? Bem, isso não importa mesmo, não mais. Estou livre desse padrão reflexivo.
As luzes azuis e vermelhas estão piscando rapidamente fazendo com que meus olhos doam, mas não quero fechá-los. Estou recebendo flashes de memórias, e eles são tão claros, tão fortes. Sim. Agora me lembro de como tudo começou, foi na infância.
Eu era apenas uma criança, mas tinha a certeza de que tudo podia ser contestado. Tinha a certeza de que o mundo era mais estranho do que parecia ser. Eu tinha dúvidas as quais os adultos não podiam sanar. Na maioria das vezes, eles nem sequer faziam questão de realmente ouvirem o que eu estava perguntando. Logo cedo aprendi que se você quer uma resposta, precisa criá-la com base nas informações que colhe. Foi o que fiz ainda criança.
Usando minha imaginação e informações fragmentadas que obtive, passei a imaginar minha vida em dois universos paralelos. Em um deles eu vivia minha fatídica e imposta vida comum, no outro assistia à fantasia do que eu queria ser, do que julgava que deveria ser.
E assim, iniciou-se a grande saga de uma jornada dupla rumo a um destino desconhecido e presumivelmente cruel.
Hélio faz parte do meu passado. Mas é tão parte minha quanto sou dele. Experiências divididas são para vida toda. E graças a elas, pude chegar aonde cheguei e conquistar tudo o que conquistei.
Ainda criança, Hélio queria saber de onde vinham os bebês. Quando soube que as mães davam à luz a seus filhos, queria entender o processo, mas como sempre fazem, os adultos o enganaram dizendo que a cegonha trazia os bebês para suas progenitoras, ou que ela comia algum vegetal qualquer e os rebentos iam parar em suas barrigas. Essa segunda explicação sempre vinha acompanhada da pergunta de pôr onde elas saiam. E nunca era respondida.
Hélio resolveu criar uma explicação para si mesmo. Um dia enquanto estava no banho, começou a observar seu corpo e notou que o umbigo era um pouco fundo. Estava tudo muito claro para ele, os bebês saiam das barrigas das mães pelo umbigo.
Aquilo foi realmente genial e reconfortante. Por muito tempo não precisou mais pensar sobre o assunto. Mas aí vieram outras dúvidas. Por que homens tinham barbas e mulheres não, porque as moças usavam batom e os rapazes não, e outras questões a respeito do figurino dos adultos.
A lembrança da sua primeira bronca é muito forte. Ele queria saber como era estar de batom e pó no rosto. Via sua mãe fazer isso o tempo todo quando ia sair, então, no dia em que iria visitar seus primos, nada mais justo do que usar maquiagem para estar bem apresentável. Pois bem! Acontece que, a cabeça dos adultos não funciona dessa forma. Sua mãe entrou no quarto e viu Hélio com a cara toda pálida de tanto pó e a boca borrada com batom vermelho, de início ela se assustou pensando que ele havia se machucado, mas quando entendeu o que estava acontecendo, agarrou-o pelo braço e sacudiu-o com violência gritando com ele, perguntando o que ele estava fazendo com suas coisas.
Hélio não tinha uma resposta agradável para aquela situação. Calou-se e limitou-se a chorar. Sua mãe lhe bateu com um chinelo e o proibiu de tocar novamente naqueles itens. Ele não entendia o porquê. Pensava a respeito, mas não tinha coragem de perguntar, pois, ainda sentia as dores das chineladas. Ficou imaginando que a raiva expressada por sua mãe vinha do fato de aquelas coisas pertencerem a ela e somente a ela. Então Hélio criou mais uma explicação para suas dúvidas. Se quisesse se maquiar para sair, deveria ter suas próprias maquiagens.
Lembranças de duas vidas colidem numa só mente, num momento delicado. Não é tão fácil saber de onde vieram. Mas até que estou indo bem.
Feche os olhos e ouça o clamor de sua alma.”Cada vez que minha pele sente o gélido toque da noite, simultaneamente minha mente é invadida por um tsunami de lembranças. Momentos passados, tão claros, tão vívidos que chegam a parecer com instantes pessoais e atuais. Mas de quem são essas memórias?Hélio estava curioso do porque tinha de urinar de pé enquanto sua mãe o fazia sentada. A explicação era categoricamente fria e vazia; porque você é menino. As perguntas giravam em sua mente o tempo todo, e as mais fortes e em maior constância eram: e se ele fosse menina, e o que tinha depois do céu? Obviamente as perguntas não estavam relacionadas, não ainda. Mas tanto fazia, pois, inexoravelmente suas questões ficariam sem respostas mesmo.Hélio nunca teve problemas em aceitar outras crianças em se
“Feche os olhos e ouça o mundo gritar e chorar ao seu redor.”As luzes azuis e vermelhas piscam freneticamente. Ouço sons agudos e distantes ecoando ao meu redor. Será possível que tamanha cacofonia me impedirá de mergulhar mais fundo nessas memórias? Não, penso que não. Essas luzes me lembram…O natal chegara depressa. Ao menos o primeiro de que Hélio se lembrava. Nenhum dos seus desejados presentes estava na sala quando despertou. A bicicleta vermelha, o tênis que pulava bem alto, a boneca Barbie, o boneco do Fofão e nem mesmo a marreta do Chapolin. Bastava um, mas nenhum estava lá. Ao invés desses havia um caminhão de madeira repleto de soldadinhos de plástico, um rádio à pilha e um revólver de espoleta. Fora o primeiro natal traumático daquela criança.Hélio possuía uma simpatia m
“Feche os olhos, e ouça minha voz, ela acalentará seu coração.”Hélio era filho de mãe solteira, diarista que dependia da ajuda da família para cuidar de seus filhos enquanto estava fora. Nada aborrecia mais o garoto do que ficar na casa da avó. Os motivos eram muitos. Ele não podia correr, espalhar brinquedos pela casa, brincar com o cãozinho do tio, fazer barulho, pois, atrapalhava a soneca vespertina da vó, nem assistir televisão por que gastava muita energia… Os dias na casa da avó eram tediosos e longos.Mas não era isso que o faziam não querer ir para lá. O tédio era suportável, as chineladas e pimentas na boca — quando escapava um palavrão — também. Os brinquedos que iam parar no lixo eram mais difíceis, mas ainda assim suportável.O que amedrontava o garoto era se
“Feche os olhos, não quero que me veja chorar.”O cheiro é muito forte. Gasolina em combustão, borracha queimada, e um odor ferroso se espalham no ar. Cheiros sempre trazem muitas recordações.Era próximo do dia das mães e a professora decidiu presentear a todas com um cisne em miniatura, de gesso, pintados pelos alunos. Cada um pintaria uma peça e entregaria para sua mãe no dia da festa.Os meninos pintavam o cisne de azul, branco, preto e até amarelo. Algumas meninas pintaram de vermelho, branco, e azul-claro. Hélio estava indeciso e perguntou à professora se podia pintar de qualquer cor. Ela disse que sim. Então ele misturou as tintas branca e vermelha, criando uma tonalidade de rosa, e pintou o cisne com essa cor. O cheiro daquelas tintas são tão fortes, por que liberam para o uso infantil, heim?Os meninos caçoavam dele
“Feche os olhos e sinta as nuvens se abrirem e do céu ecoar milhares de trombetas celestiais.”Uniformes azuis. São tão presentes em minha vida, talvez em todas as vidas. Eles se movem tão lentamente. Isso me lembra…O ginásio veio de repente. A escola era diferente de tudo o que Hélio tinha como habitual. Talvez essa seja uma das fases mais longas na vida dele, minha vida ou nossa vida. Muitas das experiências de vida foram adquiridas durante a adolescência. As dúvidas mais sombrias também apareceram nessa fase.Já de início Hélio percebeu que aquele lugar não seria legal. Ele não poderia se expressar como se sentia, não podia ser ele mesmo. Como ele percebeu isso? Bem, iniciando diálogos com os garotos, descobriu que as bandas de rock das quais ele gostava, os moleques julgavam que eram bandas para bichas. Depois, dis
“Abra os olhos, quero que me veja em todo meu esplendor.”A chuva está um pouco mais forte. As gotas estão geladas e já não são mais bem-vindas. O céu é constantemente iluminado por raios azuis. Mesmo sabendo que são, na verdade uma descarga elétrica mortal, ainda assim os acho maravilhosos. Talvez seja uma coisa de pessoas solitárias, olhar os céus nos dias de chuva.A chuva escorria pelos vidros do ônibus como se fossem lágrimas vistas do lado de dentro. Hélio retornava de uma excursão escolar. O parque visitado era maravilhoso, repleto de árvores raras, lagos e animais silvestres. Contrastando a vida, existiam as pistas de decolagem de aviões em miniatura e as quadras poliesportivas.Hélio decidiu tentar uma aproximação com alguns garotos. Eles o aceitaram no time de futsal, mas ele não levava j
“Abra os olhos, veja minhas alvas asas envolver-te sob a chuva.”O tempo corre, ou corremos pelo tempo? Garantidamente, nossas vidas passam inexoravelmente. Quanto tempo temos? Essa é uma pergunta que não podemos responder olhando para um relógio.Ano novo; vida nova? Não. Hélio vivia a mesma vida, embora as diferenças fossem claras para alguns, para ele mesmo não era. O garoto mirrado, vestido timidamente com o uniforme escolar, tornou-se o rapaz de rosto pintado vestindo jeans rasgados e camisetas pretas. Hélio não reclamava mais do padrasto e o enfrentava com mais afinco.Ele não se escondia mais atrás das portas e da multidão, agora ele tomava a frente, embora ainda estivesse se escondendo atrás da maquiagem e dos crucifixos prateados. A rebeldia não surgiu repentinamente, foi construída de forma demorada e pesadamente. Item por item
“Abra os olhos, olhe meu sorriso, vai ficar tudo bem.”Primeiro um disparo, depois outro e por fim o terceiro. Desde que foram inventadas as armas de fogo, quantas pessoas será que morreram vítimas delas? É muito difícil responder, mas bem fácil de imaginar. Basta que você imagine uma só pessoa, aquela de quem mais gosta e extrapolar a dor para todo o mundo.No exército o mundo era diferente, não é a toa que eles o chamam de inferno verde. Lá Hélio sentia a grande pressão que era exercida em cima de seu ser, de sua mente, sua alma, suas vontades, tudo estava aprisionado em baixo de um uniforme camuflado. Já de início, ele soube que teria de suprimir todos os seus desejos. Seus cabelos foram cortados, assim como suas unhas. Por um bom tempo ele estaria longe dos palcos, longe de sua essência.Hélio fora ensinado a disp