Lembranças

Seus olhos abriram lentamente tentando reconhecer o lugar onde estava, o teto em branco, luminárias compridas e duas grandes janelas a frente de sua cama, olhou para o lado e viu um objeto de ferro ao qual seu braço estava ligado pelo soro que levava as gotas diretamente a sua corrente sanguínea, aos poucos as imagens do dia de seu aniversário começavam a invadir sua mente.

— Aika — san! - Seu irmão mais novo apareceu gritando logo cedo no quarto, já empurrando a porta e se jogando na cama aonde a garota de cabelo cor de fogo dormia. — Acorda! Já é seu aniversário! Quero bolo, anda logo! — Pulava o pequeno de 7 anos em cima da irmã até que a mesma esboçasse alguma reação consciente.

— Já chega pirralho... Eu já acordei... — Resmungou sonolenta procurando os braços do menor na intenção de colocar o mesmo dentro de um abraço de urso.

— Quando vai ser a hora de cortar o bolo?

— Mas como você é esfomeado... o dia nem amanheceu e já está pensando nisso? — Continuou abraçada a ele enquanto murmurava de olhos fechados.

— Claro! Não é todo dia que se tem uma festa aonde podemos ver uma pessoa virar adulta. Agora você já é grande! Quero ver você crescer igual a um titã!

— Idiota, eu não vou crescer igual a um titã... que coisa horrorosa... — Enquanto conversavam, a mãe de Aika que também possuía o cabelo da mesma tonalidade, porém curto, apareceu na porta.

— Bom dia querida, Feliz aniversário! — Beijou - lhe a testa e sentou ao lado da cama. — Preparada pra hoje?

— Quase... — Alongou os braços e se sentou logo depois, largando o irmão logo atrás. — Onde está o papai?

— Ele acabou de sair, disse que deixaria pra te dar os parabéns depois. Por hora ele foi para o salão ver se estava tudo em ordem. — Ele é sempre muito preocupado com tudo...

— Mas é por uma boa causa, não é? E em nome meu e dele resolvemos dar isso a você. — Entregou a ela um embrulho razoavelmente pequeno. Ao abrir a primeira embalagem, viu que se tratava de uma caixa de joia e dentro dela possuía um colar delicado com um pingente de pedra de rubi legítima. Era algo simples, mas bem caro.

— EU... NÃO ACREDITO! — Vibrou feliz e quase pulou na mãe de tanta alegria. — É o colar que falei outro dia na vitrine... Nossa, não sei nem como agradecer.

— Só de te ver sorrir já é um grande presente para nós... — Saiu do abraço e arrumou as mexas bagunçadas. - Agora vem, precisamos nos apressar, temos muito o que fazer.

— Vou usar assim que sair do banho!!! — Levantou o pacote no alto e o encarou mais uma vez.

Depois que a mulher saiu, Aika expulsou seu irmão de forma divertida do quarto e foi tomar banho para despertar. Sabia que ainda era cedo, mas estava empolgada demais para o dia. Finalmente sua festa de 18 anos iria acontecer, estava preparando esse evento a quase 6 meses, e acreditava que nada poderia destruir essa felicidade.

Depois que tomou banho, desceu para tomar café e depois que ajudou a mãe a arrumar todas as roupas para o dia - Ela planejara usar ao total de três vestidos na noite - conversaram sobre o horário com a maquiadora e cabelereira e aguardaram a chegada da produção em casa. A manhã passou correndo, nem mesmo tiveram tanto tempo como acharam que teriam e tudo foi terminado por volta das 11h da manhã. Como planejaram estar no local as 13h sua mãe investiu o restante do tempo para arrumar o irmão enquanto Aika falava com amigos próximos por mensagens para ver quem iria de fato marcar presença.

Por volta das 13h50 as duas chegaram ao lugar que ainda se encontrava vazio mas tudo bem organizado, bem do jeito que planejou. Os arranjos de flores em tons de vermelho e branco que cobriam parte da entrada e levavam até o palco onde faria sua primeira apresentação de teatro, com várias mesas e assentos sofisticados e com pequenos enfeites ao centro, além de uma passagem de tapete vermelho que era guiado para várias direções ao longo do salão. Enquanto olhava tudo admirada, avistou seu pai falando com um homem que mexia nas caixas de som que eram bem grandes.

— Papai! — Correu para abraçá-lo e recebeu o mesmo carinho de volta. O homem era alto e tinha cabelo preto, entretanto seu maior atrativo estava na barba bem definida e no par de olhos azuis que possuía e chamava atenção onde quer que passasse. Por sorte, ela havia herdado as cores de olhos do pai o que fazia dela, uma pessoa de beleza bem chamativa.

— Olha só quem chegou, a celebridade do dia!  Beijou - lhe o rosto e a apoiou de lado. — Como está indo seu dia até agora?

— Perfeito, só faltou seus parabéns de manhã... — Fingiu tristeza.

— Ah sinto muito por isso... Mas vou compensar com muitos beijos e abraços — Grudou na mesma de novo e a rodou no ar.

— Pai para! — Riu um pouco alto fazendo sua voz ecoar. — Que vergonha hahaha não faça isso na frente dos meus convidados hein?

— Então quer dizer que a senhorita tem vergonha do próprio pai hein?

— Nada disso, não seja dramático. — Assim que voltou ao chão, ajeitou o vestido casual que usava e o cabelo que estava em um penteado onde deixava os fios parcialmente presos em cima, mas mantinha a franja longa quase que tapando um dos olhos.

— Aika! Tem visita pra você! — Sua mãe gritou ao longe mostrando alguém próximo a ela.

— Ana! — Saiu correndo para abraçar a melhor amiga. — Achei que não ia conseguir chegar hoje! Porque não disse que tinha chego de viagem?

— Quis fazer uma surpresa. — Sorriu gentilmente.

— E conseguiu! Estou tão feliz que veio! Agora me conta, como foi a viagem? — Se afastou com a amiga para um lugar mais privado.

A tarde assim como a manhã passou agitada e quando menos esperou, o salão já estava cheio com música alta e os garçons servindo as bebidas e comidas aos convidados. Primeiramente ela apenas conversava com todos e ia passando de mesa em mesa para tentar dar o máximo de atenção possível e isso tomou quase todo o tempo dela, que só parou mesmo quando foi chamada por Ana, para entrar no camarim e se preparar para a apresentação da sua peça que ocorreria as 9h da noite, ou seja, em pouco mais de 30 minutos.

— Será que isso vai ficar bom? — Comentava enquanto vestia a roupa de princesa.

— Claro, você se saiu bem nos ensaios. Confia... — Confortou a amiga.

— Espero que meus pais gostem — Ao lembrar que a família toda estaria ali, ficou envergonhada e com um certo frio na barriga. Procurava sempre chamar atenção daqueles que amava então acabava passando mais tempo focando em agradar aos outros do que a si mesma.

Ao terminarem de se arrumar, subiram ao palco com o restante do elenco que também fazia parte do seu ciclo de amigos e juntos apresentaram uma mini peça típica de conto de fadas, onde ela era a princesa trancada, mas que por fim era resgatada por um príncipe não tão encantado assim.

Ao fim da peça que durou uns 30 minutos, todos se reuniram em frente a uma grande mesa para cantarem os parabéns e fazerem as devidas comemorações. Depois disso, a música voltou a tocar e ela trocando o vestido a última vez, usou algo mais liberal e leve para poder dançar e experimentar das suas primeiras bebidas alcóolicas.

Toda essa empolgação rolou até o amanhecer, por volta das 4h da manhã que foi quando começaram a dispersar e finalmente a festa acabar. Cansados e levemente embriagados, com exceção da mãe e do irmão, foram embora por último depois de terem acertado as últimas contas e com o administrador do local.

— E então!? Como é a sensação de estar bêbada? — Perguntou o pai meio alterado enquanto dirigia no meio da estrada escura.

— Eu não sei, é estranho, mas é divertido! — Riu apreciando a sensação.

— Que coisa feia vocês dois conversando desse jeito... — A mãe olhou para o garoto que dormia no banco de trás e para a ruiva que cantarolava baixo enquanto olhava para fora feliz.

— Não seja tão disciplinada meu bem, hoje é um dia especial, ela pode... — Bocejou enquanto forçava a vista.

— Fracamente...

A conversa teve o ritmo diminuído por alguns segundos até que do nada uma sensação estranha consumiu a garota que tirou o olhar vago da janela e olhou na direção do volante. Como se tivesse sido tomada pela intuição, olhou para os dois à frente junto com a visão da estrada a frente, e em um piscar de olhos, ela pode ver uma luz imensa seguir na direção deles. Ainda gritou pelo pai em um para alertá-lo, mas não ouve tempo suficiente para que desviasse e então o carro colidiu junto com um outro veículo que era bem maior que eles, fazendo o outro bater de frente e depois capotar alguns metros no leve barranco abaixo.

Essas lembranças iam fazendo sua mente cativa de uma dor tão insuportável que o ar lhe faltou em seus pulmões.

Ela com um movimento rápido tentou se levantar quando foi impedida por uma dor aguda em suas costas.

— " O acidente, eu... Aquele homem me salvou..."

Pensou rapidamente em sua última memória, mas não se lembrava do rosto do mesmo apenas do cabelo acobreado do mesmo.

Com a mão que não estava ligada ao soro levou as mãos até uma mecha de seus próprios cabelos.

 " Dizem que anjos da guarda tem cabelos loiros e encaracolados, mas o meu tinha cabelos acobreados... quem era ele?" — A pergunta feita para si mesma não teria ainda uma resposta, mas o rosto daquele homem ainda estava em sua mente.

Ela se acomodou um pouco mais ali na cama, sua perna direita estava engessada, a esquerda com vários curativos, sentia todo o seu corpo do pescoço até a cintura totalmente enfaixados e doloridos.

Nesse momento entrou uma senhora no quarto, aparentava ter por volta dos 53 anos.

— Senhorita Okamura, já está acordada, que bom vou chamar o Doutor para vê-la. — A mulher apertou uma campainha ao lado da cama da jovem e em alguns minutos o médico estava entrando no quarto.

— Como se sente senhorita? — Perguntou o homem começando a examinar a jovem.

— Ann, meus pais? Onde eles estão? — Ignorou completamente a pergunta feita pelo médico e indagou acerca de seus pais olhando diretamente para o homem.

Ele parou de examinar e olhou diretamente para a mesma e começou a lhe dar a trágica notícia, ela desconfiava, mas tinha esperanças de ter sido apenas um truque de sua mente, no momento que recebeu a notícia, estava acompanhada pela enfermeira e pelo médico, ela rolou os olhos para todos os lados nenhum conhecido para lhe apoiar ninguém apenas a senhora segurando levemente a sua mão enquanto ela chorava, soluços e gritos faziam parte da sonoplastia daquele quarto no momento da notícia.

Seus olhos encharcados pelas lágrimas dolorosas, as mais dolorosas de toda sua vida, aquilo era pior do que um braço quebrado durante a aula de equitação, ou mais profundo do que seu primeiro mergulho sem a boia.

Seu coração cheio de alegria sempre de um tom vermelho vivo estava agora completamente manchado com cores cinzas de dor, e a coloração ia ficando cada vez mais forte de acordo com o luto que ia se firmando em sua alma.

A dor o desespero, a menina mimada e rodeada de amor em seu seio familiar estava sozinha dentro de um quarto de hospital recebendo a pior das notícias.

Depois de duas horas que tinha recebido a notícia estava ainda controlando as lágrimas.

Sua vontade era de sair correndo do local, mas mal podia se mexer quando viu a porta se abrir e um homem passar por ela.

Ela não o reconheceu logo de cara, mas os cabelos acobreados denunciavam sua identidade.

— Senhorita Okamura... Me chamo Victor Valem — Falou em tom calmo se aproximando da garota.

— Você? É o homem que me achou na beira da estrada... Devo minha vida a você — Aika murmurou ainda com os olhos vermelhos, mas demonstrando uma certa felicidade em ver um rosto conhecido, pelo menos um que ela talvez não se sentisse totalmente abandonada.

— Acabaram de me ligar e informaram de que a senhorita já tinha acordado, sinto muito pela perda, não é um momento muito bom. — Comentou calmo, como se procurasse as palavras corretas para se referir ao acontecido.

— Eu tenho tios, e primos, e muitos amigos, por que estou sozinha aqui? — Falou mais para si do que para Victor.

O mesmo não gostou muito do comentário da jovem, era como se ela estivesse minimizada a dor da perda.

Ele tirou um celular do bolso e entregou a moça.

— O que é isso? — Se referindo ao fato de ele entregar o aparelho a ela.

— Bom... É um celular.

— Eu sei..., mas por que está me entregando? — Perguntou confusa.

— Bom, eu uso pra falar com pessoas, acredito que queira fazer o mesmo, como falar com seus tios, tias e os muitos amigos — nesse momento Victor, já tinha olhado para a jovem um pouco mais sério.

— Ann, claro me desculpa, você está tentando me ajudar... — respondeu um pouco envergonhada.

Ela digitou o número de sua casa, e pediu para a empregada m****r uma mensagem com o número de seu tio Hiroshi Okamura.

— Aika... Menina você sobreviveu??? Seu tio está saindo agora da França se ele ainda estiver esperando para embarcar pode ser que consiga falar com ele, ele já sabe de tudo por causa dos noticiários, mas não disseram que a senhorita estava viva.

— Leonor, estou viva... — A emoção na voz de Aika era nítida.

— Menina, estarei aí em breve para ficar contigo.

— Obrigada...— Falou com os olhos cheios lágrimas.

Nesse momento Victor, viu que a jovem ao ouvir uma voz familiar se emocionava ainda mais, e isso por que estava falando com seus empregados.

Ela finalizou aquela ligação, mas não pode falar com seu tio o mesmo já estava dentro do avião.

Ela olhou para o homem a sua frente e lhe entregou o celular.

— É seu agora, vai precisar enquanto estiver aqui... — Victor tinha o olhar calmo.

— Em que hospital estou? — Perguntava olhando diretamente para o homem a sua frente.

— Te trouxe para o Central, e já acertei todas as despesas, não precisa se preocupar com absolutamente nada por hora e é claro o fato de a senhorita estar viva foi encoberto por causa da imprensa, mas seus familiares e amigos logo vão estar aqui.

— Eu peço desculpas...— comentou sem graça olhando para a janela a sua frente.

Victor colocou a mão no bolso e ficou girando o pingente entre os dedos esperando um momento para devolver a joia.

— Como já havia dito o momento não é o muito bom... É normal fugir um pouco dos padrões normais de comportamento. — Falou olhando para a moça, a forma como ela lembrava Hugo chegava a ser absurda, se tirasse o vermelho de seus cabelos e colocasse um Preto seria quase idêntica a ele.

 " Uma piada infame do destino, me colocar diante dessa garota"— pensava o artista.

— Eu... Havia ganhado um pingente naquele dia..., mas até isso se perdeu...— falava ela colocando a mão no pescoço.

Victor tirou a peça do bolso e a fez escorregar pelo cordão de ouro e ficar balançando diante dos olhos da garota.

— Seria esse pingente senhorita? — Victor estava com o olhar malandro e com meio sorriso.

— SIM, É ESSE! — Gritou estendendo a mão na direção da peça.

Victor teve um pensamento aleatório e ácido.

—" Acaba de saber que os pais e o irmão faleceram e está cheia de sorrisos pra uma joia, mas aonde a noção dessa garota está enfiada?"

— Obrigada senhor Valem, essa joia foi o último presente que ganhei da minha mãe, ela tem um valor sentimental muito grande. — Aika estava quase retomando o choro.

— Achei melhor guardar, podiam perder a peça no caminho ou até mesmo roubar, por isso guardei a mesma para lhe entregar quando já estivesse em poder de sua consciência. — Comentou divertido olhando diretamente para os olhos azuis.

Sua mente estava agitada, ele sabia que a moça era uma patricinha mimada, mas seus olhos prendiam sua atenção e naquele momento a mecha de cabelo da franja caiu sobre seu rosto tapando um de seus olhos.

Ele segurou firme a respiração, soltou o ar com calma e sentiu que já estava mais do que na hora de sair do local.

— Eu espero que a senhorita tenha uma boa recuperação, e tenho certeza de que em breve todos que ama vão estar aqui contigo, eu preciso ir. — Falou se levantando da cadeira que estava ao lado da cama.

— Como posso te agradecer? E quando vem me ver novamente? — Perguntava a moça com medo da solidão do quarto do hospital.

— Não quero absolutamente nada em troca por ter lhe ajudado, e... — Pensou em dizer que não retornaria mais, pensou, mas disse outra coisa — Em breve eu volto.

Ele não ia voltar, ele não iria conseguir olhar para aquelas coincidências do destino sem poder fazer nada para impedir que seu coração sangrasse novamente.

Antes de sair depositou um beijo na mão de Aika, e olhou para seus olhos novamente os mesmos pareciam ter ganhado uma tonalidade de azul mais claro ainda, ou teria sido apenas sua impressão de momento.

Ele saiu do quarto e depois de meia hora uma mulher ainda com uniforme de governanta entrava em desespero no quarto. 

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