A relíquia do oceano
A relíquia do oceano
Por: Flávia Saldanha
Prólogo

Dianna

Estava deitada na pequena cama dessa cela imunda, observando a moeda subir e descer em minha mão.

Assim passavam-se meus dias já havia dois anos, desde que fui pega em uma missão, e pensar que essa missão era para salvar a vida do rei. O cara agora está vivo, enchendo a barriga de cerveja e carne mal passada enquanto eu estou aqui nesse muquifo e ainda faltam 5 anos para que eu seja livre.

Pelo menos estou em uma cela particular, não que seja grande coisa, mas é melhor que estar presa junto de um monte de homens imundos e desesperados por uma mulher. Não ache que estou aqui por gentileza, porque não foi.

Fui jogada na cela junto com esses homens imundos que falei, mas na primeira noite nocauteei um e chutei as bolas do outro até virarem omelete. Na segunda noite quase matei outro enforcado com o que deveria ser um lençol, e na terceira furei os olhos do outro que tentou ser mais esperto e me agarrar enquanto eu dormia.

Diante disto os carcereiros se viram na obrigação de me separar dos homens, não pelo meu bem estar, mas pela vida deles.

Continuo jogando e pegando a moeda, a última lembrança da minha vida lá fora, a moeda que me trouxe até aqui. “Salve a vida do rei” Disse o contratante, e me senti honrada em servir a realeza, fui uma tola eu sei, por isso estou aqui. A única a estar aqui. Porque eu não estava sozinha, não, tinham mais 3 rapazes e uma mulher comigo, mas alguém tinha que ser presa para o resto do bando escapar.

Até pensei que eles teriam a dignidade de virem me resgatar, mas não, não veio ninguém. Não precisa me lembrar, eu fui uma imbecil, é claro que ninguém voltaria. Teria que cumprir meus sete anos de prisão, sairia daqui com 25 anos de idade. Respirei fundo, pois não tinha alternativa se não esperar os próximos 5 anos passarem.

“Sentia a barriga roncar pela milionésima vez. A fome já tinha ido e vindo várias vezes, tantas que nem sei contar. Quando se é uma adolescente raquítica, uma fugitiva do orfanato do reino, sem dinheiro, roupas decentes, comida ou alguém para lhe proteger e lhe dar o que comer, deve-se arranjar um jeito de sobreviver. Por isso eu estava escondida embaixo de uma carroça de feno, observando e estudando o movimento da rua.

Pessoas iam e vinham, sacolas de pães cheirosos passavam bem na frente do meu nariz e me lembravam que eu tinha um estômago para alimentar. Mas o meu alvo era a janela da padaria, eu sabia que a mulher idosa colocaria em breve uma cesta cheia pães e bolos, ela sempre fazia isso, era uma encomenda que todos os dias uma criada vinha buscar. Já observava há 3 dias, e todos esses dias no mesmo horário, ela colocava a cesta na janela e poucos minutos depois a criada aparecia para buscar. Eu teria que ser rápida.

O relógio da torre badalou, seis horas da manhã, anunciava para toda a aldeia que a jornada de trabalho começava. Me preparei, observando, atenta. A janela se abriu, senti até uma emoção, um frio na barriga, uma antecipação de que hoje não teria fome. A cesta foi colocada na janela, e como sempre, a idosa virou as costas. Na esquina a criada já se aproximava. Corri.

Saí debaixo da carroça e me lancei sobre a janela, agarrei a cesta como se fosse a minha vida, e de certa forma era, e corri como nunca imaginei que conseguiria, ainda mais tão faminta como estava.

— Ladra! Peguem a ladra!

Pessoas gritavam atrás de mim, mas eu já estava longe, fora do alcance de todos eles. Todos pesados demais para acompanhar uma menina franzina de onze anos. Me joguei sob as tábuas de uma antiga casa, em cima de mim as pessoas viviam alheias de que havia uma adolescente vivendo sob seus pés. Foi uma benção encontrar essa fenda entre o piso de madeira e o chão de terra. Aqui eu me escondia, ninguém me encontraria nesse buraco.

Olhei para a cesta repleta de pães e bolos, os cheirei antes de dar uma mordida e eu tive que me estender no chão, olhos fechados e braços abertos, saboreando essa delícia. Meu primeiro roubo!

A sacerdotisa do orfanato nos ensinava as ordens dos deuses:

Não matar

Não roubar

Não mentir

Rezar todas as manhãs ao nascer do sol

Amar todas as criaturas sob o manto sagrado celeste, o céu.

Alimentar os pobres

Obedecer os deuses

Engraçado como essas ordens não servem para todos. No orfanato era maltratada, ficava de castigo por qualquer motivo e o castigo era ficar sem jantar, que se unia a outro castigo que era ficar sem café da manhã e que às vezes se unia a mais um: ficar sem almoço. E ainda tinha que rezar e ajudar as sacerdotisas e sacerdotes do reino. Pra passar fome, prefiro passar fome na rua onde ninguém manda em mim. Por isso fugi. Agora só havia uma ordem que não descumpri: não matar. O resto, já descumpri todas.

Aos quinze anos descumpri a última ordem. Matei um homem, mas foi para me defender. Aprendi a me defender com os moleques de rua, eu não era muito diferente deles, a única diferença era o formato do meu corpo: feminino até demais, para meu azar.

Os seios grandes, quadril largo e cintura fina, fazia os homens me olharem de maneira estranha. Eu cresci na rua, por isso não era nenhuma idiota. Sabia muito bem o que uma mulher e um homem fazem, sei que alguns homens não se importam se elas querem ou não, se vão gostar ou gritar de pavor, na verdade alguns parecem gostar de causar sofrimento a algumas mulheres. Por isso, quando notei o tipo de horror que poderia passar, principalmente por viver nas ruas, tratei de aprender a me defender e foi assim que conheci Arlo.

Ele também cresceu na rua, foi abandonado após um acidente onde seus pais morreram e nenhum familiar quis ficar com ele. O garoto tinha apenas oito anos de idade quando isto ocorreu.

Vi Arlo bater em três garotos, todos maiores do que ele, e eu me aproximei quando terminou. Pedi que me ensinasse e ele disse que não tinha o que ensinar. Mas eu não desisti, fiquei atrás dele, roubei pão e lhe dei, me aproximei, insisti e por fim o garoto cedeu. Ficamos amigos, eu tinha doze anos nessa época e ele quatorze. Passamos a ser uma dupla, não estava mais sozinha na rua e nem ele.

Então, já tinha completado quinze anos, Arlo desapareceu. Já estava escuro e ele não voltou para nosso esconderijo em baixo da casa, fui atrás dele. Antes que eu o encontrasse, um homem me encontrou. Seu bafo alcoolizado me dava nojo, o cheiro de seu corpo me deu vontade de vomitar e ele me lambeu... arg... que nojo!

Fui prensada na parede de uma casa abandonada, ele se esfregou em mim e eu comecei a gritar.

— Cala a boca, pirralha! – Ele tinha dito, mas não parei. Eu não facilitaria para ele. Esperneei, chutei, gritei, bati... até que ele me deu um soco, me deixando tonta, e apertou uma lâmina na minha garganta.

O covarde ria e se esfregava em mim. Mas ele estava tão focado em se esfregar que se descuidou com a lâmina, e Arlo já tinha me ensinado algumas coisinhas com elas. Desarmei o homem e sem pensar duas vezes passei a faca em sua garganta. Ele nem conseguiu gritar, o sangue subiu por sua boca e ela se abriu em um “O”, os olhos ficaram arregalados, não acreditando que uma pirralha tinha lhe ferido de forma tão grave. Ele caiu a meus pés, e eu vi a grande merda que tinha feito e corri. Com todos esses anos vivendo na rua, eu conhecia todos os becos e saídas, então sumi da vista de qualquer um que pudesse ver o que eu havia feito. Eu matei um homem.”

Acordei suando, esses pensamentos e lembranças ocupam minha mente há anos, principalmente depois que vim parar nessa pocilga. As minhas primeiras vezes.

Mentir, não há como lembrar quando foi a primeira vez, pois tive que mentir desde muito pequena naquele orfanato. Mas o primeiro roubo, o primeiro assassinato, o primeiro amigo e primeiro amor...  a primeira decepção.

Arlo foi meu amigo desde quando nos tornamos uma dupla. Quando eu estava com dezessete anos e ele com dezenove, nossa amizade ganhou um novo significado. Não éramos mais uma dupla, mas sim um casal, e isso me lembra minha primeira vez. Não muito depois, surgiu o nosso primeiro trabalho: resgatar as joias de uma família rica, cuja guarda não havia sido capaz de recuperar. Éramos bons, trabalhávamos bem em dupla e conseguimos “resgatar” as joias, mas na verdade, nós a roubamos para eles. Pois é, eles mentiram para nós, mas nãos nos importamos com isso, gostamos de ganhar o dinheiro, era a primeira vez que ganhávamos dinheiro por qualquer coisa. Depois deste, vieram vários serviços. Nunca nos importamos com o tipo de trabalho, só queríamos o dinheiro. Nos tornamos mercenários.

Então tivemos nossa primeira casa. Uma casa de verdade, não um buraco pra se esconder do frio. Um ano depois, veio o trabalho que nos tiraria da miséria definitivamente, mas que me trouxe a ruína.

— É muito dinheiro, Dy! – Disse Arlo andando de um lado a outro.

— Mas sempre trabalhamos sozinhos. O contratante quer que trabalhemos em conjunto com outros três caras. – Eu estava sentada em uma poltrona aconchegante, os cabelos úmidos do banho recente.

— Dois caras e uma garota.

— Não faz diferença, Arlo, são três estranhos.

— Mas é a vida do rei que está em jogo. Ele será morto durante a viagem, ninguém sabe quem são essas pessoas e quantos são. O contratante só quer garantir que o rei seja salvo, por isso contratou reforços.

— Trabalhar pra família real... – Divaguei. Ele se ajoelhou à minha frente, apoiando-se em meus joelhos.

— O dinheiro vai ser tão bom, que poderemos sair daqui. Nunca mais precisaremos roubar ou fazer serviços questionáveis pra ganhar a vida.

— Tudo bem. – Ele conseguiu me convencer.”

Mas quando tudo foi para o inferno, ele não veio me buscar. Não veio me resgatar. Então veio a minha primeira decepção, meu primeiro coração partido, a primeira desilusão. Quatro anos dentro dessa cela, e minha única companhia é a moeda que se tornou um lembrete de como tudo pode ruir, como todo sonho pode ter seu fim e de como não posso confiar em ninguém.

E ainda faltam três anos pra sair daqui.

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