Enouf ficou na ferraria até a madrugada. Sentia os músculos das costas doloridos, a exaustão era necessária naquele momento. A casa já estava imersa na escuridão quando ele entrou, o rapaz subiu as escadas em silêncio e foi para seu quarto.
O jovem ferreiro tirou o casaco e se olhou no espelho. O rosto estava sujo da fuligem, os cabelos desgrenhados, a barba chamuscada, a camisa com algumas marcas de ferro.
Enouf não conseguia esquecer Azure, seu rosto assustado, seu olhar de medo quando ele se aproximou demais. O homem também não esquecia seu cheiro doce e delicado de rosas. Levou as mãos à cabeça e deu um rugido de raiva.
Não poderia se envolver com a princesa.
Não poderia deixar se envolver com ela.
Olhou para a porta que ligava seu quarto ao dela e, automaticamente, foi até lá. Quando colocou a mão na maçaneta pensou se deveria ou não entrar ali.
Era o quarto de sua esposa, mas aquela era sua casa.
É claro que ele tinha direito!
Entrou e encontrou Azure dormindo. A jovem princesa estava sentada na poltrona ao lado da janela, ela tinha um livro no colo e a cabeça pendia para o lado. Os cabelos loiros espalhados fascinavam o ferreiro. Ele percebeu que a esposa trajava uma camisola de alças que talvez fosse para a noite de núpcias.
A moça talvez acreditasse que ele era um homem sem moral, que exigiria algo dela mesmo que não tivesse direito. Enouf não poderia negar que estava atraído pela beleza de sua esposa, porém não seria capaz de obrigá-la a aceitá-lo em sua cama.
Ele se aproximou dela e a pegou nos braços, com delicadeza levou a mulher até a cama e a deitou, quando estava cobrindo seu corpo com a colcha, a jovem acordou, assustada.
“Você.” – disse, os olhos assustados, enquanto tentava cobrir o corpo.
“Eu vim ver se você precisava de algo.” – ele disse sem jeito – “Não precisa ficar com medo.”
“Tudo bem.” – ela disse, ainda segurando a colcha contra o corpo, como um escudo – “Eu estou bem.”
Enouf e Azure se encararam por longos minutos em silêncio. Enquanto ela estava nitidamente assustada, apavorada, o rapaz estava encantado pela beleza da esposa.
O que só deixava o ferreiro mais revoltado.
Quando aceitou aquele acordo não imaginava que Azure fosse tão bela, tão cheirosa, que sua pele fosse tão suave, seus lábios tão vermelhos e seus olhos tão azuis.
Ele pareceu lembrar que aquele não era um casamento normal, que Azure não era sua esposa por amor, levantou-se e se ergueu, como se a cama estivesse pegando fogo.
“Certo. Boa noite, então.” – falou e saiu rápido, sem deixar que a moça respondesse.
Trancou a porta entre os dois cômodos e tirou a roupa, com raiva. Precisava colocar os pensamentos em ordem ou então tudo sairia errado, o plano de tomada do poder, a derrocada de Àki, ainda estava em curso.
Enouf foi até o banheiro e entrou na banheira de água muito quente, sentindo a pele queimando, precisava focar no seu objetivo, que era salvar Albero Blu das mãos de Àki, não podia se encantar com a beleza de sua esposa.
O plano estava em curso e só isso importava.
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Quando Enouf abriu os olhos no dia seguinte, percebeu que já estava tarde. Ele não tinha costume de acordar depois do amanhecer, mas os acontecimentos da noite anterior resultaram em seu atraso. Levantou-se da cama e foi até a janela que havia ali no quarto e, como um castigo, a primeira coisa que viu foi a última pessoa que ele queria encontrar.
Azure.
Sua esposa estava no jardim, a princesa trajava um vestido simples de cor azul celeste, tinha os cabelos presos no alto da cabeça em um coque desajeitado e os pés descalços. Enouf sentiu o coração acelerar ao vê-la tão bonita e sorridente naquela manhã.
A jovem princesa conversava com Kira enquanto as duas cuidavam dos canteiros de rosas que havia no jardim. O homem observava os movimentos dela que eram precisos e pareciam ser feitos com naturalidade, como se ela costumasse fazer aquele tipo de trabalho sempre.
Ele se afastou da janela e decidiu cuidar dos seus próprios assuntos, estava atrasado para o trabalho e não tinha tempo para besteiras como aquela de observar Azure cuidando de plantas.
Fez rapidamente a higiene matinal, vestiu calças pretas surradas, camisa marrom e as botas que já tinham visto dias melhores, saiu do quarto e desceu a escada. Decidiu sair pela porta da cozinha, assim não veria sua mulher.
Porém o destino não estava a seu favor, uma vez que quando abriu a porta deu de cara com Azure. A esposa tinha o rosto sujo de terra e o sorriso que ela exibia morreu quando o viu.
“Bom dia.” – ele disse, hipnotizado pelas írises azuis.
“Bom dia.” – ela respondeu e desviou o olhar para o chão – “Eu preciso lavar as mãos.”
Enouf passou para o lado e a princesa entrou na cozinha, foi até a pia de cerâmica e abriu a torneira. O homem estava tão absorto nela que ficou, por alguns minutos, admirando as costas da mulher.
Quando percebeu o que fazia, saiu, sem nem mesmo se despedir.
Foi para sua oficina e encontrou Ulf, seu ajudante, já trabalhando. O garoto era órfão, como ele, Enouf via muito dele naquele rapaz, por isso o ajudava com o emprego na ferraria
“Bom dia.” – falou, ainda absorto na esposa, que não saía da cabeça nem por um segundo.
“Bom dia, chefe.” – o rapaz disse, sorridente.
Ulf tinha 17 anos e fora abandonado no orfanato de Albero Blu, o menino fugia da instituição e preferia viver na rua, até que Enouf ofereceu um ofício a ele, o menino logo aceitou e agora tinha uma vida digna, morava numa hospedaria da cidade, se alimentava e vivia sempre sorridente.
“Você chegou tarde hoje. Pelo visto a lua de mel foi boa.” – Ulf disse, em tom de zombaria.
Enouf grunhiu enquanto colocava as luvas de proteção.
“Perdão, chefe, não quis ser indiscreto.” – o rapaz falou, sem jeito.
“Não é nada, Ulf. Apenas estou pensando se esse casamento foi uma decisão certa.”
Enouf sentia os olhos do ajudante em si, o garoto, apesar da pouca idade, examinava o chefe com sabedoria.
“Por quê?”
“Eu...” – o ferreiro suspirou, sentindo-se derrotado – “Não pensei que seria tão difícil.”
Tão difícil não tocar os fios dourados de Azure, sentir sua pele alva e macia, se perder naquele cheiro que ela tinha...
“Você deve lembrar do plano.” – Ulf disse – “Tudo ficará mais fácil com esse casamento. Nós poderemos invadir o castelo sem que Àki perceba.”
“Eu sei, eu sei de tudo isso, não irei desistir. O plano está de pé.” – Enouf garantiu, logo em seguida os dois continuaram trabalhando em silêncio absoluto.
Quando terminaram os trabalhos, Ulf foi para casa, enquanto Enouf se preparava para ver sua esposa novamente. E ele estava perto de casa quando a viu.
Azure estava cuidando dos galhos de uma árvore quando ele ouviu o som de cascos de um cavalo correndo. Enouf olhou para a floresta e percebeu que o animal se aproximava cada vez mais rápido, na direção da princesa. A mulher parecia não perceber o perigo, por isso o homem resolveu agir. Correu em direção à esposa no mesmo instante que o cavalo apareceu entre as árvores.
Azure soltou a tesoura que segurava e esperou o destino, o cavalo atingiu a escada e Enouf aparou a queda da mulher. Os dois caíram abraçados no chão, o homem sentiu a pele ardendo devido ao contato com o chão, mas não se preocupou. Ele fitou a esposa, que estava embaixo do seu corpo, aparentemente a princesa estava sem machucados.
“Você está bem?” – perguntou.
Ela assentiu. Enouf, sem perceber o que fazia, levou a mão ao rosto da esposa e o acariciou, desceu o toque pelo pescoço e ombros dela, sentindo a suavidade da pele de sua princesa.
“Eu não consigo respirar. Você é muito pesado.” – ela disse com dificuldade.
Foi o bastante para que o homem lembrasse de tudo e percebesse o que fazia, por isso levantou-se rapidamente e ajudou a mulher a fazer o mesmo.
“Você não está machucada?” – perguntou mais uma vez.
Ela negou apenas com um gesto de cabeça.
“PERCY!” – Enouf gritou e logo o cocheiro apareceu, correndo – “Percy! Um cavalo desnorteado quase feriu gravemente a princesa!”
“Perdão, senhor.” – o rapaz disse, olhando para o chão – “Perdão, Majestade.” – o coitado fez uma reverência nervosa – “O cavalo não é nosso. Eu o capturei, estava cuidando dele quando fui chamado. Acho que ele está com um ferimento na pata.”
“Tudo bem. Vou com você ver o animal.” – ele olhou uma última vez para a esposa e saiu acompanhando o empregado.
Azure observou Enouf se afastando, ainda com o coração muito acelerado.Não havia percebido o perigo que corria com a aproximação do cavalo selvagem, estava muito concentrada nos cuidados do jardim. Ela adorava cuidar das plantas, ficava tão envolvida pela natureza à sua volta que esquecia do resto do mundo. Se não fosse pelo marido, não sabia o que poderia ter acontecido com ela.Lembrou da forma como o homem a acolheu em seus braços, protegendo-a do perigo iminente. A pressão do corpo dele, mesmo sentindo todo seu peso não era desagradável, pelo contrário. O calor agradável do corpo másculo, o cheiro masculino... era reconfortante.Azure piscou várias vezes, tentando voltar à consciência. Deus, tinha enlouquecido?Só poderia estar louca ao pensar que o abraço daquele homem bruto era agradável. Provavelmente tinha batido a cabeça no solo e nem percebera, aquilo explica a ausência de bom-senso. “Senhora?” – a voz de Kira trouxe Azure de volta ao presente – “Você está bem?”“E
Azure estava sentada sob a enorme copa de uma árvore milenar. As folhas azuis se mexiam conforme a direção da brisa fresca que tomava conta do ambiente, o cheiro das flores enchia a atmosfera, deixando tudo mais agradável.Albero Blu era um reino quase mágico, um lugar arborizado e aprazível, iluminado, cheio de árvores, flores e animais diferentes, como unicórnios. Cada ser vivo daquele lugar era especial e valioso, espécies raras.Azure, a filha mais velha do soberano Àki, gostava de andar pelo reino, sempre com um livro na mão, enquanto saudava os moradores. Muitas pessoas a tratavam com educação e simpatia, mas a jovem princesa percebia que outros cidadãos olhavam para ela com desgosto e viraram o rosto quando passava. Não entendia a razão, uma vez que fazia o possível para ser agradável com todos.Naquele dia ela tinha um livro de suspense nas mãos, Azure adorava a adrenalina e a tensão de saber a resolução do mistério da trama, faltavam poucas linhas para tudo ser revelado, por
Durante a noite, Azure e suas irmãs, Melina e Diamanda, tentaram buscar alguma alternativa para que o enlace não acontecesse, porém, as princesas sabiam que era dever delas obedecer ao pai e garantir a felicidade do reino. Se fosse necessário sacrificá-las, então seria feito, desde que o reino estivesse bem.“Irmã, por que você não foge?” – Diamanda, a mais nova e mais rebelde das três, disse – “Nós podemos ajudá-la nisso. Eu arranjarei roupas de homem, você pode sair daqui escondida no carro que nos traz alimentos. Eu tenho algumas joias, Mel também, você pode viver longe daqui.”“Não posso, Didi. Papai me acharia em qualquer lugar que eu estivesse. E, se eu não estiver aqui, ele obrigará Melina ou você a casar com esse homem.” – ela olhou para o vestido branco que uma serva pendurou na porta do armário do quarto. Era um traje de casamento, feito da seda mais fina que poderia ser encontrada. A saia tinha pequenos brilhantes que haviam sido costurados à mão pelas costureiras do reino.
Enouf não conseguia se sentir confortável naquela roupa estranha que foi obrigado a vestir, tentava remexer os ombros, mas nada adiantava. O terno negro parecia pequeno demais para seus ombros largos e aquela gravata lhe enforcava todo tempo.O homem observava sua noiva dançando com os convidados. Ela era simpática com todos, menos com ele. Enouf percebia o olhar assustado toda vez que a jovem princesa olhava para ele. Provavelmente Azure imaginava que ele a violentaria assim que estivessem sozinhos.Aquele homem com aparência bestial não ficava surpreso com esses preconceitos, já estava habituado a isso, mas o olhar de sua (agora) esposa deixara Enouf chateado. Ele não entendia a razão, não estava apaixonado por ela, aquele casamento era parte apenas de um plano, de um bem maior, as opiniões de sua noiva sobre ele não deveriam lhe atingir.Mas atingia.Algo em Enouf queria que Azure lhe fitasse com amor, do mesmo jeito que ela olhava para o pai e as irmãs. Ele gostaria de ser o motiv
Quando Enouf saiu, a princesa permaneceu ali, vendo o homem enorme se afastando, sem olhar para trás. Pouco tempo depois, uma das jovens servas voltou e levou Azure para dentro da casa. Ao contrário de sua casa anterior, aquela era bem menor e tinha muito menos luxo. Os móveis de madeira eram simples, mas pareciam bem cuidados, o chão estava limpo e lustrado, o ambiente era muito agradável, apesar de toda a simplicidade.A casa era muito ampla e bem arejada, não tinha nem um canto escuro, ao contrário do castelo em que morava, onde os cantos tinham que ser iluminados por tochas ou archotes.“Vossa Majestade, vamos. O seu quarto fica lá em cima.” – a moça disse, fazendo uma reverência desengonçada, sem encarar Azure nos olhos.Azure sorriu, aquela menina deveria ser da mesma idade dela, talvez um pouco mais velha, e antes que ela saísse, a princesa segurou seu braço, impedindo que a moça avançasse. Ela segurou, com delicadeza, o rosto da jovem serva e o ergueu, encarou brevemente as í