A vida no morro
A vida no morro
Por: Naomi
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Eu não nasci aqui. Na verdade, eu nem sei onde foi que eu nasci. Meu nome é Ana, eu tenho 16 anos de idade e eu moro no morro da Rocinha.

A mulher que eu aprendi a chamar de mãe, nunca foi minha mãe de verdade e nem nunca me tratou como sua filha. Mas tudo o que eu conhecia era ela. Eu não sei exatamente como tudo começou, mas o pouco que eu sei, eu descobri ano passado, em 2020. Tinha 15 anos quando encontrei algumas cartas e fotos embaixo da cama de minha mãe, ou melhor, de Lúcia. Vi fotos de muitos bebês e no início eu não tinha entendido nada. Vi algumas fotos também de crianças que Lúcia levava para casa desde que eu me entendo por gente e dizia que eram crianças que ela tomava conta. As crianças nunca passavam mais que dois dias lá em casa, e eu cresci acostumada com elas, porque desde muito pequena, Lúcia sempre levava esses bebês para lá.

Eu não tenho muitas lembranças da minha infância, ou melhor, eu acho que nem tive como ter muitas lembranças, porque eu sempre fazia as mesmas coisas. Lúcia sempre me mandava varrer o barraco e lavar as louças. Eu nunca tive nenhum brinquedo e nenhuma boneca. Sentia muita inveja das meninas que tinham. Eu não podia me negar a fazer nada, porque Lúcia me batia muito se eu fizesse alguma coisa malfeita ou se eu deixasse de fazer algo. Não importava se eu tinha apenas 6 anos de idade.

Nunca me achei muito parecida com a minha mãe, e como não tinha um pai e ela me dizia que eu nunca tive um, eu me perguntava porque não me parecia com ela. Por que meu cabelo era daquele jeito? Por que minha pele era mais escura que a de mamãe? Talvez por isso ela não gostasse de mim, porque eu não parecia nada com ela.

- Vem cá, macaca.

Era sempre assim que mamãe me chamava. Ela também não era branca, mas ela muito mais clara do que eu. Eu sempre tive os cabelos bem crespos, sempre fui muito magra e depois que fiquei mais velha me disseram que era uma negra retinta. Eu não tive muitos motivos de alegria até os meus 8 anos de idade. Em breve eu vou explicar para vocês porque eu conheci a alegria com meus 8 anos de idade.

Meu nome é Ana e eu não tenho um sobrenome. Eu também nunca tive um documento, nem nunca vi minha certidão de nascimento. Sempre quis tirar uma identidade, mas mamãe, não, espera, Lúcia, sempre me dizia que eu não era ninguém, e "ninguém" não tinha direito a ter uma identidade. Eu sempre fui feia, porque Lúcia dizia que eu tinha nascido assim, feia. Também nunca pude ir para a escola, porque não tinha nenhum documento e Lúcia sempre disse que escola era lugar de gente decente e inteligente, e eu não era nenhuma dessas duas coisas. Às vezes eu ficava na porta de casa, sentada, vendo as outras crianças descendo o morro, indo para a escola. Algumas vezes eu tentei ir ver aonde elas iam e ver como era a escola. Eu tinha tanta vontade de entrar lá também. Mas quando Lúcia viu que eu tinha descido, ela foi atrás de mim e eu apanhei tanto naquele dia que ela até torceu meus braços. Passei muito tempo sem ter coragem de descer o morro de novo. Eu só tinha 6 anos.

Lúcia me batia muito. Na maioria das vezes ela nem tinha motivo para isso. As vezes ela chegava em casa, dizia que o dia tinha sido muito ruim e que por isso eu ia apanhar.  Ela dizia que ia me bater até ela se sentir feliz. Eu tinha muito medo dela, mas tinha mais medo ainda quando ela chegava em casa e dizia isso, porque eu sabia que eu ia apanhar muito mais do que o normal. Ela me batia com pedaços de madeira, me queimava com cigarros e depois me colocava dentro de um balde de água cheio de gelo. Eu chorava muito no começo, mas depois eu parei mais, porque ninguém nunca ia me socorrer e quanto mais eu gritava, quanto mais eu chorava, mais ela me batia. Com o tempo eu aprendi que chorar menos fazia com que ela perdesse mais a vontade de me bater. Isso ajudou algumas vezes, mas outras vezes não.

Nos dias que Lúcia estava de bom humor ela me deixava ir na padaria comprar pão. Eram os dias mais alegres que eu tinha, mas era muito difícil ela me deixar fazer isso. Eu sempre andava devagar nesses dias que ela permitia que eu saísse de casa. Gostava de sentir o vento que batia lá no alto do morro, gostava de ver as crianças brincando e os animais que viviam pelas ruas. Sempre quis brincar com as crianças, mas Lúcia sempre me dizia que nenhuma delas ia querer brincar comigo, porque eu era suja e feia, e ninguém iria gostar de mim. Então eu nem tentava falar com nenhuma delas, porque eu não queria me sentir mais rejeitada do que eu já era. Foi em uma dessas idas a padaria que eu conheci o Davi. O Davi era filho dos novos donos do mercadinho que também funcionava como padaria. Eu tinha 8 anos quando o conheci. Ele também tinha a mesma idade que eu.

- Oi, você pode me ver 4 pães, por favor?

- Está aqui ó.

- Obrigada.

Essa foi a primeira vez que nos falamos. Eu tinha ficado muito feliz de falar com uma criança que parecia ter a mesma idade que eu.

Davi era branco, bem branco mesmo. Nunca tinha visto uma pessoa tão branca no morro. Eu achei ele bem esquisito no começo. O Davi também não brincava com as outras crianças que moravam ali. Os meninos não gostavam de brincar com ele porque diziam que ele era muito "mariquinha". Era isso que eu ouvia eles chamarem ele. Acho que era porque ele caía muito. Ele parecia ser realmente muito frágil.

Foi essa solidão que nos aproximou. Nunca fiquei tão feliz por ser sozinha, porque foi isso que fez com que a gente se conhecesse melhor.

- Ei, macaca, vem logo pra dentro de casa. - Lúcia disse lá da porta de casa.

- Já vou, mãe.

- Por que ela te chama assim? - Davi perguntou.

- Ah, é só um apelido carinhoso que ela me chama. As vezes ela me chama de macaquinha. Já vou, Davi. Até outro dia.

- Tchau, Ana. Vê se não demora muito tempo para aparecer de novo. Dessa vez você demorou mais de 10 dias.

- Está bom, tchau.

Eu tinha 8 anos nessa época, mas tinha muita vergonha quando a Lúcia me chamava de macaca e ela não se importava de me chamar assim na frente de todo mundo. Aí eu preferia dizer que eu gostava e que era tipo um apelido carinhoso. Eu não sei como eu pensava que poderia enganar as pessoas dizendo isso.

- Cheguei, mãe.

Fui recebida com um tapa no rosto tão forte que eu caí no chão.

- Por que você demorou tanto, sua preta? Já disse que não quero você brincando com ninguém.

- Mas eu gosto de brincar com o Davi.

Lúcia soltou uma gargalhada.

- Ele deve é sentir nojo de você, mas tem pena porque é preta e nunca tem ninguém para brincar. Não vá perturbar o filho do padeiro, porque ele cobra mais barato da gente.

E ela foi embora preparar o café da manhã para ela.

Lúcia dificilmente me dava pão para comer. Ela fazia com que eu comprasse 4 pães, mas nenhum era para mim. Dois pães eram para ela e os outros dois ela dava para o cachorro que ela criava. Era o tito. Eu gostava do tito, porque era por causa dele que eu não me sentia mais sozinha ainda. Mas o tito já era bem velho. As vezes Lúcia parecia estar tão chateada, que eu tinha medo que ela batesse nele, mas ela nunca bateu. O cachorro era a única coisa que parecia que ela gostava. Às vezes eu sentia inveja do tito, porque Lúcia colocava ele no colo dela, fazia carinho e me fazia comprar algumas comidas para ele, porque ela dizia que ele não podia comer só ração, que ele precisava de um agrado.

- Ei, macaca, pega minha bolsinha ali do lado da minha cama e traz aqui pra mim.

- Tá bom, mamãe.

Lúcia me dava um dinheiro que ela sempre guardava naquela bolsinha que ficava entre o colchão e a madeira da cama. Era uma bolsinha pequena, mas que sempre tinha muito dinheiro. Na época eu não sabia o que era muito dinheiro.

- Toma, vai lá no mercadinho e compra um pedaço de carne para o tito. Hoje ele merece comer carne.

- E eu? Posso comer também?

Lúcia ria de mim com muita frequência.

- Claro que não. Carne é muito cara para eu alimentar uma macaca que nem você. Vá logo e volte rápido, porque eu preciso cozinhar para o tito.

Geralmente o tito ia até a porta quando eu estava saindo. Ele me dava uma lambida e aquilo me deixava um pouco menos triste. Apesar de que com o tempo eu já nem ficava tão triste quando ouvia essas coisas da Lúcia.

O tito era um cachorro pequeno e bem peludo. Ele era branco com marrom e as vezes a Lúcia levava ele pra passear quando ele estava com o pelo muito grande e quando ele voltava, ele voltava com os pelos mais baixos e parecia que tinha sido bem penteado. Ele voltava tão cheiroso. Eu tinha vontade de ir para o mesmo lugar que o tito ia, porque eu queria ficar cheirosa daquele jeito também.

Eu só conseguia usar sabonete para tomar banho quando a Lúcia saía. As vezes ela passava muitas horas fora e eu aproveitava pra tomar banho com sabonete. O shampoo ela deixava muito lá em cima, e eu não conseguia pegar, mas o sabonete ficava mais embaixo. Eu gostava muito de tomar banho e eu gostava de sentir o cheiro do sabonete em mim. Mas não durava o dia inteiro. À noite, como eu dormia num tapete, do lado da cama do tito, eu sempre ficava com aquele cheiro de "cachorro molhado'', pelo menos era isso que a Lúcia dizia.

Nos dias que eu sabia que Lúcia ia passar bastante horas fora de casa, eram os dias que eu aprendi que poderia ir brincar com Davi. Ela fazia isso umas 4 vezes na semana mais ou menos, mas não tinham dias certos. Eu sabia que ela ia passar muito tempo fora porque eram nesses dias que ela arrumava a mochila dela, colocava umas roupas e um casaco comprido branco, usava um sapato branco que ela nunca me deixava perto, porque dizia que eu ia deixar ele preto, e ela saia de casa.

- Cuida do tito, hein, macaca e quando eu voltar eu quero ver essa casa limpa. Não ouse descer esse morro, senão eu vou te encher de porrada, mais do que você já leva.

Era isso que ela falava na maioria das vezes.

Eu colocava comida para o tito e deixava a vasilha dele com água.

- Tito, se comporta, tá bom? Eu vou ali rapidinho, mas eu volto. Fica aí com o senhor batata.

O senhor batata era um brinquedo de pelúcia do tito e eu sempre deixava com ele para que ele não se sentisse sozinho.

A porta de casa tinha uma tranca, mas ela não funcionava, então ela sempre ficava aberta. Eu tinha muito medo que Lúcia descobrisse que eu descia um pouco o morro para brincar com Davi, mas eram os únicos dias que eu podia passar mais tempo brincando com ele.

Davi via quando Lúcia descia com a mochila em suas costas e com os sapatos brancos. Então ele sabia que naquele dia eu iria descer para brincarmos.

- Ei, Ana, porque você não parece com a sua mãe?

- Eu não sei.

- Talvez ela nem seja sua mãe de verdade.

É, Davi, Lúcia não era minha mãe de verdade. Lúcia, ás vezes, trabalhava em um hospital público que tinha na cidade. Nesse hospital iam muitas mães que já estavam para ter seus bebês. Eu não era filha de Lúcia, nunca havia sido. Lúcia roubava bebês e os vendia para pessoas muito ricas. As vezes essas pessoas nem moravam no Brasil. A maioria eram pessoas estrangeiras.

Eu fui roubada de minha mãe, a mãe que eu não conhecia, que eu nem sabia que existia. Eu só fui entender melhor o que tinha acontecido comigo alguns anos depois. A minha história não é bonita, apesar de ter momentos bons. Não acho que minha história seja interessante, mas para mim ela é. Um dia eu iria encontrar minha mãe verdadeira e eu faria de tudo para conseguir encontrá-la.

Foi com o Davi que eu aprendi as minhas primeiras brincadeiras. A gente corria, pulava e brincava de pique-esconde. Eram meus dias mais felizes. Eu me sentia bem quando estava com ele. O seu Carlos, que era o pai do Davi, as vezes me dava um bombom. Nossa, a primeira vez que eu comi um bombom, eu comi bem devagar, porque eu não queria que acabasse. Até pensei em embrulhar de novo o resto pra que eu pudesse comer depois, mas fiquei com medo de Lúcia achar.

- Toma, menina, mas não diz pra Lúcia que eu te dou bombom, viu? - Seu Carlos me dizia todas as vezes que ele me dava um bombom.

As vezes a Lúcia me mandava ficar do lado de fora da casa, sentada com o tito na calçada. Porque o seu Carlos visitava ela de vez em quando, e todas as vezes que ele visitava ela, eu tinha que sair com o tito. Essas visitas eram sempre rápidas e eu não entendia por que ele tinha que visitar Lúcia uma vez por semana.

- Não conta para o Davi que eu venho aqui, viu, menina? Se não eu não te dou mais bombom.

Uma vez eu escutei uns barulhos vindo lá de dentro e eu me aproximei pra tentar ouvir melhor, mas rápido os barulhos estranhos pararam. Pude ouvir quando seu Carlos conversava com Lúcia.

- Não sei porque você trata essa menina tão mal, Lúcia. Ela não parece ser ruim como você fala.

- É porque você não conhece ela, Carlos. Não ouse sentir pena dessa macaca, que foi por causa dela que a minha desandou.

- Não chame ela desse jeito, ela nem parece uma macaca. - Ele ria enquanto falava.

- Não defenda essa macaca quando estiver comigo, Carlos. Se não você não mais ter o que você atrás toda semana.

- Não está mais aqui quem falou.

Eu nunca falei para o Davi sobre as visitas que o pai dele fazia para Lúcia todas as semanas. Algo me dizia que a mãe dele, a esposa do seu Carlos, não gostaria de saber que o marido dela visitava mulheres nas casas delas.

Dona Mariete era a mãe de Davi. Ela era uma senhora muito agradável. Ela tinha sempre um cheirinho de sabonete, já tinha os cabelos meio brancos e ela fazia a unha das mulheres lá do morro. As vezes o Davi dizia que ela levava ele para a casa de umas pessoas ricas, que moravam naqueles bairros chiques. As vezes ela fazia a unha de algumas mulheres de lá. Diziam que ela era uma manicure muito boa.

Quando conheci Dona Mariete, ela me perguntou quantos anos eu tinha, e eu disse que tinha quase 9 anos. Mas na verdade eu só sabia que já tinha feito aniversário quando acabava o ano, porque eu não sabia o dia que eu tinha nascido. Lúcia nunca me disse quando eu nasci.

- Bicho não tem data de nascimento, macaca. Mas você deve ter uns 6 anos.

Foi o que ela me disse quando eu perguntei dela quando era meu aniversário e porque nós nunca comemorávamos.

Davi uma vez me perguntou quando era meu aniversário e eu, para não dizer que não sabia, disse que era no último dia do ano. Eu disse que era no último dia do ano, porque mesmo que eu não soubesse quando era meu aniversário, se eu dissesse que era no último dia do ano, eu saberia que já teria passado do dia do meu aniversário de verdade. Ele me perguntou o que Lúcia costumava fazer, se ela fazia algum bolo e se ele poderia ir cantar parabéns na minha casa.

Eu nunca tinha comido um bolo, só via na televisão. Sempre tive vontade de comer, mas fiquei com vergonha de falar para o Davi que eu nunca tinha tido um aniversário, que eu nem sabia quando ou onde tinha nascido. Aí eu disse que nesse ano, provavelmente, Lúcia iria trabalhar e eu deveria ficar sozinha em casa.

- Mas não tem problema não. Eu nem gosto muito de bolo mesmo. A mamãe precisa trabalhar para poder termos uma vida melhor.

- Mas, Ana, porque você não vai para a escola? Quando é aniversário de alguém, eles cantam parabéns e as vezes os professores até fazem um bolo também. Se você fosse para a escola, pelo menos não ficaria sozinha no seu aniversário.

- Ah, é porque... mamãe diz que acha perigoso me deixar ir para a escola sozinha, porque ela não pode me levar até lá por causa do trabalho dela, e ela sai bem cedo as vezes, e volta muito tarde. Ela disse que poderia me colocar quando eu fosse mais velha.

- Mas você já é mais velha. Todos começam a estudar com 6 anos mais ou menos e você já vai fazer 9.

- É... mas eu não posso fazer nada. É a mamãe quem decide.

- Meu pai é um bom amigo de sua mãe. Às vezes eu vejo eles conversando quando ela vem aqui no mercadinho. Eu vou pedir para ele falar com ela e dizer que mamãe pode te acompanhar todos os dias para o colégio, que nem ela faz comigo.

- Não, Davi, melhor não. Tá bom assim mesmo. Quando eu for mais velha eu começo.

- Mas você sabe ler pelo menos?

Eu não sabia ler. Não sabia escrever também, mas eu não ia falar isso para ele.

- Sei um pouco. Mamãe quando tem tempo me ensina um pouco.

- Então eu vou te emprestar um livro.

- Não. Eu não posso levar para casa!

- Por que?

- Ah, é porque mamãe não gosta que eu leve coisas de outras pessoas pra casa. Ela diz que eu não sou muito organizada e que sou um pouco desastrada.

- Então vamos ler aqui mesmo. Eu vou pegar.

Antes que eu pudesse falar alguma coisa, Davi saiu correndo. Quando ele voltou, ele trouxe nas mãos um livro que tinham desenhos bonitos na capa.

- Ta aqui, vamos ler?

- Que livro é esse?

- Ta escrito aqui na capa, mas o nome realmente não é muito fácil. Esse livro foi mamãe que me deu, mas ela me disse que ele é meio de terror e que eu não poderia ficar com medo, se não ela não me daria.

- É sobre o que?

- O que livro é dos irmãos grimm.

- Irmãos o que?

- É o nome deles.

- E o que conta o livro?

- Ah, você pode ler. Vem cá sentar comigo, que podemos ler juntos. São várias histórias no mesmo livro.

Eu fui me sentar ao lado dele, mas eu não entendia nada do que estava escrito ali. Só via um monte de letras e o Davi passava as folhas muito rápido, fora que não tinham desenhos. Eu percebi que Davi me encarava e ele começou a ler em voz alta. Eu não falei nada, apenas fiquei escutando a história, que era muito legal. Ainda bem que ele começou a ler pra mim. Depois desse dia, quase todos os dias o Davi lia para mim. Foi assim que eu comecei a aprender a ler. Todos os dias eu me esforçava muito para conseguir acompanhar o que ele lia com que o que estava escrito. Pelo menos alguma coisa eu já sabia.

- Você deveria deixar a menina ir para a escola, ela já é quase uma mocinha e não sabe nem escrever.

No dia que seu Carlos foi visitar Lúcia eu ouvir ele falando com ela lá dentro. Fiquei com medo. O Davi realmente havia falado algo para ele, mesmo que eu tivesse pedido que ele não dissesse nada.

- Por que eu deveria? Ela é burra mesmo, só vou perder meu dinheiro colocando ela na escola.

- Mas você nem vai precisar pagar nada, Lúcia. O colégio é público.

- Sim, mas eu vou ter que gastar com caderno, lápis, mochila, essas coisas.

- Olhe, eu não tenho a mínima ideia do porquê você trata essa menina desse jeito, mas coloque ela na escola e eu me encarrego de dar essas coisas que ela precisar para estudar.

- Por que você quer tanto que ela vá estudar? Está fazendo questão demais. Ta querendo comer ela, é?

- O que, Lúcia? Ela ainda é uma menina.

- Mas ela tem a mesma coisa que uma mulher tem no meio das pernas. Você deve estar querendo uma virgemzinha.

- Lúcia, coloque a menina para estudar e eu me encarrego do resto. Até semana que vem.

Seu Carlos saiu deixando Lúcia vermelha de raiva para trás. Quando ele saiu, ele me deu um sorriso, passou a mão na minha cabeça e foi embora.

No início da semana seguinte Lúcia me levou para o colégio e disse que eu estudaria lá agora para ver se eu me tornava alguém na vida, para que eu pudesse trabalhar logo e devolver pra ela todo o dinheiro que ela já havia gasto comigo. Eu nem me importei muito com o que ela estava falando, porque nada mais importava, eu sonhei tantos dias em poder ir para o colégio. Vi por tantos dias as outras crianças descendo o morro para ir para a escola, desejei tanto aquilo e finalmente estava se realizando. Fiquei tão feliz quando entrei por aquelas portas, que até me esqueci da surra que levei logo depois que seu Carlos saiu de dentro de casa.

- Você anda falando por aí que quer estudar, é, macaca? Eu te disse que você não deveria falar com ninguém, que ninguém quer saber da sua vida, o que você faz ou o que deixa de fazer. Você é um demoniozinho mesmo porque sabia que se o Carlos viesse falar comigo eu não poderia negar algo, porque é ele coloca comida na nossa mesa. Sua desgraçada. Agora vem aqui que você vai levar uma surra para aprender a deixar de ser fofoqueira, sua cobrinha.

Lúcia me bateu muito naquele dia. Eu nem podia chorar e nem gritar, porque ela dizia que não queria que ninguém ouvisse. Às vezes que ela me batia muito, como naquele dia, ela enfiava um pano na minha boca para que o som dos meus gritos e do meu choro ficassem abafados. Mas na segunda-feira eu já tinha esquecido daquilo. Achei que valeu a pena levar aquela surra e ir para a escola depois.

Como Davi já havia me ensinado algumas coisas eu já sabia ler mais ou menos, ele me ensinou a escrever também e contava sobre as aulas que ele tinha, então eu sabia um pouco o que ia encontrar lá. A diretora da escola, a dona Carmem, me disse que eu teria que fazer uma prova para saber em que nível eu estava, para saber qual a série que ela me colocaria. Eu estava muito nervosa. Achei que ia me sair bem na prova e iria para a sala do Davi, mas eu me enganei.

Fiz a prova e fui toda feliz entregar para dona Carmem, mas ela olhou e disse que eu não tinha ido nada bem e que uma menina do meu tamanho já deveria escrever melhor.

- Que escola que você estudava antes, Ana? Porque você não soube fazer quase nada. Somente escreveu o seu nome e com uma letra muito difícil de ser compreendida.

- Desculpe, dona Carmem. É porque eu nunca estudei.

- Mas sua mãe falou que você estudava em casa com ela.

Eu nem falei nada porque não queria contrariar o que Lúcia havia falado.

Dona Carmem viu o jeito que eu fiquei, e foi como se ela tivesse entendido o que acontecia. É claro que as "aulas" de Davi não seriam suficientes, ele só tinha 8 anos de idade. Ele me ensinou o que ele sabia do melhor jeito que ele conseguia, mas nunca seria o suficiente.

Dona Carmem era uma senhora de meia idade, que tinha uma expressão dura. Seus cabelos eram bem enrolados, mas muito curtos. Ela parecia que pintava o cabelo com uma cor diferente do natural, então seu cabelo parecia manchado. Ela tinha um jeito cansado e uma fala dura, com uma voz grossa para uma mulher. Mas ela tinha bom coração. Ela sabia como era a realidade do morro e que muitos pais não se importavam se seus filhos iam para as aulas ou não. Dona Carmem tinha o sonho de ser professora e ensinar para as crianças mais carentes, como ela fora um dia. E ela realizou esse sonho. Mas ela não sabia a quantidade de coisas ruins que ela iria ver e como seria tão difícil fazer com que as crianças do morro realmente se interessassem pelo estudo e conseguissem pensar em um futuro que fosse diferente da realidade que eles conheciam. Com o tempo ela foi ficando mais amarga e mais negativa. Ela começou a perder as esperanças, mas ainda havia algo dentro dela. Foi esse algo dentro de seu coração que fez com que ela enxergasse além daquela criança sofrida e que talvez ela pudesse ter jeito. Talvez ela só precisasse de alguém que olhasse por ela.

- Tudo bem, Ana. Pelo menos alguma coisa você já sabe fazer. Você irá iniciar na turma das crianças de 6 anos. Você precisa aprender desde o começo, tudo bem?

- Tudo bem, dona Carmem.

Eu fiquei triste quando ouvi isso, porque eu queria muito poder ficar na mesma turma de Davi, mas eu não iria contrariar a diretora e nem reclamar, porque eu não sabia se teria outra oportunidade daquela. Eu tive medo de falar qualquer coisa errada e Lúcia acabar me tirando do colégio antes mesmo que eu pudesse começar.

- Mas eu gostaria de lhe propor algo, você quer escutar?

- Quero sim, dona Carmem.

- Nós vamos ver nos primeiros meses como será o seu desempenho e se você não tiver muita dificuldade nesse primeiro momento, todos os dias depois das aulas você ficará um tempo a mais comigo para que possamos estudar mais assuntos e talvez, no ano que vem você consiga ir para a turma que tem a sua idade. O que acha? mas você terá que se esforçar muito, mais do que os outros alunos.

- Eu aceito! Eu aceito, dona Carmem. Eu prometo que vou me esforçar mais do que todos.

- Não me prometa nada, apenas cumpra, ok?

- Obrigada, dona Carmem.

- Tome aqui a sua farda e amanhã traga um caderno, um lápis, borracha. Todas as coisas que você vai precisar para estudar. Você começa amanhã.

Eu saí quase que pulando de felicidade. Eu já tinha conseguido duas coisas que eu queria naquele dia. Ir para a escola e tinha a possibilidade de conseguir ir para a mesma sala de Davi, mesmo que fosse demorar mais um ano. Mas agora eu tinha algo que nunca tinha tido antes. Oportunidade.

Subi correndo o morro muito feliz. Lúcia somente tinha ido conversar com a diretora e me deixou lá.

- Volte direto para casa depois que sair daqui, macaca. - Lúcia disse no meu ouvido enquanto ela se "despedia'' de mim na frente de dona Carmem.

Quando eu passei pela frente do mercadinho, eu ouvi o seu Carlos me chamar. Aí eu voltei para ver o que ele queria.

- Então? Conseguiu entrar na escola?

- Consegui sim, seu Carlos. Obrigada. Eu sei que o senhor falou com mamãe.

- Venha cá, que eu e a Mariete separamos algumas coisas para você. Deixamos aqui no depósito. Vem cá pegar.

Quando ele abriu a porta do depósito que ficava trancada, eu vi que tinham muitas coisas lá dentro. Muitas mercadorias, comidas e em cima de uma prateleira, que foi onde o seu Carlos apontou, tinha uma mochila, um tênis que já estava usado e que parecia ser maior que meu pé, e uma bolsinha, que dentro tinham alguns lápis e borrachas.

Enquanto eu estava lá vendo as coisas que ele me disse que eu poderia pegar. Eu ouvi o barulho dele trancando a porta do depósito.

- Agora que já lhe demos essas coisas e eu consegui fazer com que você entrasse na escola, você tem que me agradecer de alguma forma, não é?

Eu fiquei com medo nesse momento porque o seu Carlos tinha um sorriso estranho no rosto e ele vinha se aproximando cada vez mais de mim. Ele começou a dizer que eu era muito bonita e que seria uma bela mulher. Aí ele beijou minha boca, segurando forte os meus braços.

- Me solta, seu Carlos. O senhor está me machucando.

Eles passava as mãos pelo meu corpo e beijava meu pescoço, e eu comecei a chorar.

- Pare de chorar, menina! Você vai me agradecer de alguma forma.

Seu Carlos abaixou a calça e disse que eu chupasse aquele negócio que ele tinha no meio das pernas. Eu me ajoelhei e fiz o que ele mandou. Eu chorava muito, mas estava com muito medo. Eu só queria ir embora dali. Não sabia bem o que estava acontecendo, mas eu achei aquilo muito ruim. Não sei se algum dia eu me senti tão mal quanto me senti naquele dia.

Quando ele terminou, ele me disse:

- Muito bem, menina. Eu sabia que você era muito boa. Nunca diga isso para ninguém, esse vai ser o nosso segredinho. Quando você precisar de alguma coisa pode vir me pedir, que se você me agradecer, eu dou um jeito de arrumar para você. Agora me diga obrigado pelas coisas que ganhou e quando ver a Mariete nunca diga o que aconteceu aqui dentro, porque ela vai ficar com raiva de você e nunca mais vai deixar que você brinque com o Davi, viu?

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