Estranha realidade presente

Capítulo 1. Estranha realidade presente.

Pérola narrando.

Quando tento abrir os meus olhos, sinto um incômodo muito grande. Uma dor aguda e estranha, que não lembro de ter sentido em algum momento da minha vida.

Então tomo consciência de que o meu corpo também está todo dolorido, tanto que não consigo mexer os meus pés ou minhas mãos. Sim, tentei mover os dedos dos pés e das mãos e falhei.

Meus olhos estão secos.

Quando finalmente consigo abri-los, vejo um teto branco e uma luz me incomodando a ponto de eu ser obrigada a fechar os olhos novamente.

Então tenho a impressão de estar ouvindo vozes e, a cada segundo que passa, mais nítidas e audíveis as vozes ficam.

Depois do que parecem vários minutos, finalmente reconheço tais vozes.

Mamãe.

Minha irmã, Júlia.

Minha prima, a princesa consorte. Minha querida melhor amiga, Elena.

Ouço a voz de um desconhecido, provavelmente um médico, porque é óbvio que vim parar em um hospital.

Por quê?

Há quanto tempo estou aqui?

Por que sinto que minha cabeça está prestes a explodir?

Tantas perguntas. Elas só me deixam ainda mais dolorida e incomodada.

— Mamãe… — falo, mas talvez não tenha sido alto o suficiente, porque ninguém se aproxima da minha cama nos próximos segundos.

Então tento mais uma vez, um pouco mais alto. Eu acho.

— Elena.

Dessa vez as vozes se calam e ouço som de passos se aproximando da minha cama.

Então sinto o cheiro de perfumes misturados. Os cheiros dos perfumes das mulheres da minha vida.

Todos que amo estão perto de mim agora.

Posso sentir, mesmo que, por algum motivo, não consiga virar a minha cabeça para o lado.

Até o meu pescoço está sensível.

Um acidente?

Mas, por que não consigo me lembrar?

Mesmo que esteja me sentindo menos assustada por estar aqui por causa da presença das mulheres que amo, tenho a sensação no fundo do meu coração fodido de que está faltando alguma coisa.

Algo, ou alguém?

Não faço ideia, mas também está me incomodando.

— Você finalmente está consciente, filha — mamãe fala ao chegar muito perto e eu posso ver seu amado rosto.

Carla, a mulher guerreira que foi mãe e pai quando o seu esposo morreu e ela se viu tendo que criar as filhas gêmeas sozinha.

Quando papai morreu, Júlia e eu tínhamos seis anos de idade e eu mal posso me lembrar do seu rosto, embora mamãe sempre fale do quanto ele nos amava.

— O que… aconteceu? — Limpo a garganta para falar, pois parece que tem uma lixa na minha garganta.

— O médico disse que você poderia não se lembrar de…

— Lembrar de quê? — questiono por curiosidade, mas também por desespero quando sinto sua hesitação.

Mamãe é muito sensível, então terei que tentar de outra forma.

— Elena? — chamo, minha prima e melhor amiga me deixa ver o seu rosto.

Ela é a mais corajosa das três, já que Júlia tem a personalidade idêntica a da nossa mãe: doce e sensível.

— Estou com você, querida.

— Por que estou nesse lugar? Por que tudo dói?

Elena também hesita, mas sei que ela vai falar.

— Você foi vítima do mau tempo há duas semanas e acabou caindo do cavalo no qual cavalgava — diz, e me surpreende por várias razões.

Primeiro, porque nunca soube andar à cavalo.

Segundo, porque, se caí, significa que eu estava em Solari.

Solari, do reino de Solari.

Poderia ser a história de um filme de romance, mas é a realidade. Minha prima e melhor amiga se apaixonou pelo príncipe herdeiro do reino de Solari. A aproximação deles foi possível porque ela cresceu no palácio, já que sua mãe sempre foi governanta do rei.

Ela passou a infância no palácio, mas minha tia a enviou para estudar no vilarejo quando ficou um pouco mais velha. Minha prima foi morar com mamãe, comigo e com a Júlia.

Um dia, aos dezoito anos, ela foi passar as férias com a mãe no palácio e então sua história de amor com o príncipe começou.

Um verdadeiro conto de fadas da vida real, com direito a casamento e uma bebê fofa, minha amada Mirella.

Minha princesinha.

O fato de a minha prima ter se mudado para Solari é razão o suficiente para que eu frequente as terras do reino, mas não entendo o que poderia estar fazendo em Solari no dia do acidente à cavalo.

Não parece algo que eu faria.

Eu? A medrosa pérola?

Eu? Que não saio de casa sem um guarda-chuva por medo de água?

Eu? A sempre sensata e certinha?

Eu? Que nunca fui de me arriscar para nada.

Definitivamente, tem algo errado com essa versão dos fatos.

Não tem?

— Eu não sei como montar em um cavalo.

— Você pode ter se esquecido, mas você sabe, prima.

— Eu sei, Júlia?

Júlia não mente.

Nem a Elena, na verdade.

Eu só estou tentando entender.

— Você sabe. Há algumas semanas veio do nada e começou a insistir para que nós três fizéssemos aula de equitação.

— Por que não me lembro de nada disso? Também não me lembro do acidente — aviso, elas não parecem surpresas ou preocupadas.

— O médico disse que, por causa da batida na cabeça quando você foi jogada no chão, acabou perdendo algumas memórias recentes, mas ele acredita que pode ser temporário. Você não precisa se preocupar — Elena diz.

— O quanto de lembranças perdi? — pergunto.

— Nós ainda não temos certeza. Essa é a primeira vez que você fica inteiramente consciente em duas semanas. Ainda estava indo e vindo, mas não conseguia se comunicar direito e tinha ficado claro que você estava esquecendo de algumas coisas.

Apesar da voz doce e calma que tenta me apaziguar, conheço a minha família e vejo no rosto de cada uma delas que estão tentando esconder coisas de mim.

Informações que não querem que eu saiba.

O que poderia ser?

— Há algo importante que eu preciso saber? — pergunto com todas as letras.

Elas se olham, mas negam com a cabeça.

Não acredito.

Se não as conhecesse, poderia acreditar.

O problema é que estou com muita dor de cabeça no momento e me sinto incapaz de perseguir a verdade, seja ela qual for.

— Tudo bem — digo, mas não está tudo bem, afinal, estou em um hospital. — Estou com dor de cabeça, poderiam apagar a luz? — brinco, todas sorriem.

Tento sorrir também, mas, sem querer ser repetitiva, tudo dói.

A minha família ainda fica conversando comigo durante um tempo, mas tomando cuidado para não entrar no assunto sobre o acidente.

Quando elas se preparam para darem a visita por encerrada, uma enfermeira se aproxima e aplica um sedativo na minha veia.

Aos poucos, a sonolência vem e não me lembro de mais nada. Tudo se torna paz e calmaria por um tempo, sem dores e sem perguntas para as quais temo as respostas e não faço ideia do porquê.

O único sentimento que fica é o do vazio, somado a sensação de que estou deixando alguma coisa passar.

Está faltando uma peça nesse quebra-cabeça, e eu só preciso me levantar dessa cama para entender do que se trata.

Não sei quanto tempo passou, mas quando volto a abrir os olhos novamente, o perfume que me recebe traz o sentimento de proteção e pertencimento.

Um perfume bom e masculino. Um perfume forte, mas que traz paz.

De quem é esse cheiro?

Eu quero virar para o lado e descobrir quem é o meu visitante misterioso, mas meu pescoço não colabora.

— Por que você não chega perto de mim e mostra o seu rosto, visitante misterioso? Eu não mordo — tento fazer piada no pior lugar possível, mas preciso me distrair do arrepio na pele que essa presença está me fazendo sentir.

Eu não sei se é um arrepio bom ou ruim.

E não tenho condições de analisar nada agora.

Caramba, só quero ver o seu rosto.

Por que esse homem difícil está dificultando a minha vida?

Pode ser que não seja um homem.

Uma mulher com perfume masculino?

Depois de um minuto inteiro de pura tortura, posso ouvir o som da sua respiração, quando passos firmes o trazem para perto de mim.

O homem se agiganta acima da minha cabeça e, instantaneamente, sinto as minhas bochechas corando.

Meu coração acelera por tantas razões diferentes.

As minhas mãos estão suando?

Eu estou entrando em combustão em plena cama de hospital?

— Senhor Leonardo? — murmuro, o homem faz uma careta.

Lindo é uma palavra fraca demais para definir Leonardo Von Daren, filho do Duque Von Daren.

Ele é pai da Elena, o pai que ela descobriu recentemente.

— Olá, querida?

Querida?

Recapitulando…

Leonardo é viúvo e multimilionário. Ele tem quarenta e três anos, é viúvo e nunca me deu atenção, embora eu tenha implorado por ela desde que o conheci através da minha melhor amiga, que no caso é sua filha.

Minha irmã gêmea e Elena fazem piadas com o fato de eu dizer que gosto de homens mais velhos, mais velhos a ponto de terem idade para serem meu pai, mas é a mais pura verdade.

Eu realmente tenho um fraco por homens como Leonardo. O problema é que ele não tem fetiche por mulheres que poderiam ser sua filha.

Não que eu tenha dado em cima dele desde que o conheci há uns três meses, mas flertei sem culpa e tenho certeza que não fui sútil o suficiente no ataque.

Esse homem é esperto. Ele deve ter percebido que meu flerte não era apenas uma brincadeira.

Todavia, seu desinteresse é proporcional ao tamanho do meu interesse.

Sempre a um palmo de distância. Sempre me tratando da forma como trata sua filha.

O problema é que não sou sua filha e sinto tesão por ele, tanto que não deveria ter ficado surpresa quando descobri que estava andando a cavalo quando me machuquei.

Posso apostar que estava nas terras da sua mansão e que só montei no animal em uma tentativa de o impressionar.

Será que ficou impressionado?

Deve ter ficado, senão não estaria aqui, não é?

Ou talvez só está sendo cordial.

Esse é o jeito Leonardo Von Daren de ser.

— Você veio mesmo me ver? Será que estou sonhando?

— Eu não poderia deixar de vir — fala.

— Por quê?

— Porque você é família da minha filha. Se é família da Elena, também é minha — fala com seriedade, mas sinto que gostaria de dizer muito mais.

Você poderia ser menos boba e iludida, Pérola?

— Só por isso? — Insisto em me envergonhar na frente dele.

— Por qual outro motivo eu viria até você? — provoca, com um dos seus raros sorrisos no rosto.

Apesar da brincadeira, infelizmente está dizendo a verdade.

Leonardo é um viúvo que poderia ter as mais belas mulheres do reino na sua cama. Mas a sua vida celibatária é conhecida por todos, e mesmo se não fosse o caso, o homem faz questão de deixar claro com seu distanciamento que a melhor amiga da sua filha jamais será uma opção.

Com quase dois metros de altura, cabelos negros, com alguns fios brancos e lisos, o olhar firme do viúvo ajuda no conjunto da obra que o torna um homem muito atraente, apesar de nunca sorrir.

O seu nariz só poderia pertencer a um membro da nobreza de tão perfeito e bem desenhado. A boca, que está sempre em uma linha séria e firme, é larga e levemente carnuda.

O seu olhar, que lembra muito o olhar da minha prima, embora o dela seja castanho esverdeado e o dele apenas castanho, é intenso e sempre me fez sentir como se estivesse desnudando a minha alma. Isso nas poucas vezes em que se deu ao trabalho de olhar em minha direção até hoje.

Não que esteja acontecendo algo muito diferente do habitual hoje.

Nos últimos três meses, minha vida consiste em tentar chamar a atenção dele e agarrar todas as oportunidades de vir para Solari e ficar perto desse homem.

É uma paixão maluca e sem esperança, mas é ela que tem alimentado a minha alma desde o dia em que o vi pela primeira vez e não consegui desviar o olhar do homem mais bonito que eu já tinha visto na vida.

Agora entendo a sensação de que algo estava faltando.

Era Leonardo a pessoa de quem estava sentindo falta, embora eu não ficaria surpresa se não viesse me ver. Para esse homem, sou apenas a prima da sua filha.

Que bom que não esqueci dele.

Não importa quais lembranças foram perdidas, desde que todas sobre Leonardo Von Daren estejam aqui.

Espera um pouco… há algo muito errado acontecendo.

O meu olhar acompanha quando ergue o braço e sua mão se aproxima do meu rosto.

Então, com meu coração prestes a sair pela boca, sinto minha pele queimar quando seus dedos firmes e longos tocam a minha bochecha com carinho.

Leonardo, que nunca me tocou nem de forma platônica, está me acariciando agora como se fôssemos íntimos.

Eu não quero que ele pare nunca mais.

Sua presença e o seu toque me fazem esquecer da dor que antes estava sentindo.

Ele me faz esquecer-me de tudo.

— Que bom que você está aqui, pequena — diz, me encarando como se estivesse querendo me dizer muito mais.

— Que bom que você está aqui, Leonardo. Não estava esperando que viesse, mas estou feliz.

— Eu sei — o homem fala e j**a uma piscadinha para mim, ainda com a mão quente na minha bochecha.

Algo mudou. Mas o quê?

Quando?

Não importa agora. Mesmo que tenha sido por causa do acidente, algo que eu jamais desejaria viver, ele finalmente está me enxergando de alguma forma e quero aproveitar esse momento.

— Por que você não descansa um pouco?

— Não quero dormir agora. Vamos conversar — falo, o viúvo balança a cabeça, puxa uma cadeira e se senta ao meu lado na cama.

Mas não há nada que possamos conversar agora.

Na verdade, quando fica mais perto de mim e seu cheiro e calor nublam os meus sentidos, inicia-se um silêncio longo.

Mas não um silêncio desconfortável ou algo semelhante.

A gente apenas se encara, há trocas de olhares que não sei o que significam da sua parte, mas tenho medo de perguntar e estragar tudo.

Em algum momento, algo que eu não queria acontece e acabo dormindo.

Durmo com medo de acordar e descobrir que foi tudo um sonho, uma ilusão.

Mas a verdade é que o despertar traz surpresas para as quais eu jamais poderia estar preparada.

Surpresas que me levam para longe do meu objetivo de conquistar o pai da minha prima.

O homem por quem me apaixonei desde o primeiro olhar.

Uma paixão proibida, eu sei. Mas também uma paixão irresistível.

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