AS CAÇADORAS - Primeira Parte: O MAR E A ESCOLHIDA
AS CAÇADORAS - Primeira Parte: O MAR E A ESCOLHIDA
Por: Renata Ávila
O CANIBAL

Samanta agradeceu o motorista do carro de aplicativo e desceu pegando sua pequena valise com uma mão, enquanto atravessava a bolsa nos ombros. Olhou em volta e sorriu, um grande número de prédios - mais altos do que deveriam para uma cidade litorânea - e ruas limpas, pessoas caminhando para lá e para cá, mas não muitas, era baixa temporada, ainda não era o tempo em que suas ruas ficavam apinhadas de turistas andando como zumbis de um lado para o outro, comprando dezenas de coisas que de fato não precisavam, ou parados em filas intermináveis para adquirir uma das comidas saborosas e extremamente gordurosas que as barraquinhas - em formato de mini casas de madeira e espalhadas por toda uma quadra em volta da praça central - vendiam.

Andou na direção do som agradável do mar, o vento intenso fazia seu trabalho muito bem quando se encontrava com a água. Ondas altas quebrando muito próximas da faixa larga de areia fina e clara. Contemplou por algum tempo, indo até o passeio bem cuidado e parando ali. Respirou fundo sentindo aquele cheiro de maresia, fechou os olhos e quando os abriu, um grupo de garotos, com não mais do que 25 anos, passou na faixa de areia, com suas pranchas debaixo dos braços tatuados e baseados no meio dos dedos. 

Acompanhou seu andar lento, conversa animada e risadas, eles eram tão fáceis, não faziam ideia de quem estava na cidade. Não faziam ideia de que as vidas de todos poderiam mudar, para o bem ou para o mal, nas próximas semanas.

Encarou o mar por mais algum tempo, seus cabelos longos e negros voavam como se fazendo um balé, já os sentia mais pesados, devido a maresia. A imensidão azul parecia chamá-la com seu som poderoso, sorriu involuntariamente, lembrando de um tempo em que sua vida era vivida de forma simples, a beira do mar, caminhando com os pés dentro da água ao final do dia, para que todo o cansaço do trabalho incessante fosse levado com as ondas que recuavam depois de lamber suas pernas.

Afastou as lembranças da cabeça e se virou para o hotel antigo que se localizava exatamente de frente para a imensidão azul. Andou até a recepção, uma jovem bonita com maquiagem forte e cabelos crespos a olhou um pouco surpresa.

-Pois não?

-Olá, vocês têm quartos disponíveis?

-Todos na verdade. - A jovem a olhou sorrindo sem graça. - Essa época é tudo parado aqui. Tem preferência pela localização?

-De frente para o mar, por favor. - Sorriu e entregou o cartão de crédito falso que usava para não ser identificada.

-Senhora Ana? Quanto tempo a senhora ficará conosco? 

-Uma semana, por favor, pode fazer o desconto de tudo.

-Com café da manhã incluído?

-Não obrigada, somente as diárias.

A menina preencheu o cadastro com as informações de rotina, estranhou a recusa do café da manhã, era uma das melhores qualidades do hotel, mas não era de sua conta. Sorriu devolvendo o cartão de crédito e entregando as chaves do quarto. 

-Vou pedir para o menino levar sua bagagem.

-Não possuo. - A menina a olhou sem entender e ela revirou os olhos. - Minha bagagem extraviou no aeroporto, vou ter de comprar tudo novo.

-Se quiser posso indicar algumas lojas, a senhora vai adorar, temos muitas na cidade.

-Claro, obrigada. - Sorriu e foi até seu quarto, precisava mesmo de roupas, sua última fuga não permitiu que levasse nada além da valise.

Foi até a sacada e observou novamente o mar. Ficou parada por algum tempo, apenas sentada olhando a fúria e o poder das águas azuis escuras. Queria aquela fúria, talvez se a tivesse fosse possível parar de fugir, parar simplesmente. E aproveitar, finalmente, a vida. Era bobagem claro, já era furiosa o suficiente, isso nunca fez diferença de fato, não mais do que o necessário nas lutas que precisava travar.

Acendeu um cigarro e fumou tranquilamente, algo lhe dizia que aquela tranquilidade não duraria muito tempo. Observou duas meninas andando lentamente no calçadão, conversavam animadas a respeito de algo que, para elas, deveria ser muito importante. Viu a cumplicidade delas e as acompanhou com o olhar. Lembrando de quando tinha alguém com quem partilhar segredos e encontrar soluções para todos os problemas do mundo, e elas faziam, Samanta e sua melhor amiga, encontravam soluções para tudo, em suas longas conversas, que duravam tardes inteiras, sentadas à beira mar. Aquelas meninas especificamente, lhe chamaram atenção pela forma como andavam falando de forma a completar uma a outra. Talvez fosse o fato de se parecerem com ela e a amiga dos tempos de adolescência, mesma estatura e cor dos cabelos, talvez fosse a cumplicidade que emanava, como se não houvesse mais nada a sua volta. 

Um ciclista passou e falou algo, ao que uma delas levantou a mão mostrando o dedo do meio, e gritando um impropério para ele. Samanta levantou observando, imaginou que ele ia parar e fazer algo, mas apenas acelerou as pedaladas e se afastou, a outra pareceu repreender a amiga, mas ela deu de ombros e arrumou a coluna, como se chamasse alguém para a briga. Eram meninas de pequena estatura, mas ela realmente colocou o homem para correr com sua postura recém arrumada. 

Estava rindo quando o celular vibrou ao seu lado, baixou os olhos e fez uma careta.

-Ele já sabe que você foi embora.

-Antes tarde do que mais tarde eu acho. Ele foi aí?

-Sim, quebrou tudo, atirou suas roupas por toda a casa, e deixou um bilhete. Quer que eu leia?

-Querer eu não quero, mas acho que preciso.

-Diz: "Corra, corra, pequena morceguinha, eu estarei sempre por perto, sempre descobrindo seus segredos”. Reticências e uma letra A.

-Precisava ser mais escroto? - Riu revirando os olhos. - Você estava em casa?

-Não, mas talvez ele retorne.

-Sabe o que fazer, diga que eu falei para onde ia, e mostre no mapa, diga que não sabe onde fica.

-Eu não sei mesmo onde fica, mas você foi para lá?

-Foi o que eu disse para você, ele vai tocar sua cabeça, deixe que entre e não se exponha a riscos maiores do que são necessários. Entendeu Elizeu? 

-Sim! - Suspirou alto, depois falou baixinho, como se contasse um segredo. - Por favor Sam, toma cuidado…

-Eu estou, não se preocupa. Assim que ele descobrir onde estou, e for seguro, me avise para que possa tentar sumir antes que ele apareça.

-Tudo bem.

-Se o dinheiro não for suficiente para cobrir as despesas, me avise e envio mais, certo?

-Não se preocupe com dinheiro Sam, você salvou minha mãe, eu tinha uma dívida com você, talvez ainda tenha.

-Você não tinha dúvida nenhuma. E como ela está?

-Viva, ainda um pouco deprimida mas vai melhorar.

-Vai sim, se cuida, e não faça nenhuma loucura, ele normalmente não ataca meus senhorios, então fique na sua e diga tudo o que ele quer saber. Tchau meu amigo. - Desligou e permaneceu sentada, não queria levantar ainda, o vento frio fazia bem para ela. Não se preocupava em correr dali caso Alec chegasse até Elizeu, não estava onde disse, isso era necessário, o rapaz que teve a mãe quase morta por ua criatura, e que ela salvou, não poderia saber sequer isso, ou a colocaria em risco, se sentindo culpado caso aquele maldito conseguisse encontrá-la. Era mais uma das boas pessoas que passaram por sua vida, e a ajudaram como podiam, sempre contou com elas, as boas almas desconhecidas.

Seu celular a interrompeu novamente, olhou o número desconhecido e atendeu sem dizer nada, poderia ser Alec, mas duvidava disso. A voz que chegou era grossa e tranquila, apesar de estar em seu tom mais ansioso naquele momento.

-Samanta, onde você está?

-Padre, não acho que deva dizer para você, mas estou resolvendo um dos problemas criados pela sua igreja.

-Muito bem, você precisa de algo? - Ele fazia uma careta, ela conseguia sempre dizer um desaforo, o que de fato não fazia nenhuma diferença para ele, apenas continuava no mesmo tom.

-Não, mas fique atento, assim que terminar o serviço vou ligar para que venham limpar tudo.

-Você está bem? - Baixou a voz como se não pudesse perguntar aquilo.

-Perfeita! Quer uma foto de agora? - Sorriu maldosa e aguardou ele suspirar sem paciência, depois desligou o telefone.

A noite caiu rapidamente, e uma neblina densa veio junto com ela, a visibilidade era de cerca de um metro, pouco mais do que isso há algumas quadras do mar. Era a noite perfeita para sua caçada, andou pelas ruas fracamente iluminadas, seus passos silenciosos e tranquilos abrindo espaço na neblina.

Se aproximou dos cômoros de areia baixos que restavam na beira mar, e os contornou andando pela areia fofa que começava a ficar dura por conta da umidade. Sentiu o cheiro característico da presa, sua respiração entrecortada, parecendo fraca. Isso significava que, ou sairia para caçar em seguida, ou seu jantar já estava a sua frente. 

Ele estava atento também, sentiu o perfume de flores dela mas não soube do que se tratava, ergueu a cabeça farejando o ar, olhou em volta procurando na escuridão, se virava bem a noite, mas a neblina prejudicava sua visão, menos do que a dos humanos, mas ainda assim, se comparado com Samantha, que enxergava perfeitamente em qualquer situação, era como se estivesse cego.

Ela andou até ele, como se seus pés não tocassem o chão, estacou ao ouvir o choro abafado e as súplicas, estava atrasada, torceu para que sua vítima ainda pudesse ser salva. Foi tudo muito rápido, o monstruoso vampiro devorador de carne emitiu um guincho horroroso, assustador, e tentou pular sobre ela, mas Samanta era mais rápida, encaixou as unhas entre o pescoço e o queixo, com seus dedos longos em garra, e arrancou a cabeça em um movimento rápido, quase gracioso. 

Sangue podre por toda parte, ela atirou o corpo e a cabeça em cantos opostos da areia, e se debruçou sobre a jovem recepcionista do hotel, provavelmente pega quando voltava para casa depois de seu expediente. Observou o pescoço e barriga dela, estava com a blusa rasgada e parecia congelada, tremia um pouco pelo frio, e muito pelo medo. 

A vítima encarou os dentes grandes e os olhos semelhantes aos de um gato em sua frente, e não suportou mais, depois do monstruoso ser que a havia arrancado da rua, puxando pelos cabelos, aparecia aquela mulher igual a um vampiro dos filmes de terror, e se aproximava de seu pescoço. Desmaiou em poucos segundos. 

Samanta deu de ombros e a colocou deitada coberta com seu casaco, pegou o corpo e abriu a sacola bem dobrada que trazia no bolso de seu casaco, o colocou ali, precisou quebrar alguns ossos, tirar uma perna e um braço, mas coube perfeitamente depois disso. Fechou o zíper e derramou um líquido sobre a areia suja de sangue, riscando um fósforo e vendo queimar, apenas os grãos molhados pelo líquido nojento que saiu do pescoço da criatura.

Aproveitou a claridade das chamas e observou novamente a menina, torcendo para que estivesse livre do veneno. Ela acordou e ia gritar, mas Samanta cobriu sua boca e olhou em volta.

-Shhh, por favor, eu quero ajudar, não vou encostar em você se colaborar comigo está bem? Presta atenção, ele mordeu você? - A menina permaneceu com os olhos arregalados. - Vou tirar minha mão, não grite, e me responda, ele mordeu você? - Retirou e a menina demorou alguns segundos para emitir um som, suspirou se acalmando.

-Não, quando ele viu que tinha mais alguém, parou o que estava fazendo, não encostou a boca em mim, mas eu acho que ia!

-Não tenha dúvidas de que ia. - Esticou a mão e fez um sinal com a cabeça. - Vou colocar você em um táxi, vem comigo.

-Quem é você? O que é você? - Havia parado de chorar, agora parecia recobrar um pouco da sanidade, queria explicações, esses monstros em sua cidade, andando livremente e matando, as pessoas e uns aos outros? Aquilo era bizarro demais.

-Essa noite? Sou a porra da sua super heroína garota, deveria ganhar um beijo e sua eterna gratidão, mas como sei que isso não vai acontecer, vem comigo, e vamos te levar para casa.

-Vampira? Loba? Uma alucinação que me levará para uma clínica psiquiátrica?

Samanta riu, acendeu um cigarro e pegou a sacola com o corpo, atravessando a alça nos ombros.

-Você é boa menina, o fato de fazer piadas significa que não vai enlouquecer, que bom!

-Por que, que bom?

-Porque vai entender, quando eu disser que não deve contar isso para ninguém. Porque não vou precisar matar você, ou dizer que é louca e apoiar sua internação se fizer o que estou dizendo. - Deu de ombros piscando um olho.

Andaram em silêncio, a menina tentando se manter afastada dela por todo o percurso. Samanta entendia, era assustadora transformada. Não condenava a jovem, a estranha a salvou mas ainda era uma criatura assassina, melhor não ficar perto demais. Se chamava instinto de sobrevivência, uma coisa que pensava não possuir mais, depois de todos os anos em que era regida por sua sede de sangue e justiça.

-Você não sente frio? - Estava embrulhada no casaco longo de couro de Samanta. Pois sua blusa fora inutilizada pelo monstro.

-Você deve imaginar a resposta menina, para ser o que eu sou, não é possível estar viva.

-Caralho!

-Adoro essa palavra, ela descreve bem a situação. - Fez sinal para um táxi que passava. - Entra ai menina, vai para casa, descansa, você precisa disso.

-Você ainda vai estar no hotel amanhã? Porque moça, eu quero explicações, eu não posso simplesmente aceitar tudo isso…

-Amanhã vá até meu quarto com café forte e bastante açúcar, e conversamos. - Fechou a porta do carro, depois de olhar bem para o rosto do motorista, se certificando que ele não era nenhum maluco que faria mal a menina e entregando uma nota de 100 nas mãos dela.

Ajeitou a sacola no ombro, aquela merda começava a cheirar mal, ia deixá-lo na igreja, pegou o celular e apertou a discagem automática.

-Levo pra igreja daqui? 

-Mas já!? - Gabriel soltou uma risada satisfeita. - Não pode deixar na igreja, o padre daí não está familiarizado com nosso trabalho, fique com ele e amanhã alguém vai buscar.

-Você sabe o quanto isso fede Gabriel?

-Tenho certeza de que isso não vai te matar.

-Uau! O padre bem humorado, que ótimo!

-Me passe as coordenadas pelo email seguro, amanhã bem cedo você se livrará do cheiro. Alguma vítima?

-Uma viva e não ferida, amanhã eu resolvo tudo com ela.

-E por que não hoje?

-Me diga, o que você está vestindo? - Sussurrou no telefone e ouviu o grunhido dele, e depois o silêncio. Riu atirando o cigarro dentro de uma lixeira, com um movimento do dedo médio e polegar. Comemorou o arremesso certeiro e entrou em seu quarto atirando a sacola em um canto próximo a sacada. Não poderia deixar para o lado de fora, ou acordaria com vários pássaros se deliciando na carne do fedido. 

Entrou embaixo do chuveiro e fechou os olhos aproveitando a água quente, se desconcentrou, perdeu o controle de sua mente apenas por um segundo, e então o viu. Sentado em uma poltrona grande e confortável, de tempos em tempos, bebia sangue diretamente do pescoço de um homem bonito e jovem. Ele a olhou e sorriu, percorrendo seu corpo com os olhos.

-Sabia que você pensava em mim no chuveiro. 

Samanta não falou, se ficasse em silêncio, ele não ouviria o som do mar e nenhum ruído ambiente de onde estivesse. Estava bonito, com seus cabelos curtos na altura dos ombros, negros e brilhantes como ela se lembrava, seus olhos pretos como jabuticabas e sua pele extremamente branca, fazendo um contraste que, mesmo depois de tudo, ainda a deixava com as pernas bambas. Andou até ele e o encarou, segurando seus cabelos com raiva.

-Diga, o que você quer, aproveite este momento de descuido e me ataque com tudo que tem Samanta. Eu sei que você quer! - Ele a encarou, parecendo grave em seu tom, mas não conseguiu esconder o sorriso, levantou uma mão até seu rosto, pouco antes de encostar, ela encerrou a comunicação, desaparecendo e fechando sua mente.

-Merda! Mas que merda! - saiu do chuveiro e deitou nua na cama, precisava mesmo de roupas, as que estava usando tiveram que ir para o lixo, sujas do sangue malcheiroso da criatura. Pediria para a tal menina trazer algumas para ela, era o mínimo depois de salvar sua pele. Se cobriu até o pescoço e acendeu mais um cigarro, fumando e observando a neblina dançar com a luz dos postes da rua.

O som do mar era hipnótico, tanto quanto sua imagem feroz, ela fechou os olhos por um momento, curtindo aquele som perfeito, suspirou, e pegou no sono, ou morreu por algumas horas, em seguida. Como não havia se alimentado, o sono vinha com facilidade, ficava mais fraca também. Não tinha sonhos quando isso acontecia, era como se seu corpo de aparência jovem, finalmente descansasse, depois dos mais de  300 anos de sua morte.

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