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A mão flamejante 004° - 005°

004°

Allix não morava exatamente na Alameda das Laranjeiras 740, apesar de ser seu endereço postal. Morava logo ao lado de uma casa na esquina com a Alamede dos Pessegueiro e para sua irritação geralmente as encomendas eram entregues na casa da esquina ao lado. Mas como era onde morava sua grande amiga Elena, nunca foi um grande empecilho.

Sua casa era bem antiga, da época em que o país de Mineralia era um local de fazendas, antes dos hotéis e cassinos. Originalmente nem mesmo tinha encanamento e eletricidade; foi reformada inúmeras vezes com o passar dos anos e ironicamente sua ultima grande reforma foi para restaurar a aparência colonial original, com o apoio da prefeitura em uma iniciativa para tornar a cidade de Aquamarina, mais pitoresca e atrativa para os turistas.

Não foi difícil dar a impressão de que o lugar estava abandonada como o resto do quarteirão; a mureta de pedra na faixada estava toda pichada, havia papeis velhos, pedaços de brinquedos e um triciclo enferrujado na área de entrada dando a impressão de que já fora saqueada e pra finalizar vasos quebrados com plantas que aparentemente cresceram descontroladamente logo na porta da frente.

Mas aquilo não era tudo, existiam três níveis de armadilha caso alguém insistisse em entrar na casa: Se tentassem abrir o portão seriam atingidos por um portão enferrujado, se fossem a porta da frente um reboco da sacada cairia e se mesmo assim não achassem que o lugar estava em construções perigosas o suficiente e abrissem a porta da frente; seriam atingidos por um rifle de cano duplo posicionado em uma cadeira.

E aquilo era apenas a proteção daquela porta.

Originalmente todos aqueles sobradinhos foram uma grande casa de fazenda e após a queda do governo e a fuga em massa dos pessoal da região ela e as vizinhas decidiram derrubar as paredes entre os corredores e quintais para restaurar a antiga forma da casa.

Costumavam dizer brincando que como não havia mais TV, radio e internet, ocupavam seu tempo reformando. E ocupavam mesmo.

Por dentro a casa era completamente diferente, moderna e luxuosa com os mais caros e requintados moveis, utensílios e equipamentos que Allix ee suas vizinhas pilharam de casas de todo lugar.

Instalaram cabos de fibra ótica por todo o lugar e a iluminação se tornou a mesma tanto do lado de fora quanto do lado de dentro; cobriram todos os telhados do quarteirão com painéis solares, instalaram vários tipos de geradores elétricos e até bicicletas ergométricas para gerar eletricidade. Por fim espalharam sinais fosforescentes para se movimentar a noite.

Mas já não eram muito uteis, pois equipamentos eletrônicos se tonavam inúteis em questão de dias; diesel, gasolina e álcool foram se tornando cada vez mais escassos e difíceis de conseguir.

E por causa da ausência do sol, os painéis solares mal aguentavam a velha tv de tubo e o videocassete que Allix conseguiu para a sua mãe doente se entreter.

Allix e Hamlet entraram por outra casa e passaram por uma passagem secreta para antiga casa vizinha da sua amiga Elena. Apesar da decoração luxuosa o lugar estava repleto de suas pilhagens com pilhas de roupas, joias, utensílios de luxo, maços de dinheiro e outras coisas que se tornaram inúteis.

Entrando na área da sua casa, não se viu sinal de saques empilhaos e tudo estava arrumadinho com um cheiro de pinho, com excessão da cozinha, que estava bem cheia do que realmente importava: comida. Pilhas de enlatados, pacotes de comida instantânea, potes de conserva, pasta de amendoim, frutas secas, oleaginosas como nozes e castanhas, sacas de cereais e caixas de leite vegetal. Para complementar potes de vitamina e suplementos nutricionais.

Allix olhou para aquilo e engoliu seco sentindo uma pontada de desespero. Para um despreparado aquilo podia parecer uma fartura, e que não tinha problemas para se alimentar, mas não haviam nutrientes o suficiente ali para ser a única coisa a se comer por meses e meses, sem contar que a falta de sol não ajudava.

Ela se lembrou de como aquela pilha era muito maior e até chegou a ocupar as cozinhas das casas vizinhas. Tinha ainda comida para sua mãe não passar fome por meses, mas não tinha como reabastecer. Já fazia muitos meses desde seu ultimo saque e mesmo que a comida que encontrou fosse uma benção e estava agradecida por isso, não era o suficiente para muito mais do que um dia.

Ela foi até a cozinha da casa ao lado, que derrubaram a parede que as separava onde montara uma estação caseira desalinização e puma pequena plantação interna onde cresciam alfaces e hortaliças. Então ela pegou um pote de agua para fazer comida. Em seguida tacou fogo em alguns maços de dinheiro para ferver mais agua do mar e gerar agua potável.

Abriu uma lata de comida de gato para Hamlet, pegou um pacote de macarrão instantâneo e pôs sua mão no fundo da panela para ferver a agua. Preparou uma bandeja que pegou num dos hotéis que saqueou e levou para sua mãe.

O corredor do segundo andar tinha pilhas de fitas vhs na parede, tanto vídeos oficiais quanto gravações amadoras que ela e as amigas acharam nas casas e lojas abandonadas.

Ivana estava deitada em sua luxuosa cama de casal decorada com tecido branco em seu baby-doll de ceda cor de champanhe, ironicamente abraçada a uma garrafa de champanhe. A velha tv de tubo estava ligada com chiado.  Na tela.

“Mãe, mãe.” Allix sentou ao lado dela e a acariciou. “Ainda pegando essas bebidas.”

“Claro, bebidas são pra beber.” Ivana tentou abrir um saquinho de palitos de carne seca que Allix trouxe na bandeja, mas não teve forças e a filha abriu para ela, que pegou um e com um suspiro colocou na boca como um cigarro. “Luz no céu. Já é hora do almoço?”

“Não, mãe. Trouxe o café da manhã.

“Durmo tanto que nem sei que horas são. O que você trouxe? Macarrão instantâneo com atum ou macarrão instantâneo com fiambre?”

“Fiambre.” Ela levantou a tampa de metal redonda mostrando o prato preparado. “Combina com as ervilhas e a seleta de legumes.”

“Cadê o mé?” Ivana olhou pegou o copo de champanhe na bandeija. “Trouxe mais champanhe ou espumante?”

“Não mãe.” Allix pegou a garrafa vazia e a sacudiu. “È a única coisa de valor que tem pra gente trocar por peixe.”

“E peixe é a única coisa fresca que ainda existe no mundo, eu sei.” Ela esfregou os olhos e se espreguiçou. “Mas eu não posso ficar sem beber, essa agua destilada vai me dar um troço.”

“Essa bebida vai te dar uma cirrose isso sim.” Ela tirou a garrafa de agua mineral das costas. “Tenho uma surpresa pra você.”

“Esta brincando. ”Ivana arregalou os olhos, de boca aberta e com as mão no rosto. “Isso é de verdade?”

“É sim.” Allix respondeu explodindo de alegria e colocou a agua mineral num copo de champanhe para entregar a sua mãe em clima de festa.

Ivana entornou de olhos fechados e até lagrimas escorreram pelo seu rosto de tanta satisfação de beber agua fresca após tanto tempo.

“Você dormiu com a tv ligada de novo.” Allix pegou o controle remoto que Ivana guardava embaixo de um dos travesseiros. “O que estava vendo?”

“Achei umas gravações da época das olimpíadas de 2005 com comerciais e noticiário. Quer ver a patinação no gelo? Tem uma competidora de sailormoon.”

“Adoraria.” Allix se recostou na cama. “O que é sailormoon?”

“O melhor desenho do mundo que eu assistia quando criança.” Ivana a abraçou brincando. “Como você não sabe quem é sailormoon, falhei como mãe.”

As duas riram e assistiram tv até Ivana pegar no sono.

005°

Ivana Zimey Zanoni era a pessoa mais bonita que Allix já tinha visto em sua vida. Era difícil de acreditar que nunca fora uma modelo e apareceu em capas de revistas. Também tinha uma aparência jovial e quem não soubesse diria que ela estava nos seus vinte anos e não acreditaria que já estava nos quarenta.

Allix sinceramente não conseguia ver diferença nas fotos de quando ela era criança e adolescente. “Já acham que somos irmãs, daqui a pouco vão dizer que sou a mais velha.”

Havia um sentimento ambíguo em relação a sua mãe, por um lado tinha muito orgulho, por outro sentia uma frustração, pois sabia que não ia crescer para ser tão bonita quanto sua mãe.

Não que Allix não fosse bonita, mas como mencionado, sua mãe possuía uma aparência digna de supermodelos internacionais.

Ela também era muito inteligente; uma medica cirurgiã que as vezes era chamada para o hospital. No entanto preferia trabalhar na sua lojinha exotérica, sabia tudo sobre adivinhação, búzios, ler mãos, cartas, xícaras de chá, fazer mapas astrais e uma coisa que Allix achava fantástica que sua mãe fazia era a chamada leitura fria.

Através gestos sutis e mínimas expressões faciais Ivana era capaz de dizer muitas coisas sobre as pessoas.

A garota nunca viu alguém capaz de mentir para sua mãe, os cassinos da região a proibiam de jogar pôquer a menos que fosse profissionalmente.

Allix gostava da ideia de sua mãe ser uma jogadora profissional e aparecer na televisão, mas Ivana dizia que os jogadores de pôquer são treinados para enganar a leitura fria.

Ivana alugava uma lojinha no hotel Holiday e vendia artigos exotéricos. Allix aprendeu a ler cartas, mas não tinha muita paciência para leitura fria.

Nas temporadas de férias as turistas faziam filas para ter sua sorte prevista e comprar souvenires.

Mas tudo acabou quando os bombardeios começaram.

Sua loja nunca mais abriu e depois da queda do governo foi ficando cada vez mais doente. Ergozotis, uma rara doença que precisava de um tratamento especial que não existia mais em Mineralia, muito menos Aquamarina.

Diariamente sua mãe tomava um remédio chamado cloridrato de Ephemerol, mas assim como a comida, logo iria acabar e não existia como reabastecer.

Mineralia era uma paíszinho que praticamente ninguém sabia que existia; perdido no meio do caribe, não possuía recursos ou valor estratégico para interessar as grandes nações, mesmo o Império Noza que os atacara com tanta intensidade aparentemente perdera o interesse; as nações unidas mandaram ajuda humanitária por um tempo, mas por falta de apoio financeiro acabaram se retirando; o arquipélago se tornou apenas uma breve nota noticiários e finalmente foi esquecido pelo mundo.

Allix não tinha ideia de que no resto do mundo seu paradisíaco país não fora realmente esquecido, havia se tornado a Zona espiral do Caribe e ficou mundialmente famoso. Infelizmente, por ser uma área a ser evitada a todo custo.

Com um triste suspiro, Allix cobriu sua mãe, desligou a tv e o videocassete, pegou a bandeja e desceu as escadas e sentiu uma lagrima escorrer pelo seu rosto.

Fazia bem mais de um ano que sua mãe não saia de casa e Allix não conseguia culpa-la por ter começado a beber. Podia tirar a bebida da casa e forçar sua mãe a ficar abstemia, mas não tinha coragem, pois era um conforto para Ivana. Agora aquilo era tudo que podia fazer por sua mãe.

Automaticamente Allix pegou o lixo e levou para fora onde ia incinerar o saco em um quintal de pedras de pedras próximo. Era algo tão rotineiro que seu cérebro desligava disso e se concentrava em outras coisas.

Mas ela encontrou algo diferente que não tinha como passar despercebido: A lixeira aramada comunitária na esquina do outro lado do cruzamento estava cheia. Se fosse algo como um ou dois sacos de lixo ela nem notaria, mas estava praticamente transbordando com enormes sacos de plástico preto brilhante.

Allix se aproximou e passou a mão em um saco sentindo uma sensação que não tinha a muito tempo, e confirmou que o plástico era novo. Começou a se perguntar como era possível, já que todos os sacos de plástico em Aquamarina já tinham por volta de no mínimo dois anos e foram reutilizadas inúmeras vezes. Só jogavam sacos fora quando estavam no limite do uso, “no bico do corvo” como diz a expressão.

E estavam secos, foram colocados ali depois da chuva. Ela olhou em volta para confirmar e tudo ainda estava molhado, inclusive a grade de metal da lixeira, mas os sacos estavam secos.

Então ela percebeu um cheiro familiar e engoliu seco de ansiedade enquanto desfazia o nó de um dos sacos para confirmar. Quase tremula abriu o saco lentamente e seus olhos quase pularam fora das orbitas quando confirmou: Vegetais.

Miolos de alface, cascas e talos de frutas e legumes frescos, cabos de espinafre, e um saco plástico com o que parecia ser carne moída. Ela pegou o saco e nervosamente lutou contra o nós com dificuldades de tão nervosa que estava.

A carne estava meio congelada em um bloco e escurecida; ela nunca viu carne de smegmal escura. Allix deu um cheiro profundo e um arrepio percorreu seu corpo quando sentiu aquele odor; aquilo era carne de verdade; só estava um pouco envelhecida e oxidada, levaria mais de um dia para começar a estragar.

Não era possível que ela tivesse tanta sorte, como era possível que tivessem jogado no lixo tanta comida boa, aquilo não tinha preço.

Subtamente teve uma sensação gelada no cotovelo ao encostar em outro saco. Ela engoliu seco e tremula apalpou outro saco de lixo e sentiu coisas retangulares do mesmo tamanho da carne moída e igualmente frias. Seria possível que alguém jogou mais de um bloco de carne úmida congelada fora só por ter passado um pouquinho do prazo de validade e escurecido?

Aquilo podia ser um banquete fabuloso para sua mãe, mal podia esperar a cara de felicidade dela quando aparecesse com uma sopa de legumes.

Perdida em pensamentos Allix não percebeu que ao seu lado, um pouquinho fora do seu campo de visão havia algumas criaturas que foram atraídas pelo cheiro daqueles sacos, ainda mais quando ela os abriu.

Pássaros mutantes se reuniram nos velhos cabos de força e nas arvores próximas ratazanas se esgueiraram rapidamente para a cesta.

Hamlet havia saltado com certa dificuldade para escalar os sacos, e quando finalmente chegou ao topo para poder ver o que tinha dentro do saco aberto notou os smegmals sorrateiros.

Uma ratazana mutante maior do que um cachorro de médio porte se esgueirava num bote, estava prestes pronta para atacar. A criatura possuía espinhos, garras e olhos vermelhos crescendo por todo o corpo.

“Cuidado!” Hamlet gritou com todas as forças e saltou com toda velocidade na vã tentativa de empurrar Allix para fora do perigo, mas o pobre coitado era fraco como um gato, pois ele era um gato.

A ratazana abriu sua boca cheia de dentes e saltou.

Allix não teve tempo de reagir.

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