Meridian Water
UM QUARTO PARA DOIS
Hoje o príncipe Sweeney estaria no lado leste de Umbra, onde veria como está a região e se os guardiões estão cumprindo com o seu dever. O trajeto seria feito pela carruagem real, onde pararemos em pelo menos três regiões para descansar, pois seriam três dias de viagem.
Eu já estava servindo como sua protetora há um mês, e estar em constante movimento como sua sombra não estava sendo difícil, porque hoje seria a primeira vez em que ele de fato dormiria fora da casa real. Eu havia estudado todos os pontos onde pararíamos, avaliando cada ponto de fuga necessário para o caso de um ataque de desordeiros.
Demônios rebeldes que não respeitavam a realeza.
Realizei as minhas necessidades básicas e coloquei uma calça de couro juntamente com um cropped, adicionando minha adaga à cintura, e mais outras duas adagas pequenas dentro da bota também de couro que ia até o meu joelho. Prendi meu cabelo em um rabo de cavalo e segui para fora, sabendo que os serviçais se encarregaram de levar a minha mala para a carruagem.
Quando cheguei ao lado de fora, me coloquei ao lado dos soldados da cavalaria real como a primeira de uma fila lateral, à espera do príncipe. Foram dez minutos de espera até que ele estivesse na escadaria ao lado de seu pai, que parecia estar falando algo.
“Sabe o que precisa ser feito, não sabe?” Minha audição aguçada me permitiu ouvir.
Disfarcei.
“Sim, eu sei.” Ele respondeu sem sequer mexer a boca, apenas grunhiu.
“Não me decepcione, filho.” O rei disse.
Então pararam de conversar, meus instintos me disseram que havia mais. Eu queria saber do que estavam falando, simples frases me deixaram intrigada. Mas logo esqueci o que estava pensando quando reparei automaticamente no príncipe. Ele vestia um terno, sua blusa social de dentro com os botões iniciais abertos davam ao início de uma runa que eu quis saber o significado. Desviei o olhar afastando o pensamento depravado em minha mente, não foi só a runa que eu quis ver quando o imaginei sem camisa. Ele era o príncipe, eu era uma renegada, embora sua protetora isso nos colocasse em patamares distintos, logo não poderia acontecer. Ele só poderia se relacionar com um mago de sangue puro.
Ele passou adiante de nós, e com um rápido aceno para seu pai, entrou na carruagem.
Entrei após ele, sentado à sua frente. Como sua protetora, eu tinha que ser sua sombra e estar onde ele estivesse. Algo me dizia bem lá, no fundo, que isso poderia ser um problema. A carruagem seguiu sendo seguida por uma dianteira e outra traseira.
Enquanto percorremos o trajeto para o destino, eu observava cada rosto e movimento ao lado de fora, sempre em alerta.
O primeiro horário foi de repleto silêncio, não tínhamos o que conversar, não havia palavras a ser dita. O dia foi se esvaindo, o tempo passando. Escolhemos trajetos menos movimentados para evitar alvoroço. E ao passo em que a carruagem andava, eu sentia seu olhar sobre mim. Ele parecia continuar me observando, seus olhos negros pareciam hesitantes, mas eu sabia que ele estava ali. Me analisando. Sua expressão carregava palavras não ditas e isso me incomodava. Me intrigava. Ele era o príncipe. Poderia perguntar o que quisesse e eu seria obrigada a responder. Mas na minha vida não havia nada de interessante que alimentasse a curiosidade algumas vezes estampadas em seu olhar.
Após horas de viagem, já com a lua caindo sob o céu estrelado, nos aproximamos de uma das pousadas em que ficaríamos. Era uma cidade pequena, a carruagem parou em frente e eu desci primeiro para averiguar o território. Havia pouquíssima movimentação e com os soldados se posicionando em pontos estratégicos, os olhares curiosos reconheceram a presença da realeza e sussurros se espalharam pelo local. Mantive-me alerta, ignorando os burburinhos ofensivos a mim e avaliando rapidamente que o ambiente estava seguro para o príncipe. Assim que terminei, abri a porta da carruagem para que ele pudesse descer.
O príncipe desceu e seguimos comigo sempre ao seu encalço para dentro da pousada.
“Oh, que honra tê-lo em nossa pousada, majestade!” O tom de ironia e luxúria era evidente na voz da mulher que nos recepcionou. A encarei com um sorriso de canto.
“Queremos todos os quartos.” Fui eu quem me direcionei a ela, com uma voz firme e autoritária.
“Vossa majestade gostaria de ficar com a suíte?” Ela perguntou me ignorando e se referindo ao príncipe.
“Se me desrespeitar novamente, não vou poupar o príncipe de ver um espetáculo sanguinário feito exclusivamente por mim esta noite.” O tom em minha voz foi mais ameaçadora do que sombria.
Eu a vi estremecer e seu olhar voltou-se para mim com cautela.
“Todos os quartos?” Ela perguntou com certo deboche na voz.
“Você não é surda.” Respondi com um sorriso irônico nos lábios e apoiei o cotovelo no balcão da recepção.
“Receio que não possa atender ao seu pedido, alguns dos nossos quartos estão ocupados.” Ela disse desviando o olhar do meu e o baixando.
“Há mais pousadas na cidade.” Suspirei. “Este é o príncipe. Quero todos os quartos, mas vou te dar algumas horas para isso. Me dê a chave da suíte, quando eu descer novamente, quero ver todos da cavalaria devidamente alocada.”
Ela apenas assentiu, me dando a chave da suíte. Encarei o príncipe que nada disse, agindo apenas como mero telespectador. Seguimos para o último andar da pousada, onde ficava a suíte. Abri a porta e entrei primeiro, para verificar o quarto enquanto outro soldado ficava ao lado de fora juntamente com o príncipe. Acenei para que o príncipe pudesse entrar já que estava seguro.
Ele entrou e fechou a porta atrás de si, deixando o soldado ao lado de fora e apenas nós dois dentro do quarto. Aquele pensamento me socou o estômago, e me limitei a pensar que havia mais gente, mesmo que não ali dentro. Por isso não precisava temer. E o que eu estava temendo? Suspirei ignorando o devaneio.
Abri a segunda porta encarando o banheiro.
“Este é o banheiro, Majestade.” Falei o encarando. “O Senhor irá se aprontar agora para comer alguma coisa ou prefere descansar?” Perguntei.
“Gostaria de descansar.” Ele respondeu. Sua voz baixa e rouca me causou arrepios. Eu não estava acostumada a escutá-lo e seu tom não era tão imponente ali.
“Posso pedir alguma coisa para comer aqui?” Perguntei.
“Sim, pode.” Ele disse retirando o terno e desabotoando a camisa.
“Ok. Dormirei aqui esta noite. Tem consciência disso, certo?” Perguntei desviando o olhar de seu peito quase nu.
“Sim, tenho.” Ele respondeu de forma metódica, quase automática. Me fazendo arquear uma das sobrancelhas em resposta para ninguém em específico.
Fui até a porta e abri, pedindo ao soldado que fosse em busca de algo para comermos, ele prontamente obedeceu. Uma batida na porta dez minutos depois revelou nossas malas e um carrinho com a janta. Autorizei a entrada dos dois, enquanto o príncipe se encaminhava ao banho agora que suas coisas haviam chegado.
Meridian Water Repreendi o meu pensamento ao imaginá-lo tomando banho, meu corpo formigou em resposta e eu praguejei baixinho. O que estava acontecendo comigo? Em dois anos, embora tivesse dormido com muitos homens, nunca tive tempo para brincar em missão, principalmente quando essa missão era proteger o príncipe e o alvo dos meus pensamentos era o PRÍNCIPE.Ignorei a excitação que me invadiu quando uma imagem do seu peitoral nu se acentuou em meu pensamento e decidi ver o que tinha para comermos. Carne de porco banhada em sangue e um copo do que provavelmente eram lágrimas. Sim. Magos sombrios costumam se alimentar do sofrimento humano, lágrimas de amargor são um dos copos mais servidos em festas e locais públicos. Nada de novo sob a sombra. Quando ele saiu do quarto vestindo apenas uma calça de pano macio e sem camisa, eu quase quis sair dali. O ambiente pareceu aquiescer de forma bastante rápida e embora já convivêssemos fadados ao inferno, o calor daquele corpo sob minha visão e
PRÍNCIPE SWEENEYEla me disse para voltar a dormir. Como se fosse tão simples assim.Fechei os olhos, fingindo indiferença, com a respiração firme e calma, mas estava longe de estar tranquilo. Minha mente estava inquieta, meus pensamentos emaranhados. A voz de Meridian permanecia no ar, suave e perturbada, e o leve odor de seu suor misturado com sua fragrância natural - selvagem e pura - invadiu meus sentidos. Era enlouquecedor. Tive de lutar contra o instinto de me aproximar, de respirá-la.Em vez disso, forcei-me a ficar imóvel, com os músculos tensos sob o cobertor. Eu podia senti-la ao meu lado, a apenas uma respiração de distância, sua presença como uma chama queimando perigosamente perto da minha pele. A escuridão do quarto não me oferecia nenhum refúgio. Suas palavras ecoavam em minha mente.Guerras, mortes, caos, criaturas… ela sonhava. Com o caos, com a perda, com seu passado esquecido. Ela falava sobre isso de forma tão casual, mas eu podia ouvir o peso de sua voz, a fragili
Meridian Water Quando despertei, percebi que o príncipe não estava ali, soltei um bocejo e espreguicei os meus braços e então percebi que o príncipe estava no banho.Ouvi o barulho de água caindo. Ajeitei o meu corpo na cadeira de frente para a janela, onde permaneci pelo restante da noite até o raiar do sol. Não consegui ficar na cama, e nem consegui voltar a dormir. Me levantei e abri a porta e pedi ao soldado que nos preparasse algo para comer. Não era surpresa que ele já estivesse ali, a runa desenhada em seu pescoço lhe garantia servidão vinte e quatro horas, logo era como se ele fosse um robô que ficaria de prontidão onde o colocassem pronto para fazer o que pedissem e para dar a sua vida pelo príncipe. Claro que não durava mais de um dia, logo na outra noite trocaríamos o soldado para que este pudesse desfazer a runa e ir dormir. Demônios não são incansáveis. O café da manhã chegou, olhos de boi e lágrimas de automutilação. Ele saiu do banheiro já pronto para seguirmos via
Meridian Water Desenhei com a ponta da adaga uma série de linhas entrelaçadas e curvas, formando um padrão único, enquanto sentia a energia da magia negra sendo carregada ao nosso redor. Enquanto as linhas de sangue escureciam como se estivessem sendo desenhas com tinta, brilhavam com uma luminosidade atraente e uma aura sombria tomava nossa mão. No centro da runa, desenhei o ponto focal, que seria o nosso destino. E logo esse ponto foi consumido por uma chama que acendeu sobre minha mão, simbolizando a energia ardente do poder que impulsionaria o nosso teletransporte. As sombras dançavam em torno da runa quando a chama se apagou, a medida em que cresciam e nos tomavam, nos envolvendo em um véu escuro e misterioso, liberando energia e nos consumindo a medida em que vamos nos desintegrando em um lapso de segundos e então, quando abrimos os olhos, estávamos um beco escuro. Apoiei uma das mãos na parede ao sentir meu corpo ainda flutuando em meio á uma vertigem. “Inferno.” Praguejei.
PRINCIPE SWEENEYFoi muito simples achar algo que pudéssemos comer. Embora me alimentar de almas fosse algo mais saciável para mim que era um mago sombrio, carne animal também ajudava a me manter saciado por um tempo, e isso tinha muito na geladeira dos humanos. Também achamos roupas comuns em um guarda-roupa que parecia ser de um casal, o que foi muito bom para nós. Embora em nosso reino o amor seja uma perda de tempo já que somos regados à luxúria. Não amamos, somos consumidos por desejo carnal, matamos o nosso desejo e partimos para o próximo. Esse é o preço de conjurar magia negra, você se torna uma espécie de ser demoníaco, sem sentimentos fúteis. “Você prefere tomar banho antes ou depois de mim?” Ela perguntou me encarando. Hesitei porque a resposta que sairia não estava em sua pergunta, mordisquei o lábio inferior contendo minha imaginação. “O que for melhor para você.” Respondi e desviei o olhar porque sabia que a resposta que eu queria não viria tão fácil assim. “Foi uma
Meridian Water Despertei antes do sol raiar. Havia apenas cochilado, pois meu senso de alerta não me deixaria dormir em terras desconhecidas. Segui para o banheiro e tomei rapidamente um banho, voltando a colocar minhas roupas de couro. Quando sai do banho, ele já estava sentado na cama, seus olhos se voltaram para mim. Passou as mãos nos cabelos e suspirou. “Tome um banho, seguiremos.” Respondi guardando minhas adagas. “Ok, vossa alteza.” Ele ironizou passando por mim e me fazendo revirar os olhos. Para quem era fechado e raramente falava, ele estava se mostrando até demais para mim. Após o término do seu banho, saímos pelo mesmo lugar que entramos, e seguimos nas sombras até a beirada da cidade. Desenhei novamente a runa do teletransporte colocando como ponto focal um local ao leste do reino de Umbra que não quebrasse a barreira de proteção e nos denunciasse. Quando pousamos algo estranho me atingiu, um sentimento de nostalgia antes desconhecido por mim. Senti sua mão segurar me
Meridian Water Eu estava correndo pela floresta, sentia a terra sob meus pés e me sentia livre. As árvores me aplaudiam, seus galhos balançando com o rastro da ventania que eu deixava para trás. Até que meus sentidos entraram em alerta, parei, observando ao meu redor, buscando pela ameaça que meus instintos captaram. Puxei o ar com força tentando captar o cheiro, era o mesmo. Procurei, girando sob os pés, até que o encontrei. Ele se aproximou lentamente, mas de trás dele saíram mais, me cercando, todos rosnando para mim. Até que um choro esganiçado escapou de seus lábios. Ele me encarou, seus olhos azuis cristalinos penetrando os meus, ele parou de frente para mim a apenas cinco passos de distância. Mas nossa conexão foi quebrada quando outro lobo saltou sobre mim, antes que eu pudesse me colocar em posição de ataque, senti mãos rodeando meu corpo, e uma sombra negra me envolveu. Eu reconhecia aquelas mãos, eram as mãos do príncipe. “Meridian!” Ele sussurrou e eu me levantei em sal
RENAN FOLDER Ela estava lá, diante de mim, e eu me senti a pessoa mais impotente do mundo... não pude salvá-la. Ao mesmo tempo, em que era ela, não era, parecia mais um demônio do que uma loba. Ela renegou as nossas origens. Mas algo não saia da minha mente... embora eu soubesse que provavelmente não se lembrava de nós, ela ainda usava o cordão da lua, símbolo da nossa alcateia. Como? Por quê? Será que ela lembrava e escolheu o outro lado? Durante todos esses anos, eu a esperei. Esperei que seu coração a dissesse que a nossa casa estava aqui, que a mostrasse sua identidade. E jurei para mim mesmo que na primeira oportunidade que a visse, eu a salvaria e traria de volta para casa, então falhei. Ela estava lá, bem à minha frente, mas era a ele que estava protegendo. Ao seu inimigo. Aquele mago repugnante, enquanto ela estava na frente dele, o protegendo, ele me encarou, com seus olhos escuros, como um demônio, esperando que eu atacasse, ele sabia que Meridian o protegeria. Desgraçado