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A mão flamejante 002° - 003°

002°

O vento assobiava uma triste e melancólica melodia para o rapaz de longos cabelos negros vagando com sua mochila cargueira, calça cargo e jaqueta. Era alto, limpo e bonito demais. Contrastava com a paisagem triste e desolada do porto.

As pessoas caminhavam com a cabeça baixa com poucas esperanças de uma vida melhor, apesar da tristeza no ar trabalhavam duro, e todo o lugar estava movimentado.

Rembrandt Kazan caminhou observando tudo a volta como se fosse um turista, passou pelo mercado de peixes que estava repleto de gente trabalhando, e deu uma olhada nas barraquinhas próximas vendendo churrasco e estranhas frutas e legumes que nunca vira.

“Isso é uma laranja azul?” Ele pegou a fruta e girou na mão.

“Não come isso.” Uma garota com olhos esbugalhados que parecia ter fugido de uma adaptação de Oliver Twist puxou sua jaqueta. “É smegplanta.”

“Smegplanta? O gosto é muito ruim?”

“Não sei.” Ela apontou para o vendedor falando com uma cliente. “Mas se comer vai ficar assim. Olha a cara deles.”

Kazan deu uma bela olhada e percebeu o que conhecia por ‘veias de aranhas’ no rosto deles em uma quantidade grande e escura que só tinha visto programas sobre tratamento de pele. “Esta falando daquelas veias?”

“Se quiser comer, come peixe.” Ela apontou para uma  barraquinha que vendia frutos do mar fritos e assados com uma fila enorme e foi embora.

Kazan deu de ombros. “Quanto custa essa laranja?”

“O que você tem pra trocar?” Uma vendedora apareceu.

“Dinheiro.”

Ela riu balançando a cabeça.

“O pessoal daqui não usa mais dinheiro? Ninguém me falou isso.”

A vendedora se surpreendeu com sua boa aparência e quando seu cabelo descobriu metade do rosto viu que o lado do esquerdo do seu rosto era coberto de tatuagens tribais e seu olhos azul claro em contrate com o outro verde escuro. “O que aconteceu? Acabou a tinta quando tatuaram a sua cara?”

“Por ai.” Ele procurou pelos bolsos. “O que você me da por uma barra de chocolate com coco?”

“Onde arranjou isso?” A cliente ao lado engasgou. “Isso vale essa barraca inteira.”

“Mesmo?” Ele entregou a barra com um sorriso.

A vendedora pegou a barra tremendo e com um sorriso vitorioso. “Pode pegar o que quiser.”

E ele pegou, então seguiu seu caminho, periodicamente checando um mapa e um bloco de anotações com indicações sobre o caminho.

Notou que em algumas casas usavam-se panos e pedaços de madeira no lugar das paredes e janelas.

Ao adentrar as áreas mais nobres as casas ficavam mais esparsas, maiores, mais luxuosas e mais destruídas; os bombardeiros se concentraram nas regiões de maior renda; talvez pelas casas grandes e mansões serem alvos fáceis de atingir do céu.

Não via nem uma mansão que não estivesse intacta naquela região que lembrava filmes antigos pós-apocalípticos onde cidades eram tomadas pela natureza após o fim da humanidade.

As pessoas visivelmente evitavam as regiões mais atingidas pelos bombardeios e era possível ver os restos de uma ou outra bomba entre os destroços.

A sensação de abandono era grande, e quanto mais afastado do porto, mais as ruas estavam cobertas de folhas velhas e outro tipo de lixo antigo. Conforme se afastava do porto seguindo o mapa e ia adentrando as áreas mais nobres o lugar ia ficando mais vazio e cheio de plantas, até não ver mais viva alma.

Mesmo com a certeza de que estava sozinho ele sentiu alguma coisa o observando. O que era estranho.

Olhando a volta percebeu que em um par de fios elétricos do outro lado da rua haviam pássaros bizarros o encarando. Ele se perguntou o que eram aquelas coisas, pombos ou corvos. Era difícil dizer. Dois deles tinham três olhos e um deles o olho completamente branco. Pra piorar dentes tortos e amarelados.

“Estou sozinho de gente, não de bicho.” Com uma expressão de desgosto retirou seu pequeno tablet de um bolso da sua mochila e tirou uma foto. “E que bichos feios, devem ser os tais ‘smegmals’ que ouvi falar.”

Em seguida o jovem escutou um rosnado e quando se virou viu uma estranha criatura mutante que o que podia ter sido um dia, um cão vira lata. Seu corpo parecia em parte ter sido derretido, tinha olhos pelo corpo e em uma das pernas, a face era perturbadoramente parecida com a de um homem de meia idade e seus dentes afiados lembravam os de uma piranha.

“Oi amiguinho, que tal uma foto?” Tirou uma foto. “Ao invés de smegmals deveriam te chamar de cronenbergmals, ou clivebarkmals. Vocês lembram aqueles filmes antigos de terror dos anos oitenta.”

“Au! Au!” A criatura confirmou que era alguma espécie de cachorro e começou a rosnar ameaçadoramente.

“Eu geralmente sou contra matar, mas você força a barra só por estar vivo.” A criatura mostrou suas fileiras de dentes tortos e afiados e espinhos brotaram do seu corpo quando se eriçou. “Acho melhor seguir seu caminho, não é uma boa ideia me atacar.”

Como se respondesse a uma provocação a criatura avançou espumando com os olhos injetados.

Kazan esticou a mão e seu cabelo que cobria metade do seu rosto revelou que era coberto por tatuagens que então brilharam como labaredas.

Quando a criatura saltou, ele fechou sua mão sentindo a morte vir de todas as partes. Todas as células da infeliz criatura morreram ao mesmo tempo e despencou no chão parcialmente mumificado. Não havia nada que manteasse sua coesão e começou a se desfazer como uma escultura de areia molhada.

Calmamente tirou uma foto antes que a criatura se desfizesse com a brisa. “Vocês também passarinhos.” Após uma última foto fechou sua mão e despencaram dos fios.

Cuidadosamente ele seguia o caminho anotado até uma região muito diferente do resto da cidade.

Era impossível não perceber as áreas incólumes a toda destruição causada pelos bombardeios, como se até mesmo a mesmo a poeira evitasse esses quarteirões. Curiosamente também não tinham plantas que tivessem crescido o suficiente para dominar as casas como nas regiões anteriores.

No entanto estavam visivelmente vandalizadas, portas abertas e quebradas onde se podia ver que o interior fora revirado e pilhado, moveis, panelas, eletrônicos e outras coisas foram jogadas desde a entrada até o meio da rua e deixadas ali por meses.

Ao que parece o que não foi afetado pelos bombardeios foi pela mão dos humanos.

Finalmente Rembrandt Kazam parou na frente de uma rua íngreme de paralelepípedos e verificou se realmente precisava ir por ali no mapa. E com um suspiro desapontado, deu de ombros e continuou seu caminho desaminado e conformado.

Em uma banca de jornal viu um cartaz novo, com um desenho de uma bruxa e um aviso de recompensa para informação da localização de bruxas e até mesmo sua captura.

“Recompensa em e agua?” Ele levantou uma sobrancelha e tirou uma foto.

Ele continuou seu caminho colina acima e nesta região sem vestígios da guerra ele viu uma garota revirando uma pilha de lixo e logo a frente vinha uma velha senhora de chapéu branco e casaco azul, passeando com seu basset como se fosse um dia normal em uma vizinhança tranquila.

Aquilo era bem interessante.

003°

“O futuro esquecido” suspirou a voz que enfraquecia com o despertar. “Lembre-se.”

Allix abriu seus olhos e observou as nuvens girando em forma de espiral clareando acima da cidade em ruinas. A chuva acabou e estava amanhecendo. Havia pegado no sono durante o fim da tarde e a noite inteira, devia estar mais exausta do que pensava.

Ela vinha tendo esse sonho há muito tempo. Sentia que era importante lembrar e tentou inutilmente recordar seu sonho enquanto contemplava sua mão direita que emitia um calor que distorcia o ar a sua volta.

Durante a noite as roupas que usou para se cobrir haviam caído no chão, e o frio deixou todo seu corpo duro e dolorido. Se os arruaceiros a encontrasse dormindo daquele modo podia acabar se dando muito mal.

Ela percebeu o travesseiro borrado com sua maquiagem pesada. que usou para parecer com um membro de alguma gangue e manter pessoas afastadas estava uma bagunça indistinguível. Ela suspirou conformada e olhou para Hamlet.

Ele havia de algum modo aberto uma das garrafas de agua mineral, e colocado em um pote de onde estava bebendo.

“Como você fez isso?” Allix pegou a garrafa e bebeu o resto. Não sabia a quanto tempo não bebia agua mineral, realmente era diferente de agua velha e reciclada; a sensação era revigorante no sentido mais puro da palavra.

Após se espreguiçar pegou seu saque, seu gato Hamlet e o colocou na cestinha da bicicleta que encontrou. Foi incrível que após tanto tempo encontrou um lugar para saquear, e com algo tão útil como uma bicicleta com cesto.

Allix saiu pedalando pelas ruas abandonadas e rindo da sua sorte;

Como morava em uma colina não conseguia fazer o caminho completo de bicicleta e teve que sair no trecho final. Principalmente porque a alameda das laranjeiras era pavimentada com paralelepípedos que ela considerava uma tortura andar em uma bicicleta.

Ela  desceu da bicicleta ao lado de uma velha banca de jornais pilhada e destruída onde empilharam um monte de moveis velhos ao lado.

Durante a tempestade alguns se espalharam e um grande espelho carcomido ficou a mostra na altura para ver a si mesma.

Allix vestia um velho roupão rasgado parecer apenas uma mendiga sem nada que pudesse interessar e usava uma maquiagem perturbadora para afastar as pessoas.

Por algum motivo que não podia explicar aquela imagem fez seu sangue ferver e ela colocou instintivamente a mão direita para tapar o espelho.

O vidro se tornou negro e estalou, a pintura se queimou e saiu um cheiro forte. Furiosa ela agarrou o espelho e sentiu o metal amolecer em sua mão direita e com toda raiva do mundo Allix arrancou o espelho e o jogou no muro ao lado.

Irritada percebeu o velho cartaz na banca de jornas anunciando o jogo de cartas colecionáveis de Atizaya[1] disponível em todas as bancas de jornal e lojas de brinquedo. Agarrou sua bolsinha de crochê com o baralho dos sonhos que seu pai havia lhe dado e se acalmou.

Para sua surpresa percebeu que logo ao lado tinha um cartaz novo:

O que era bem incomum.

O cartaz novo tinha um desenho da silhueta de uma bruxa de chapéu pontudo, que lembrava a abertura do antigo seriado da feiticeira que ela costumava assistir quando criança com seu pai.

Um gosto ruim cresceu em sua boca e uma terrível sensação de que algo ruim iria acontecer.

Era um cartaz da “Curia,” a religião local, procurando por feiticeiras e oferecendo uma grande recompensa em bebida e comida.

As pessoas estavam ensandecidas contra bruxas, feiticeiras e o que fosse que pudessem descarregar sua raiva. Realmente o império Noza era composto de feiticeiros e o governo mundial também tinha o exercito Arcano. Não havia discussão sobre a culpa deles pelo estado de Mineralia, que não tinha nada a ver com aquela guerra, mas do mesmo modo que foram pegos no fogo cruzado entre duas superpotências, os habitantes de Mineralia queriam descontar seu ódio, e não se importava que fosse um inocente.

Ser uma feiticeira em Aquamarina naquele momento, não era uma coisa boa. Cabisbaixa continuou seu caminho pela alameda das laranjeiras que subia o morro e dava a volta até o outro lado.

Hamlet miou chamando a atenção de Allix. Não sabia dizer se habituara tanto a se comunicar com seu gato que era compreender as minucias do timbre de sua voz, ou se realmente os gatos desenvolveram uma conexão magica com seus escolhidos; como alguns diziam, mas sabia muito bem o que ele queria dizer: Percebeu um smegaml perigoso que estava vindo em sua direção.

Allix não tinha percebido, pois se mesclara entre a vegetação que saia do quintal da casa e preencheu toda a extinção da mureta. As smegplantes cresciam em um grande velocidade e se fossem cobertas pela nevoa, podiam chegar a crescer mais de um metro em apenas 24 horas.

Alguns lugares de Aquamarina pareciam até ruinas que foram abandonadas por centenas de anos e tomadas pela selva.

As áreas próximas da costa como a vizinhança onde Allix e Hamlet moravam era uma das melhores, principalmente por não ter nevoa com frequência.

“O que é isso?” Allix teve um arrepio ao ver a criatura; apesar de já estar acostumada com todo o tipo de monstro, eles não gostavam da luz e não costumavam sair durante o dia. “Você é um tipo de protótipo de tartaruga ninja?”

Em uma mureta próximo havia uma iguana mutante do tamanho de uma criança. Seu pescoço era anormalmente comprido, tinha umas bolas vermelhas nojentas pelo corpo e os membros posteriores pareciam braços humanos. Suas garras roçavam no muro tirando lascas sem esforço, deixando bem claro como eram fortes e afiadas.

Respirando fundo começou a se concentrar e pequenas faiscas azuis começaram a picar em volta do seu corpo; então pegou uma bola de metal do seu bolso, girou entre seus dedos e a acomodou entre o polegar e o indicador, para arremessar no ar como se fosse uma bola de gude. “Não sei como isso chegou aqui, mas é melhor acabar com a sua miséria; certo Hamlet?”

O gato miou concordando e ela arremessou a bolinha prateada no ar na direção da criatura e rapidamente fez um gesto de arminha com sua mão direita.

ZAP

Em uma fração de segundo as faíscas azuis correram em volta do seu braço e se uniram até a ponta do seu dedo se tornando um relâmpago, que foi atraído pela bola de metal. O impacto foi tão forte e violento que a bola derreteu imediatamente envolvendo o raio se tornando uma flecha prateada, que acelerou mais rápido que uma bala de revolver.

O iguana mutante foi atingido na ponta da cabeça e peito, explodindo em jarro vermelho e caindo atrás do muro.

Com um olhar recuperado; Allix contemplou com desprezo o cartaz da bruxa e se virou para Hamlet, seu gato.

“Ser uma feiticeira nesses tempos pode ser ruim, mas tem suas utilidades.”

Hamlet miou concordando e pulou do cestinho a chamando com a cabeça para subir a rua.

Silenciosamente ela o seguiu, até sua casa, alguns quarteirões a frente, próximo do topo, onde podia ver a costa e o mar coberto pela nevoa, mas evitava a vista, pois se lembrava de como cu era bela e inspiradora aquela paisagem, e isso a deprimia.

Se naquele momento Allix tivesse se virado teria tido uma terrível surpresa, pois dois gigantescos porta aviões surgiram na costa saídos da nevoa.

Uma embarcação com a bandeira do governo mundial e a outra com a bandeira do exercito arcano; também conhecidos, como os caçadores de bruxas.

[1]Atizaya. Sânscrito. Maravilhoso, Abundante, melhor. – Um jogo de estratégia com cartas colecionáveis muito popular entre crianças e adultos.

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