“Feche os olhos e ouça o mundo gritar e chorar ao seu redor.”
As luzes azuis e vermelhas piscam freneticamente. Ouço sons agudos e distantes ecoando ao meu redor. Será possível que tamanha cacofonia me impedirá de mergulhar mais fundo nessas memórias? Não, penso que não. Essas luzes me lembram…
O natal chegara depressa. Ao menos o primeiro de que Hélio se lembrava. Nenhum dos seus desejados presentes estava na sala quando despertou. A bicicleta vermelha, o tênis que pulava bem alto, a boneca Barbie, o boneco do Fofão e nem mesmo a marreta do Chapolin. Bastava um, mas nenhum estava lá. Ao invés desses havia um caminhão de madeira repleto de soldadinhos de plástico, um rádio à pilha e um revólver de espoleta. Fora o primeiro natal traumático daquela criança.
Hélio possuía uma simpatia muito grande pelas meninas da escola, alguns meninos também, mas eram em menor número — geralmente os feinhos que ninguém escolhia para brincar. — O porquê disso? Bem, certa vez um menino mordeu uma amiga dele. Ele insistiu para que Mateus — o mordedor — pedisse desculpas, e falhou. Maquiavelicamente Hélio chamou Mateus para brincar e o acertou com um pedaço de pau na boca, quebrando-lhe alguns dentes — por sorte, de leite — e disse que assim, o menino não morderia mais sua amiga. O incidente foi resolvido pelos adultos, e o trio se tornou amigo por um longo tempo.
Talvez não seja perceptível o quão grande era a simpatia e admiração que Hélio tinha pelo semblante feminino, partindo dessas memórias. Mas o que se pode ver, é que ele não permitia que a figura feminina fosse ferida, magoada, insultada ou de qualquer forma prejudicada. E quando isso ocorria, ele aplicava a punição que acreditava ser cabível. Não, Hélio não era um justiceiro ou um cavalheiro que amava as mulheres. Ele se empatizava de tal forma com as meninas, que tomava para si suas dores e movido pelo que havia dentro do seu invólucro biológico, revidava no lugar delas.
Hélio não se tornou um valentão. Suas ações passaram a ser mais calibradas com o tempo. Chegaremos lá. Hélinho como era chamado, cresceu rodeado de amizades femininas por conta de seu comportamento demasiadamente parecido com o delas. No entanto, um amigo conseguiu sua atenção por muito tempo, eram inseparáveis, com ele Hélio se sentia seguro e à vontade, eles possuíam ideias parecidas sobre robôs, alienígenas, desenhos animados e videogames.
Mesmo ao lado do quase irmão, os olhares dele estavam em garotas diferentes em datas distintas.
Primeiro foi a Vanessa. Ela tinha um jeito mais firme, rígido, e sempre puxava assunto com ele. Graciele no ano seguinte. Era inteligente, graciosa e adorava brincar de amarelinha e pular cordas. Hélio foi convidado algumas vezes para almoçar na casa dela, aceitou em uma ou outra ocasião, a timidez era grande.
Depois vieram Carina e Jaqueline. Cada uma com seu jeito, e sempre encantavam o guri.
Talvez, dizendo assim, pode lhe parecer paixonites infantis. Não, era mais que isso. Era uma profunda admiração, tão intensa que mal cabia dentro do pequeno coração daquele pirralho. Sem saber lidar com esses sentimentos, ele colocava tudo para fora em forma de lágrimas durante a noite, ou a caminho de casa.
Vamos avançar para algo em torno dos dez anos…
Ele era estranho aos olhos dos demais garotos de sua idade. Enquanto eles queriam soltar pipa, jogar tacos, bolinha de gude e andar de bicicleta — não que ele não o fizesse também — ele preferia desenhar e brincar de casinha com sua irmã menor.
Na escola alguns garotos se mostravam verdadeiros valentões e acabavam intimidando Hélio. Esses garotos falavam de namorar, proferiam palavras estranhas aos ouvidos dele, a maioria se referiam ao corpo feminino. Hélio não entendia o significado e perguntava. Questionava-se o porquê o corpo feminino tem tantos nomes e dos homens apenas dois ou três. Mas essas coisas são passageiras e ele aprendeu a não ouvi-las mais.
Vozes… ouço-as. São tão confusas, não consigo entender o que dizem. Talvez porque a maioria dos humanos move os lábios, mas nada dizem. São quase tão confusas quanto os anos de primário do garoto Hélio.
Ele tinha uma amiga com quem voltava para casa todos os dias. Logo os meninos da escola começaram a perguntar se ele gostava dela. Ele dizia que sim, mas não era para namorar. Imediatamente os risos explodiam. Alguns garotos diziam que ele tinha que beijá-la logo e parar de frescura. Até que em um determinado dia prenderam os dois na sala e disseram que eles só sairiam quando se beijassem. Hélio sentiu-se como se sua alma tivesse sido invadida, violada e fragmentada. Estavam forçando-o a realizar algo que ele não queria e que jamais conjecturou fazer. O selinho aconteceu. A garota parecia não se importar. Naquele dia, depois da aula, Hélio chorou.
Chorou muito. Sua mãe perguntava qual era o problema e ele dizia que a perna estava doendo porque um garoto chutou sem querer na aula de educação física. A mãe dele conversou com a professora e ele foi afastado das atividades físicas. Era só mais uma coisa de que ele gostava e ficaria sem.
“Feche os olhos, e ouça minha voz, ela acalentará seu coração.”Hélio era filho de mãe solteira, diarista que dependia da ajuda da família para cuidar de seus filhos enquanto estava fora. Nada aborrecia mais o garoto do que ficar na casa da avó. Os motivos eram muitos. Ele não podia correr, espalhar brinquedos pela casa, brincar com o cãozinho do tio, fazer barulho, pois, atrapalhava a soneca vespertina da vó, nem assistir televisão por que gastava muita energia… Os dias na casa da avó eram tediosos e longos.Mas não era isso que o faziam não querer ir para lá. O tédio era suportável, as chineladas e pimentas na boca — quando escapava um palavrão — também. Os brinquedos que iam parar no lixo eram mais difíceis, mas ainda assim suportável.O que amedrontava o garoto era se
“Feche os olhos, não quero que me veja chorar.”O cheiro é muito forte. Gasolina em combustão, borracha queimada, e um odor ferroso se espalham no ar. Cheiros sempre trazem muitas recordações.Era próximo do dia das mães e a professora decidiu presentear a todas com um cisne em miniatura, de gesso, pintados pelos alunos. Cada um pintaria uma peça e entregaria para sua mãe no dia da festa.Os meninos pintavam o cisne de azul, branco, preto e até amarelo. Algumas meninas pintaram de vermelho, branco, e azul-claro. Hélio estava indeciso e perguntou à professora se podia pintar de qualquer cor. Ela disse que sim. Então ele misturou as tintas branca e vermelha, criando uma tonalidade de rosa, e pintou o cisne com essa cor. O cheiro daquelas tintas são tão fortes, por que liberam para o uso infantil, heim?Os meninos caçoavam dele
“Feche os olhos e sinta as nuvens se abrirem e do céu ecoar milhares de trombetas celestiais.”Uniformes azuis. São tão presentes em minha vida, talvez em todas as vidas. Eles se movem tão lentamente. Isso me lembra…O ginásio veio de repente. A escola era diferente de tudo o que Hélio tinha como habitual. Talvez essa seja uma das fases mais longas na vida dele, minha vida ou nossa vida. Muitas das experiências de vida foram adquiridas durante a adolescência. As dúvidas mais sombrias também apareceram nessa fase.Já de início Hélio percebeu que aquele lugar não seria legal. Ele não poderia se expressar como se sentia, não podia ser ele mesmo. Como ele percebeu isso? Bem, iniciando diálogos com os garotos, descobriu que as bandas de rock das quais ele gostava, os moleques julgavam que eram bandas para bichas. Depois, dis
“Abra os olhos, quero que me veja em todo meu esplendor.”A chuva está um pouco mais forte. As gotas estão geladas e já não são mais bem-vindas. O céu é constantemente iluminado por raios azuis. Mesmo sabendo que são, na verdade uma descarga elétrica mortal, ainda assim os acho maravilhosos. Talvez seja uma coisa de pessoas solitárias, olhar os céus nos dias de chuva.A chuva escorria pelos vidros do ônibus como se fossem lágrimas vistas do lado de dentro. Hélio retornava de uma excursão escolar. O parque visitado era maravilhoso, repleto de árvores raras, lagos e animais silvestres. Contrastando a vida, existiam as pistas de decolagem de aviões em miniatura e as quadras poliesportivas.Hélio decidiu tentar uma aproximação com alguns garotos. Eles o aceitaram no time de futsal, mas ele não levava j
“Abra os olhos, veja minhas alvas asas envolver-te sob a chuva.”O tempo corre, ou corremos pelo tempo? Garantidamente, nossas vidas passam inexoravelmente. Quanto tempo temos? Essa é uma pergunta que não podemos responder olhando para um relógio.Ano novo; vida nova? Não. Hélio vivia a mesma vida, embora as diferenças fossem claras para alguns, para ele mesmo não era. O garoto mirrado, vestido timidamente com o uniforme escolar, tornou-se o rapaz de rosto pintado vestindo jeans rasgados e camisetas pretas. Hélio não reclamava mais do padrasto e o enfrentava com mais afinco.Ele não se escondia mais atrás das portas e da multidão, agora ele tomava a frente, embora ainda estivesse se escondendo atrás da maquiagem e dos crucifixos prateados. A rebeldia não surgiu repentinamente, foi construída de forma demorada e pesadamente. Item por item
“Abra os olhos, olhe meu sorriso, vai ficar tudo bem.”Primeiro um disparo, depois outro e por fim o terceiro. Desde que foram inventadas as armas de fogo, quantas pessoas será que morreram vítimas delas? É muito difícil responder, mas bem fácil de imaginar. Basta que você imagine uma só pessoa, aquela de quem mais gosta e extrapolar a dor para todo o mundo.No exército o mundo era diferente, não é a toa que eles o chamam de inferno verde. Lá Hélio sentia a grande pressão que era exercida em cima de seu ser, de sua mente, sua alma, suas vontades, tudo estava aprisionado em baixo de um uniforme camuflado. Já de início, ele soube que teria de suprimir todos os seus desejos. Seus cabelos foram cortados, assim como suas unhas. Por um bom tempo ele estaria longe dos palcos, longe de sua essência.Hélio fora ensinado a disp
“Abra os olhos e me veja erguer-me perante o mundo.”É incrível como as pessoas projetam sua felicidade em atos e corpos alheios e não se dão conta de que a verdadeiro júbilo não existe. Não existe um pote de ouro no fim do arco-íris. O que lhe faz feliz, é a jornada em busca da felicidade, e os momentos felizes que vive. Infelizmente Hélio percebera isso muito tempo depois. Assim como a maioria das pessoas, ele ainda estava atado a ideia de que é necessário algo ou alguém para torná-lo satisfeito da vida.O namoro ia bem, eles se entendiam e conversavam bastante. A garota era legal, bonita e inteligente. Planejavam viagens e o futuro dos dois. Hélio estava feliz. Sua mente começava a descansar e se desprender dos ensinamentos militares, deixara de lado o patriotismo ilusório e passou a questionar a sociedade na totalidade. Aos pou
“Feche os olhos, escute a verdade em seu coração.”A relação de Hélio e Natasha era algo fora dos moldes sociais. Eles estavam apaixonados, mas não tinham um laço que os enforcavam, eram livres. Hélio se sentia seguro com ela, e então depois de voltarem de um acampamento, ele decidiu expressar-se e pediu que invertessem os papéis no coito. Assim foi feito. Ela compreendia Hélio melhor do que ele mesmo. Ela sabia como agradá-lo e como lhe fazer feliz.Com o tempo, ela passou a comprar acessórios para Hélio, como: perucas, unhas postiças, batons, meias finas, e até um sapato de salto alto. Hélio estava feliz. Ele podia ser quem ele era na frente daquela mulher. Era perfeito. Eles dividiam seus acessórios, seus prazeres e suas almas. Divertiam-se como nunca haviam feito na vida.Mas nada que é bom dura para sempre