Allogaj - Livro 1 - A Feiticeira das Trevas
Allogaj - Livro 1 - A Feiticeira das Trevas
Por: Jesse Olyvarbo
Capítulo 1

Uberlândia — 02 / Maio / 2005

Era o fim do mundo para Valéria ter que ir a pé para o Colégio, pois, estava enfurecida por estar acostumada a ir de carro próprio, mas os seus pais decidiram "castigá-la" por causa do seu mau comportamento. Qual foi o mau comportamento? Bem... Ela acendeu um isqueiro e apertou um aerossol contra o gato da mãe para saber o que aconteceria depois. Uma parte do pelo do gato ficou queimada. O gato passou bem, mas a aparência dele não ficou legal.

Isso não foi um simples ato ruim, foi uma crueldade e ir ao Colégio a pé por três dias nem de perto chegava a ser uma punição, a questão era que os pais relápsos da garota não sabiam mais o que fazer com ela. A única ajuda que ainda não procuraram para a sua filha caótica foi a espiritual por não serem serem um pouco céticos. Só cogitaram essa ideia como última opção caso ela piorasse. E pelo andar da carruagem...

Valéria passava-se por uma jovem roqueira, apesar de não gostar muito do Rock And Roll, no entanto, aderiu um visual que representava o estilo musical, como estilo de vida. Os seus cabelos eram natural e extremamente pretos, com franjas que escondiam as sobrancelhas.Ela andava com um pessoal de estilo gótico que não suportava o seu batom vermelho-sangue a colorir os lábios, julgavam-na por ser a única a usar bastante maquiagem, mas não havia quem a fizesse abandonar os cosméticos. A jovem possuía olhos de uma cor azul tão viva que hipnotizava, e ainda realçava-os lápis-de-olho e era considerada a mais bonita do bairro inteiro.    

— E lá vem a judia roqueira, que não curte Rock, com a boca vermelha mais uma vez — disse Fael, um dos quatro amigos roqueiros (não tão amigo assim) da Valéria, em ironicamente quando viu Valéria subir os degraus da escadaria do Colégio Particular Isabelle Andrillo com a sua mochila preta cheia de gravuras de caveiras.

Valéria detestava quando eram irônicos com ela e surtou pelo comério do rapaz.

— Que merda, Fael! Eu já te disse para não me chamar de judia. Odeio judeus.

— Mas o seu pai é judeu e tecnicamente isso faz você de uma, sua antissemita esquisita — rebateu o jovem.

— Primeiro, a minha mãe é francesa naturalizada brasileira, então não sou cem por cento; segundo, sim, odeio o meu pai; e terceiro, por que você não vai acasalar ao invés de me perturbar. E todo o mundo sabe que você namora com a sua cadela, seu doente nojento, porco imundo. 

Fael começou a rir ainda com ar de ironia, mas, no fundo, bem nervoso pelo que Valéria tinha acabado de falar. Eram jovens fúteis e inconsequentes.

— Eu nunca vi uma judia nazista — continuou Fael para irritar ainda mais a garota e forçar o assunto, gostava de importuná-la, principalmente quando ela estava de mau-humor.

Pelo visto, ela estava naqueles dias em que se esquecia o filtro e falava tudo o que vinha à cabeça sem se importar se magoaria alguém ou não. Apesar de que Valéria não importava-se mesmo com os outros. Havia alguns dias em que ela irritava até mesmo as coisas inanimadas.

Esses dois brigavam o tempo todo. Infelizmente, não era um sinal de que se casariam no futuro, pois, Valéria reconhecia-se como lésbica, apesar de falarem constantemente que ela não parecer ser, ela atraía a atenção de muitos homens. Talvez fosse esse o motivo de Fael ser tão inconveniente quando ela estava por perto, paixão reprimida. 

— Ai! Gente, para de brigar, dá uma trégua só por hoje — falou Anne, a "cabeça" do quinteto, a que dava sermões e agia mais com a razão do que com a emoção, era o que diziam. Ela tinha descolorido completamente o cabelo até ficarem brancos e era a única do grupo que não fez tatuagens, nem colocou piercings, os pais católicos devotos a proibira. — Fael, você sempre começa, então, por favor, fique quieto e Valéria, pega leve no que fala. Se continuar assim já sei como vai acabar esta aula de hoje. Você sendo arrogante com o professor de História e recebendo outra detenção.

— Como se somente eu fosse arrogante com ele. Ele é insuportável e gosta de me perguntar as coisas sem necessidade. Ele está de marcação comigo. Se hoje me disser qualquer coisinha, nem que seja o meu nome, fico depois da aula, mas com muito prazer porque ele vai ouvir...

— Ah! É como falar com uma porta — Anne suspirou de impaciência.

— Eu imagino que você está assim porque veio a pé de novo para o Colégio — comentou Octávio, o mais charmoso e sexy do grupo. Anne era apaixonada por ele, mas fingiam que não sabiam, ele não tinha o menor interesse nela. Octávio tinha olhos castanhos-claros, cabelos pretos e bagunçados, tamanho médio, lábios avermelhados e era magro, porém, musculoso. — Valéria, como você é problemática — disse entre risos com dentes perfeitos, o típico "desejado entre as nações".

— Problemática é o escambau! Se aquele imbecil não me devolver o meu carro hoje, aí sim é que vocês vão ver a problemática. Não dá para vir aqui andando. É muita humilhação.

— A sua casa nem é tão longe do Colégio e você mereceu o castigo — falou Anne. — Quem mandou tocar fogo no gato da sua mãe? 

— Espera aí! Valéria tocou fogo no gato da mãe? — indagou Fael a rir da situação. — Que louca, velho, depois fala que eu sou pior que ela só porque namoro com a minha cadela. — Os outros três expressaram o nojo que sentiram pelo comentário do rapaz e retiraram-se dali para dentro do Colégio. — Espera aí, gente, não me julgue, todo o mundo faz isso...

Valéria ficou sozinha com a Anne quando separaram-se dos outros, elas eram da mesma turma, terceiro ano do ensino média. Valéria era uma das poucas da turma com dezessete anos de idade. 

— Onde está a Pétala? — perguntou Valéria, referindo-se à quinta integrante do quinteto de roqueiros do Colégio. — Não vi ela desde ontem.

— O correto é "não a vi" — corrigiu Anne.

— Tanto faz. 

— E, ela foi passear com a família para um parque aquático. Amanhã ela estará de volta.

— Odeio parques aquáticos.

— Eu também.

— Será que Pétala finge que gosta dos passeios para agradar os familiares? A insuportável da irmã dela que pagou tudo. 

— Acredito que não. Ela é tão... Divertida.

— É mesmo — confirmou Valéria com um olhar distante.

— Ela faz falta, não é?

— Muita. Ela é a última peça do quebra-cabeças que é o nosso grupo. Sem ela, ficamos desfocados. Muito me admiro você saber mais sobre ela do que eu, já que somos mais próximas.

— Você se importa mesmo com isso?

Valéria pensou por alguns instantes.

— Hum! Não. Vamos para a aula.

Ambas entraram na sala. Valéria franziu o cenho quando deparou-se com quase a classe inteira entretida nos seus aparelhos celulares. Era normal fazerem isso antes de a aula começar, mas a turma toda num mesmo momento era bem curioso.

— Por que todo mundo está no celular?

— Compartilharam um vídeo da Flávia caindo dentro do rio

— explicou Anne sorrindo, imediatamente ficou séria. — Foi muito engraçado, pelo que me disseram. Eu nem assisti.

Valéria pegou o seu "celular do ano", melhor do que o de qualquer aluno, ou aluna, daquela sala, simplesmente para exibi-lo.

— Enviaram para você? — questionou Valéria. 

— Não gosto muito dessas coisas — Anne tentava ser evasiva com ela. 

— E por que ninguém enviou para mim? O meu celular também tem infravermelho e Bluetooth.

— Não sei. Talvez seja porque ninguém gosta de você — dessa vez, Anne fez uma careta por falar o que não devia. Ela não era muito boa em não ser sincera.

— Está falando sério? Sei que sou irritante, mas não sabia que todo mundo aqui pudesse me odiar.

— Amiga, "odiar" é uma palavra muito forte. Penso que só não gostam. Não sei por que você demorou tanto assim para perceber. 

— Por que será? Tem, pelo menos, umas dez pessoas aqui que eu não tenho nada contra. Na verdade, eu até gosto... Puxa! Fiquei ofendida.

— Não fique ofendida, pelo amor de Deus. Quando você se ofende com alguma coisa, o céu cai e o inferno se abre.

— Anne, me diga umas das minhas qualidades ruins que ainda não percebi.

— Espero que não fique chateada comigo, mas você é muito mimada, amiga. É boçal, por ser a mais rica do melhor Colégio do Estado. Fica ostentando as suas coisas caras para os outros. Também é arrogante, problemática, violenta...

— Já chega! Por que você pensa estas coisas sobre mim? Achei que fosse minha amiga?

— Mas você que me perguntou, e não sou eu quem pensa todas essas coisas, são as pessoas da turma, e algumas do Colégio. Quem sabe da cidade. 

— E por que só agora você me conta?

— Fiquei com medo de você procurar confusão com eles por causa disso.

Valéria falou bem alto para que todos ouvissem:

— Pois, eu quero é que todos se lasquem. Não devo nada a ninguém mesmo. Esses pobres é que deveriam estar lambendo os meus pés.

O gritos da garota chamaram atenção, mas para a maioria não passaram de murmúrios de uma mal-amada, desesperada por amizade, valeria muito a pena ignorar. Valéria sentiu o peso disso, tanto que saiu da sala derrubando algumas cadeiras. Anne ficou vermelha de vergonha, imóvel como uma estátua, a torcer para que ficasse invisível no momento do surto da sua amiga.

Alguns preocuparam-se com a atitude da problemática, mas outros fizeram piadas, riram e falaram tão mal dela quanto puderam. Para a alegria de Anne, nem notaram a sua presença. Se não fosse por andar com a garota mais rica do Estado de Minas Gerais, nem perceberiam a sua existência. Sinceramente, todo o grupinho dela era notado por causa da própria Valéria, a riquinha revoltada, e também por Octávio, que cantava e tocava guitarra numa banda famosa na localidade. 

***

Valéria queria chorar, forçou-s a chorar, mas não saiu uma gota de lágrima. 

— Inferno —  praguejou ela. 

Também queria sentir vergonha pela cena patética que fizera na sala de aula, mas não sentiu nada a não ser raiva. Era comum ela sentir raiva todos os dias, mas naquele dia não encontrou mais outro sentimento no coração, atribuiu isso ao fato de não ver a sua melhor amiga por quase três dias.

Ela desceu a escadaria do Colégio e andou sem rumo pelas ruas da Cidade o que a ajudou a pensar muito sobre si própria. Não era uma menina muito inteligente então tudo o que ela pensou não passou de coisas inúteis e triviais. Assim era a sua vida.

De repente, começou a trovejar, o céu se escureceu e alguns pingos de chuva atingiram o seu rosto branco. Valéria correu a procura de um lugar para abrigar-se e entrou na loja mais próxima assim que a chuva engrossou, poderia ter se safado se ela estivesse com o seu Ford EcoSport Flex Freestyle preto. Pensar sobre isso a deixou ainda mais enfurecida.

A olhar de esguelha, Valéria demorou para entender onde estava. De primeira, pensou num armazém de souvenir, depois de um longo passeio descobriu que tratava-se de uma loja de artefatos de feitiçaria, ou coisa parecida. Em meio a tantas coisas, somente uma atraiu a sua atenção, era uma varinha de condão feita de ossos fossilizados. Ela adorava ossos e qualquer coisa semelhante a atraía.

— Vai querer alguma coisa? — perguntou uma voz rouca atrás dela a assustá-la e quase a fez derrubar uma coruja de porcelana da prateleira.

Ao virar-se, deparou-se com uma senhora mal-maquiada, de nariz grande e cabelos desgrenhados e grisalhos. Usava um vestido surrado, contudo, estava adornada de bijuterias.

— Ah! Sim, eu quero levar esta varinha de cordão — respondeu Valéria.

— Não, querida, o certo é "varinha de condão", e foi uma ótima escolha. Quer levar mais alguma coisa? — o tom de voz da senhora não foi de uma simples pergunta, mas de uma ordem.

Valéria franziu o cenho, olhou para esquerda e para a direita, para trás e para frente e pegou um crânio pequenino, provavelmente de um mico, e uma bola de cristal sustentada por uma base feita do esqueleto de uma mão.

— Vou levar estes aqui também.

— É só?

— Sim! — a resposta foi rápida e apática.

A senhora da loja fez sinal para que Valéria a seguisse até o balcão, somou o preço dos produtos, analisou e depois os colocou dentro de uma sacola plástica preta com o logotipo da loja, o desenho da palma da mão direita com um olho centralizado e um nome abaixo: Vehra Magic Shop.

— Fechou cinquenta reais, querida.

Sem pensar duas vezes, Valéria pegou uma bolsa de dentro da mochila, retirou uma nota de cinquenta reais, entregou à senhora e apanhou a sua sacola com os produtos.

— Hum... Interessante — disse a senhora.

— O que é interessante? — quis saber Valéria.

— Você não reclamou do preço e nem pechinchou como fazem os clientes comuns. É sinal de que tem muito dinheiro.

— E esta sua conversa para o meu lado é sinal de que quer me arrancar mais dinheiro, então tchau, a chuva já passou.

— Espere um pouco — pediu a senhora antes que a garota fosse embora. Valéria virou-se para ouvir o que a senhora tinha a dizer a arquear as suas sobrancelhas escondidas atrás da franja. — Eu também notei que você gosta muito de ossos, é um sinal de algo oculto na sua vida. Com mais vinte reais, posso decifrar isso para você.

— Eu sabia que você queria me arrancar mais dinheiro. Vocês são todos iguais, mas como eu sou muito curiosa, vou te dar dez reais e você me diz a metade do que tem para dizer sobre isso. Fechado?

A senhora riu.

— Parece que você está aprendendo rápido. Pois, eu aceito a proposta.

Valéria retirou dez reais do bolso, entregou à senhora que automaticamente enfiou a nota no sutiã. Ela foi até uma gaveta, pegou um livro antigo e o folheou, parou numa página, leu em pensamentos, segurou a mão direita de Valéria, fechou os olhos, concentrou-se e com muita cerimônia disse algumas palavras que para Valéria não passavam de bobagens sem sentido para cativar o cliente.

A senhora revirava a cabeça para todos os lados e proferia as palavras com mais veemência enquanto Valéria revirava os olhos a procurar um relógio para saber as horas.

— Ah! Minha querida — disse a senhora como se estivesse em estado de transe —, minha jovem querida, você será dotada de grande poder, um poder que irá ao seu encontro e será maior que o de muitos. Fique ciente de que trata-se de um poder dado por um ser sombrio. Tome muito cuidado, pois, poderá te destruir se você usá-lo de forma inapropriada. Sim, os ossos. Abra os seus olhos, leia os ossos, eles não mentem. A escuridão está chegando. A escuridão está chegando. A escuridão está chegando. — A senhora respirou fundo e voltou a si, agora falava normalmente. — Tenha muita boa sorte, minha querida, a partir de hoje, antes da meia-noite, a sua vida ficará diferente e você se tornará uma garota diferente.

Valéria a encarou com as sobrancelhas arqueadas novamente.

— Será que eu posso ter os meus dez reais de volta? Não entendi nada desta sua profecia maluca e você não disse quase nada sobre os ossos.

— Sem devoluções, minha querida. Esse foi o nosso trato e sei que você não precisará desse dinheiro. Outra coisa: a Profecia é do jeito que tem que ser. Sem mais delongas.

— Eu nem sei o que é "delongas" e eu poderia ter gastado estes dez reais com algo mais útil como papel higiênico.

— A chuva já passou, minha querida.

Valéria a olhou com indiferença.

— Charlatã! — disse ao sair da loja.

— Volte sempre! — falou a senhora com voz cantante.

Muitas pessoas ficam nervosas quando recebem uma Profecia de uma suposta bruxa pela primeira vez, no entanto, Valéria permaneceu tranquila, provavelmente por não acreditar muito naquela mulher. Sim, ela acreditava em coisas sobrenaturais, mas a senhora dona da loja não a convenceu. Em sua concepção, parecia-se mais com uma péssima atriz que foi expulsa do teatro por "assassinar" as personagens. Pelo menos, toda a sua raiva se esvaiu. Agora ela só pensava em quais outros objetos feitos de ossos ela poderia comprar. 

***

No caminho de volta para o Colégio, Valéria atravessou a rua para pegar um atalho. Algo a dizia que não era para ter passado por aquela rua isolada, mas era um ótimo atalho. No meio do caminho surgiram dois rapazes estranhos, não pareciam bandidos para ela, também não pareciam ser pessoas do bem. Eles andaram na direção dela e ela mudou o caminho, mas eles seguiram-na com um sorriso bem descarado.

— Olha aí! Malcolm, que gostosa! — falou um dos rapazes.

Ele passou pelo lado direito de Valéria e tocou nos seus cabelos, mas ela permaneceu séria e focada em sair imediatamente daquela área.

O rapaz chamado Malcolm, que passou pelo lado esquerdo de Valéria, a olhou de cima a baixo, mordeu o lábio inferior com a mão na pélvis, como se estivesse a forçar a sensualidade, e falou:

— Essa daí tem cara de que sabe fazer o negócio direitinho, não é, Steven?

"Argh! Malcolm e Steven. Deve ser dois otários, 'filhinhos de papai', tirados a encrenqueiros", pensou Valéria. "Vou mostrar para eles o que é encrenca de verdade."

Tudo o que ela queria naquele momento era estar logo no Colégio. Não sentiu medo dos marmanjos, sentiu nojo por não gostar de garotos e ser assediada por eles frequentemente. Ela continuou andando sem olhar para trás, porém, os rapazes seguiram-na a rir e a comentar coisas sexistas, até que um deles passou a mão em um dos seus seios.

Antes disso, ela já estava com a mão no bolso das calças pretas, havia um canivete suíço que ela roubou de uma loja há algum tempo. Somente deu tempo de ela puxar o canivete armado e rasgar o antebraço do rapaz que a apalpou. Ele gritou e ela virou-se a apontar o objeto.

— Sua louca, o que você fez? — gritou o amigo que tentava acudir o outro.

— Se encostar em mim de novo eu rasgo a sua garganta, seu merda — Valéria apartou-se bem rápidobde perto dos garotos, em seguida guardou o canivete ensanguentado dentro da mochila e foi embora do mesmo jeito que chegou. — E a propósito, eu sou lésbica, seus babacas — gritou de longe. Assistiu, por um momento, um deles a tentar estancar o sangramento do outro, desesperado, com medo de acontecer uma morte hemorrágica. — É! Pelo menos eles não vão mais mexer com nenhuma mulher solitária — falou consigo própria e foi-se a rir como uma drogada entorpecida.

***

De volta à escadaria do Colégio.

Valéria antes tinha passado numa loja de roupas, fez algumas compras, depois passou numa sorveteria. Já era o terceiro sorvete de casquinha que ela tinha comido. Antes de terminar, ela jogou o resto do sorvete em um dos degraus e bateu no portão. A zeladora veio atender, era uma mulher gorda com uma verruga perto do olho, rude, porém, comunicativa. Os alunos gostavam dela.

— Ah, não! Não acredito — disse a zeladora. — Estas são as horas de você chegar na escola, menina? Pelo amor de Deus. Já está perto do segundo horário — ela olhou para o relógio.

— Eu já estava na sala antes de você aparecer, meu amor. Tive que sair para tomar um ar.

— Isso não existe aqui. Este é um Colégio sério e de responsabilidades...

— E blábláblá. Vai deixar eu entrar, ou não? — interrompeu Valéria.

— Vou falar com o diretor — a zeladora saiu e voltou depois de cinco minutos. Valéria quase foi para casa. — Olha só, o diretor disse que não tem conhecimento desta tua saída do Colégio para "tomar um ar" e contou que esta já é a décima vez que você sai desde o mês passado — ela abriu o portão. — Você pode entrar, mas da próxima vez vai ficar do lado de fora.

— Tanto faz — disse Valéria sem dar o mínimo de importância ao que a zeladora falava.  

— Essas pestes pensam que podem fazer o que querem só porque eles pagam nessa bosta de Colégio particular — reclamou a zeladora sem que Valéria ouvisse. Até ela própria, que era temida pelos alunos, tinha um pouco de medo da garota problemática.

Todos e todas na sala fizeram silêncio e olharam fixamente para Valéria quando esta abriu a porta. Simplesmente, ela andou até ao seu assento e acomodou-se na cadeira como se tudo estivesse normal. Evitaram manter contato visual com ela, exceto o professor Magnavitta, um homem alto, desengonçado e caucasiano dos olhos castanhos. Tinha pavor de Valéria, mas tentava a enfrentar de qualquer forma.

— Senhorita Valéria — disse o professor de História.

— Ah, não! — exclamou Valéria.

— Fui informado de que a você derrubou as cadeiras da sala sem motivo algum — continuou o professor — e que saiu do Colégio sem a permissão de ninguém. Gostaria de se justificar?  

— Vai para o inferno — respondeu a garota que mostrou o dedo médio para ele.

— Oh! — Expressou a turma em coral.

— Senhorita! — o professor ficou nervoso, afastou-se do quadro negro para enfrentar a garota bem de perto. — Exijo respeito. Eu não sou pago para aturar este abuso e se você não se comportar vou garantir a sua expulsão deste Colégio. Está me entendendo?  

Valéria enfiou a mão dentro da mochila e retirou o seu canivete suíço manchado de sangue, levantou-se e apontou o objeto para o professor que se assustou, aos tropeços caiu no chão e levantou-se tão rápido quanto caíra.

— Será que você entende isto aqui? Me provoque e você dará adeus ao seu olho esquerdo.

— Delinquente! — gritou o professor a correr para fora da sala.

A turma permaneceu imóvel enquanto Valéria dirigia-se para frente do quadro. Não queriam fazer movimentos bruscos para que ela não atacasse a ninguém, a consideravam como um animal louco.

— Valéria, o que você está fazendo? — perguntou Anne, desesperada.

— Fica na tua, Anne. Sei muito bem o que estou fazendo. — Valéria caminhou lentamente entre as fileiras de cadeiras da sala com trinta e seis estudantes. — Agora eu

quem faço as perguntas aqui. Quero saber quem falou de mim para o professor. Tudo que eu queria hoje era que ele não dirigisse a palavra a mim, mas algum, ou alguma, imbecil

fez o favor de estragar isso. Quem foi?

Ninguém atreveu-se a responder.

— Foram vocês, suas vadias — Valéria apontou para um grupinho de garotas populares e patricinhas. Elas apenas abriram a boca e se escararam como se estivessem profundamente ofendidas. — Podem parar com este teatro que eu sei que falam mal de mim pelas costas.

Valéria apontou o canivete para outra aluna. A mais inteligente da sala, porém, a mais fofoqueira.

— Ou será que foi você, nerd?

— E... Eu... — A menina empurrou os óculos para mais perto do rosto. — Na... Não... Claro que não fui...

— Como eu vou saber?

— Pare com isso, Valéria — implorou Anne, a única que tinha coragem de gritar com ela. A sua voz meiga fazia com que não a dessem crédito, por isso, Valéria tornava a sinceridade dela irrelevante.

— Sim, você, Anne — os olhos de Valéria brilharam.

— Eu?

Valéria correu até a cadeira onde Anne estava sentada.

— Você ficou na sala quando eu saí. Me diga, qual desses idiotas falou de mim para o professor?

— Eu não sei, Valéria. Fui ao banheiro quando o professor chegou... 

— Para de mentir, você é péssima nisso.

— Já disse que não sei e mesmo se eu soubesse não poderia dizer. Você está ameaçando as pessoas com este canivete.

— Para com isso Valéria — intrometeu-se Leandro, um dos alunos mais cobiçado da turma por ser atleta. — Você está assustando os seus colegas e ninguém nunca te fez mal aqui.

— Mas é isso mesmo que eu quero, que se assustem mesmo e você me parece suspeito. Por um acaso foi você que me dedurou para o professor?

— Eu não fiz nada.

— Esta é a frase de um grande mentiroso.

Nesse mesmo instante, o professor Magnavitta, suado como um porco, entrou na sala com dois seguranças fardados e de cassetete na mão. Ele apontou o dedo indicador para Valéria que automaticamente jogou o canivete no chão e levantou as suas duas mãos para o alto.

— Eu não fiz nada — foi a última coisa que ela disse naquela sala.


***

Abuso de animais é crime: Lei Federal 9.605/98 - dos Crimes Ambientais. Denuncie: 190.

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