A IMAGEM E SEMELHANÇA

Sentiu a presença próxima a ela, sentando na cama ao seu lado, o peso afundando o colchão, e passando uma mão delicada em seu rosto, correndo os dedos por seu longo pescoço. Poderia ser Alec, que finalmente a encontrava, para se vingar de tudo que fez para ele. Mas então se deu conta, aquela mão era quente, além de ser um tanto áspera, como se costumasse fazer algum trabalho braçal. Sorriu ainda sem abrir os olhos, sabendo quem era, e gostando do toque.

-Isso pode se encaixar como assédio padre, além de eu correr o risco de virar mula sem cabeça. - O sorriso se alargou quando abriu os olhos e viu o rosto corado dele. - Mas se você quiser continuar, eu não vou me importar com as consequências.

Ele levantou e virou de costas, olhando o mar pela porta grande de vidro da sacada. Normalmente era controlado, desviando das piadas dela, apesar de a imaginar nua todas as noites, em seu quarto frio no mosteiro pouco mais velho do que ela.

-Sinto muito, eu não deveria…

-Tudo bem, não tem importância. - Levantou e parou nua ao seu lado. - Diga, por que você veio pessoalmente dessa vez?

-Jesus Cristo! - Ele olhou para ela e corou ainda mais, correu até a cama e pegou o lençol passando em volta do corpo frio e nú em sua frente. - O que você está tentando Samanta?

-Bem, uma garota vampira pode sonhar eu acho. - Deu de ombros segurando as mãos dele junto do lençol, ele tentou se afastar mas ela era mais forte. - Me diga você, Gabriel, o que pretendia sentado em minha cama, tocando meu rosto e pescoço? O que aconteceria se eu não tivesse dito nada? Até onde iriam essas mãos quentes?

-Nada, eu pensei que você estava ferida porque bati, gritei seu nome, e você continuava dormindo! Me desculpe se foi… não queria que parecesse…

-Não comi ontem a noite, por isso meu sono fica pesado. - Soltou as mãos dele e sorriu, ele arrumou os óculos e passou a mão nos cabelos castanhos e desalinhados pelo vento do litoral. - Por que você veio pessoalmente?

-Queria ver como você estava, se precisava de alguma coisa.

-E claro, passar a mão em mim também. - Andou até ele o fazendo caminhar de costas, se encostando na parede, ele ficou ainda mais sério, parecia pressionar o corpo contra o cimento, tentando fugir dela, ou de seus pensamentos, ela abriu o lençol e encostou o corpo no dele, ele fechou os olhos e ela teve certeza de que fazia uma oração. - Você pode continuar, eu ia gostar bastante.

-Por favor, Deusa, me dê forças para resistir, e a perdoe, ela não sabe o que faz. - Samanta riu da oração improvisada e cheirou seu pescoço. - Samanta…

-Eu sei, você não pode! - Se afastou e sentou na cama acendendo um cigarro.

-Eu trouxe roupas, e sangue. - Pegou uma bolsa simples de viagem e alcançou para ela.

-Obrigada! - Retirou a garrafa lacrada de um bolso lateral, e bebeu com voracidade. Se transformou e fechou os olhos sorrindo, quando os abriu, ele estava parado em sua frente, uma mão se aproximando de seu rosto, encantado. - Neste momento, padre, se você encostar não terá como parar…

-Eu preciso falar com você sobre essa criatura, ela não apareceu por acaso, Alec as tem enviado para cidadezinhas do interior, principalmente litoral, acho que está guiando você por um caminho que ele quer que faça. - Se afastou novamente, cruzando os braços e fechando os olhos por mais um momento.

-E como eu sou a única que faz esse tipo de coisas, ele será bem sucedido. - Procurou roupas e franziu a testa olhando as opções. - Então eu serei a garota da calça de couro super justa, ou a menina virginal de vestido? Mas qual o seu problema Gabriel!

-Eu… eram roupas antigas suas, essa calça e… - Suspirou enchendo o peito, arrumando novamente os óculos. - Trouxe o vestido porque pensei que ficaria bem em você, sabe, recatado e tudo mais.

Ela sorriu e levantou desenrolando o lençol de seu corpo, ele virou de costas novamente. Se vestiu e o olhou dando de ombros. 

- Não sei qual sua ideia de recato, mas não acho que atingimos esse objetivo.

Ele se virou e fez uma expressão sem paciência, ela havia abotoado o vestido deixando um decote, e como era alta, a saia ficou mais curta do que ele havia planejado.

-Gostou?

-Eu vou esperar você lá embaixo para caminharmos, tem um casaco aí dentro também, vista, está frio.

-Eu não sinto frio, mas entendi seu ponto. - Riu e foi até  a porta quando ouviu as batidas. - Menina! Como você está?

-Meu nome é Cátia. - Ficou parada na porta, encarou o homem e franziu a testa.

-Esse é o padre Gabriel, veio buscar nosso amiguinho de ontem a noite. Entra, vamos responder todas as suas perguntas.

-Um padre? - Ela o olhou curiosa, e entrou lentamente, ainda não estava convencida de que foi uma boa ideia ir até o quarto da mulher que não era humana. Se é que era tudo verdade mesmo.

-Como você está?

-Ficando louca eu acho. - Riu e sentou na cama, pegou um cigarro e olhou para ela em uma pergunta muda.

-Fique à vontade. - Samanta pegou o isqueiro da mesa de cabeceira e acendeu para ela com um movimento rápido. A olhou como se enxergasse sua alma, algo em Cátia era diferente. - Padre?

-Me conte, Cátia, como se deu tudo ontem a noite?

-Ela não falou? - O encarou apertando os olhos.

-Ele quer ajudar, pode responder por favor?

-Tudo bem, mas antes, quero saber por que um padre está no quarto de uma mulher que não parece humana? Além de garotinhos de 12 anos, vocês também gostam de vampiras?

Samanta soltou uma gargalhada sonora atirando a cabeça para trás e batendo palmas. Riu por um tempo, e então encarou Gabriel, com a testa franzida ele abria a boca para responder.

-Bom padre, seus colegas fizeram essa fama, sabe como é. - Samanta fez uma careta.

-Eu não sou um criminoso pervertido Cátia, dou minha palavra a você, e não tenho um caso com Samanta, e sim, ela é uma vampira. Eu faço parte de uma organização, de várias religiões e crenças, onde caçamos monstros, como o que atacou você ontem a noite. Samanta não é um monstro, ela é uma heroína, salva inocentes e destrói criaturas que cometem esses crimes horrendos.

-Acreditei em quase tudo, menos na parte em que você disse não ter um caso com ela, mas isso não é da minha conta. - O olhou ainda com o queixo erguido, parecia sentir mais desconfiança dele do que da própria Samanta. - Ah, eu sabia que você não se chamava Ana.

-Veja Cátia, nós não vamos fazer com que você esqueça, de nada do que houve ontem a noite, a menos que você queira.

-Como assim acreditou? - Samanta se aproximou dela e pegou um cigarro, acendeu e a olhou curiosa.

-Samanta eu estou explicando para ela.

-Shhh, espera Gabriel. - Levantou o dedo para ele sem olhar, e continuou encarando ela. - Acreditou? Ou soube que não era verdade?

-Então vocês tem um caso?

-Apenas em pensamento, vamos, como você soube?

-Eu apenas sei, assim como sei que ele acredita que você é uma heroína, mas você não tem tanta certeza disso.

-E você está só sendo esperta, ou costuma “saber” essas coisas sempre?

-Samanta… - Gabriel a olhou com os olhos arregalados.

-Pois é, estou tentando descobrir. Fala menina!

-Que diferença faz? Sim eu sei quando mentem e quando dizem a verdade, não com absoluta certeza, mas sei, pelas expressões das pessoas, seu tom de voz, essas coisas.

-Desde quando?

-Desde que minha mãe disse que meu pai era um homem honrado que precisou ir embora para trabalhar, e depois quando meu namoradinho da escola, Edu, me traiu com minha melhor amiga. - Fez um bico contrariada e encarou eles dois com um ar debochado. - Por que? Eu sou jesus redivivo por acaso?

Samanta riu e sentou ao lado dela, quase se afogou com a fumaça do cigarro, olhou Gabriel e piscou um olho.

-Padre, eu espero que sim! Ela é ótima, que bom que eu te salvei ontem, menina.

-Qual sua idade? Quem são seus pais?

-Tenho 20 anos, minha mãe é professora, não sei quem é meu pai. Por que?

-Você acha mesmo Sam? - Ele se aproximou sem desviar os olhos de Cátia.

-Mas que merda vocês acham que eu sou afinal? - Levantou empurrando ele e foi até a porta. - Vocês não vão fazer nada comigo, entendeu? Vão se ferrar, você Ana, ou Samanta eu sei lá, e você também padre. - Saiu batendo a porta.

-Você poderia ter segurado ela. - Ele apontou a porta sem paciência.

-E por que eu faria isso? Ela ficaria ainda mais assustada, ou você acha que é agradável estar em um quarto de um hotel vazio com uma vampira e um padre? - Levantou indo até a sacada e olhando o mar. - E depois, ela ainda não teve suas dúvidas sanadas, vai querer voltar e conversar. Vamos descer e tomar café, você parece mal alimentado, garanto que aquela comida do mosteiro é nojenta. - O olhou revirando os olhos. - Relaxa padre! Quando estiver pronta ela virá até nós.

Andou até a porta vestindo o casaco, igual ao seu antigo que estava com Cátia agora, de couro longo até os pés, com bolsos fundos na parte interna. Desceram para a área destinada ao café da manhã, não havia muitos funcionários naquela época do ano ali, somente os da cozinha, um garçom entediado, e alguns moradores da cidade que iam tomar seu café da manhã todos os dias na area de vidro quentinha e livre do vento, mas ainda com uma bela vista para o mar e algumas flores em um jardim próximo.

-Café forte e açúcar, por favor, ele vai querer o café completo da casa. - Sorriu sem tirar os óculos escuros e o garçom acenou desaparecendo na cozinha.

-Será mesmo que ela é a Escolhida? Quer dizer, muitas pessoas têm essa habilidade de saber quando alguém está mentindo.

-Pode ser, quer dizer, pessoas sensíveis e inteligentes tem aos montes por aí. Mas ela tem alguma coisa. - O garçom chegou e agradeceram, ela adoçou seu café com açúcar suficiente para três iguais àquele, mexeu e o olhou comendo, sorriu mordendo o lábio, e então desviou o olhar quando ele a viu e corou. - Você sabe, se for mesmo ela, pode ser que Alec não queira apenas me mostrar um caminho enviando suas criaturas, ele talvez tenha dado instruções para elas, para encontrar a menina.

-As criaturas não saberiam seguir instruções Samanta! Ou poderiam?

-Ele consegue, entra na mente delas e as comanda, mas claro, elas podem sair do controle se estiverem com fome. A de ontem ia matar ela, ou coisa pior. - Parou levantando a cabeça como quem entende. - Mas que merda! - Passou a mão no rosto e levantou indo até a recepção. - Cátia, venha até aqui agora! - Voltou sentando novamente, não esperou que a outra respondesse.

-Você pode me contar? - Gabriel a olhava curioso.

-O que você quer? Estou em meu horário de trabalho!

-Onde está? - Samanta a olhou escorando o corpo nos braços e levantando os óculos. - Onde está a mordida ou arranhão que a criatura te deu?

-Eu disse que não fui mordida! 

-Senta! - Como Cátia não se moveu, ela mostrou os caninos e seus olhos ficaram assustadores. - Senta agora!

Cátia sentou e a olhou com medo, quase tanto medo quanto na noite anterior.

-Vocês vão me matar agora? - Seus olhos estavam cheios de lágrimas.

-Foi com as unhas?

-Sim. Mas…

-Hoje era apenas uma cicatriz? Não era?

-Como você sabe? - Tentou levantar mas Samanta segurou sua mão. - Não vamos matar você, presta atenção. - Suspirou, teve pena dela. - Você foi arranhada, quer dizer que está infectada, uma doença grave está se espalhando por seu corpo, se você for quem pensamos, pode se livrar dela, se não for…

-O que? Se eu não for, o que?

-Sinto muito Cátia. - Gabriel pôs a mão delicadamente em seu braço.

-Ah mas que merda! Malditos monstros desgraçados! - Limpou as lágrimas e os olhou com fúria. - Quem vocês pensam que eu sou?

Gabriel olhou em volta, o último cliente se levantou para sair dali, esperou que ele fosse embora e acenou para Samanta.

-Cátia, existe uma profecia, sobre uma enviada da Deusa, que será sua imagem e semelhança, e que libertará a terra do mal. - Samanta falava devagar.

-A deusa? Com a? - Encarou Gabriel baixando os olhos para o crucifixo.

-Bem, deusa sim, mas cristo ainda foi cristo.

-Então a igreja patriarcal que costumava queimar mulheres serve a uma deusa, mulher?

-Em nossa defesa, não sabíamos que ela era Ela, na época. E também, a corrupção existe em todos os lugares, não compactuamos com ela. Nem com comportamentos da igreja, como condenar o amor homossexual e essas coisas. Eu disse que era de uma organização diferente, Cátia.

Ela pensou em perguntar porquê então eles pensavam ser errado ficarem juntos, mas seu medo de morrer ou virar uma coisa daquelas foi mais forte do que a curiosidade com casos alheios.

-Cátia, você é... quer dizer, pode ser, essa enviada, que salvará a todos. E se você for, esse arranhão a deixará mais forte, mas não a matará.

-Apenas me digam que isso é alguma pegadinha, que alguém está brincando com minha mente, que eu caí em uma dessas pegadinhas de programas da televisão aberta, que não tem a mínima graça e são de péssimo gosto.

-Olhe para mim, você sabe que não estou mentindo. - Samanta segurou seu braço e Cátia arregalou os olhos, viu tudo na mente da vampira. Samanta sentiu uma dor forte na cabeça e perdeu o controle de sua mente, a menina a viu completamente, era a primeira vez que isso acontecia, seu nariz sangrou e ela fechou os olhos fraca.

-Jesus cristo! - Gabriel retirou a mão de Cátia com um guardanapo, arrancando elas daquela ligação. - Samanta você está bem?

-Bem é um amplo conceito eu acho… - Abriu os olhos e pegou o guardanapo das mãos dele, limpando o sangue do nariz e se escorando na cadeira. - Acendeu um cigarro e encarou uma Cátia chocada, segurando a própria mão, como se alguém a quisesse arrancar. - Bem, acho que temos nossa resposta, isso quer dizer que você não vai morrer, mas que sua vida vai mudar completamente menina.

-Não! - Levantou com um pulo derrubando a cadeira, o garçom saiu da cozinha e caminhou até perto dela.

-Cat, tudo bem?

-Eu gostaria de pagar o café da manhã do senhor e da senhora, tenham uma boa estadia e divirtam-se em nossa cidade, se precisarem de alguma coisa, estarei a disposição. Seu casaco voltará da lavanderia essa tarde senhora Ana, mandarei entregar em seu quarto. - Baixou a cabeça em uma despedida muda, e voltou para a recepção.

Samanta passou a mão no rosto fazendo uma careta e fechando os olhos demoradamente.

-Vou andar na praia, pegue o corpo e leve ele de uma vez, o cheiro vai ficar incrustado naquele quarto. - Levantou e saiu em direção a areia clara andando até muito longe na beira do mar.

Pensou em Cátia morrendo de medo, era errado tirar ela de sua vida, mas se não fizessem isso, provavelmente Alec viria atrás dela, pois se enviou aquele monstro fedido para pega-lá, fazer com que seus poderes aparecessem de uma vez, então provavelmente ele viria em seguida buscar ela. Pela importância, viria pessoalmente, conhecia aquele vampiro melhor do que ninguém, ele precisava desses prêmios para crescer com o chefe, a menina seria destruída antes mesmo de dizer seu nome completo.

Andou sentindo a água bater em seus pés, segurava as botas na mão, parou contemplando mais uma vez, era uma boa praia, não necessariamente a mais bonita e ais atrativa, mas gostou dela, era simples. Cátia tinha razão em querer ficar ali, algo pareceu chamar sua atenção, nos cômoros de areia atrás dela, olhou procurando com os olhos, tentando decifrar a origem da impressão que teve, mas fora um grupo de crianças correndo pela beira mar, não havia mais ninguém por perto.

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