Sílvio dirigiu a noite inteira em direção à Serra Encantada, sem sequer parar para comer. Seu estômago, vazio há horas, já estava tão acostumado à fome que parecia ter perdido a sensibilidade.A neve em Serra Encantada caía muito mais intensa que na Cidade A. O chão estava coberto por uma grossa camada de gelo, tornando as estradas traiçoeiras. A pista de asfalto que levava à Serra era estreita e íngreme, e os pneus do carro deslizavam a cada curva. Por várias vezes, ele quase perdeu o controle e viu o carro flertar perigosamente com o abismo ao lado.Com uma das mãos firmes no volante, Sílvio pegou um chocolate com a outra, rasgando o papel com os dentes e colocando o doce na boca. Em momentos de fome extrema, o açúcar era a única coisa que lhe dava energia.Talvez fossem seus pais, falecidos há tantos anos, que lá do céu estivessem cuidando dele. Às duas da madrugada, ele finalmente chegou ao pé da Serra Encantada. Assim que estacionou o carro e abriu a porta, o frio cortante o envol
"Eu só quero que ela viva bem."Sílvio apertou os punhos com força, olhando para o céu escuro enquanto a neve caía ao seu redor. "Deus, agora eu acredito em causa e efeito, em retribuição. Mas nunca imaginei que a minha seria perder a Lúcia para sempre. Já estou com leucemia em estágio terminal... Que todos os sofrimentos recaiam sobre mim. Eu sou um homem. Sou eu quem deve suportar tudo isso. Poupe a Lúcia. A vida tranquila dela foi destruída por mim. Quem fez todas as coisas ruins fui eu, então quem deve ser punido também sou eu."O vento uivava ao redor. Seus ouvidos estavam tão congelados que já não sentia nada. As longas pestanas de Sílvio tremiam levemente. A madrugada era escura como um poço sem fundo, e a neve caía tão forte que sua visão começava a se turvar.Enquanto caminhava, a culpa corroía sua mente. Ele se arrependia de tudo, mas o frio extremo já tinha entorpecido seu corpo. Ele estava congelado, faminto e exausto.O sangue começou a escorrer de seu nariz, pingando em g
O padre olhou para Sílvio, balançou a cabeça em silêncio e o conduziu para a nave principal da igreja. Sílvio ajoelhou-se diante do crucifixo.Em sua mente, uma oração fervorosa se formava: se Lúcia pudesse acordar, ele estaria disposto a trocar dez anos de sua vida por isso. Se fosse necessário morrer imediatamente, ele aceitaria, contanto que a mulher que amava superasse aquele momento difícil.Após terminar a oração, Sílvio seguiu os passos do padre até o pátio dos fundos. A neve ainda caía em silêncio, cobrindo tudo ao redor com um manto branco.Eles pararam ao lado de uma árvore antiga e imponente. Os galhos grossos da árvore estavam cobertos de neve. Quando o vento cortante soprou, a neve acumulada nos galhos caiu de forma abrupta, criando uma cena desoladora, quase melancólica.Os galhos, embora ainda com um pouco de neve pendurada, pareciam tão frágeis quanto os sentimentos que Sílvio carregava no peito.[Que Sílvio acorde em paz.]Seus olhos foram imediatamente atraídos para u
— Sílvio, finalmente me tornei sua esposa! Estou tão feliz! Espero que todos os nossos dias sejam tão alegres quanto hoje!— Este é o relógio que estou te dando de presente, Sílvio. Coloque-o no pulso e prometa que nunca vai tirá-lo escondido! Você trabalha tanto, nem tem tempo para ficar comigo. Mas sei que é pelo nosso futuro, afinal, não podemos depender para sempre dos nossos pais, não é? Meu pai pode ser muito capaz, mas não vai estar aqui para sempre para nos proteger de tudo. Temos que construir nosso próprio caminho. Quando você estiver no trabalho, olhe para o relógio e pense em mim, só um pouquinho. Enquanto isso, eu fico aqui, sem nada para fazer além de pensar em você o dia inteiro.— Sílvio, você prefere ter um menino ou uma menina? Se você gostar dos dois, posso te dar dois filhos! Um menino e uma menina, que tal? Você escolhe o nome do menino, e eu escolho o da menina. Será que eles vão se parecer mais com você ou comigo?— Sílvio, hoje é Natal! Você sabe o que significa
Basílio ergueu o punho novamente, pronto para acertar outro soco em Sílvio.— Sr. Basílio, acalme-se! O que está feito, está feito. Mesmo que o senhor mate o Sr. Sílvio de tanto bater, isso não vai mudar nada! A raiva é sua pior inimiga! — Leopoldo segurou Basílio pelo braço, impedindo-o de continuar a agressão.O rosto de Basílio ficou ainda mais sombrio.— Solte ele! — Ordenou Sílvio.— Sr. Sílvio, o senhor perdeu o juízo? Ele está te batendo e me pede pra soltá-lo? — Leopoldo ficou atônito.Sílvio riu com desprezo:— Vou repetir: solte ele!Mesmo contrariado, Leopoldo não teve escolha. Soltou o braço de Basílio e deu um passo para trás.Sílvio, com esforço, levantou-se do chão. Limpou o sangue que escorria do canto da boca, soltando um gemido de dor ao tocar na ferida.— Lúcia já acordou? — Perguntou Sílvio, aproximando-se de Basílio.Se Basílio estava ali, então talvez Daulo também estivesse. Será que Lúcia finalmente havia sido salva?Mas antes que pudesse dizer mais alguma coisa,
— Eu só queria que ela voltasse a viver. — Sílvio murmurou com um sorriso amargo.— Ela não vai voltar! Acorde! Lúcia precisa ser levada ao crematório e cremada! Como amigo dela, é meu dever garantir que ela tenha uma despedida digna! — Basílio estreitou os olhos, sua voz fria como gelo. — Você vai levá-la ou eu levo por você?— Eu mesmo a levarei. — Respondeu Sílvio, com a voz firme.O corpo de Lúcia foi trazido para fora da UTI pelos enfermeiros. Talvez por conta das medicações ou dos tratamentos, seu rosto estava inchado, assim como o resto do corpo. Quando o corpo chegou à entrada do hospital, a van funerária, organizada por Basílio, já estava à espera.Os funcionários do necrotério, vestidos de preto e usando luvas descartáveis, carregaram o corpo de Lúcia com expressões solenes e o colocaram na van.Sílvio seguiu o cortejo, entrando no banco traseiro da van. Leopoldo, preocupado com ele, sentou-se no banco do passageiro. Basílio, por sua vez, foi em seu próprio carro, dirigindo s
Em vida, Sílvio não a fez feliz. Por que, agora que estava morta, deveria continuar a atormentá-la?Quando chegaram ao crematório, Sílvio viu o corpo de Lúcia sendo levado para a sala de cremação, onde seria colocado no forno.Ele percebeu que sua força emocional não era tão grande quanto pensava.Não conseguiu suportar a visão do corpo de Lúcia sendo consumido, pouco a pouco, pelas chamas. Levantou-se e saiu da sala.O céu estava escuro, pesado. A neve continuava a cair, cobrindo tudo ao redor. Ele estendeu a mão, deixando que os pequenos flocos pousassem em sua palma. Pequenos, translúcidos, com seus contornos perfeitamente definidos.Lúcia sempre amou a neve. Ele se lembrou de algo que ela havia contado: o motivo de seu nome ser Lúcia era porque nasceu em um dia em que nevou o dia inteiro. Foi o pai dela quem escolheu o nome, inspirado naquele dia gelado. Ela nasceu sob a neve e, agora, partia também sob a neve.Seria isso o destino? A neve, caindo sem parar, começou a borrar sua vi
Sim, foi ele quem matou Lúcia. O amor de Sílvio era pesado demais, sufocante demais. E esse peso acabou por destruí-la.— Sílvio, eu te dei uma chance, e você a desperdiçou. Você e Lúcia... acabaram para sempre. — Foi o que Basílio disse antes de ir embora.Sílvio permaneceu parado no vento frio, refletindo. Ele não podia negar que Basílio estava certo. Ele havia perdido sua última chance, e Lúcia se fora para sempre.A mulher que ele chegou a desejar que morresse, agora realmente estava morta. Mas, ao invés de satisfação, o que sentia era um vazio insuportável.Uma hora depois, o processo de cremação havia terminado. Lúcia não era mais do que cinzas. Sílvio escolheu uma urna cor-de-rosa, a cor favorita dela. Ele observou enquanto os funcionários do crematório, com destreza e indiferença, usavam um martelo pesado para esmagar os ossos restantes até que se transformassem em pó branco. Uma pessoa viva, cheia de vida, agora cabia em uma pequena urna.— Na última noite de Natal, a Sra. Lúc