Sonhos Quebrados

   ✥ · ✥ · ✥

   500 anos após a Guerra, ano 708

   O vento frio do outono soprou meus cabelos pra meu rosto e o cheiro de perigo flutuou até mim com a brisa do vento. Sabia que era arriscado estar na Floresta Negra a esta hora da madrugada, mas não podia voltar mais uma vez para casa de mãos vazias. Ninguém gostaria de escutar sua chefe te criticando depois que não fez um trabalho direito, e eu estou no topo dessa lista.

   A caçada era algo extremamente difícil para mim. Principalmente porque era um trabalho que deveria ser feito pelos homens ㅡ ainda mais depois que várias escravas fugiram da propriedade em que eram serviçais depois de serem designadas a caçar o jantar ㅡ e depois porque era muito dificil matar um animal inocente para que pessoas tão ruins como eles pudessem comer sua carne.

   A Floresta Negra, a esta hora, está lotada de névoa e sombras. A densa concentração de árvores mais à frente é bem difícil de se enxergar, me fazendo estreitar os olhos para cada mínimo movimento que ouço mais a frente.

   O perigo passa sobre minhas narinas como um cheiro denso e suave, apenas um lembrete do que estou fazendo e na tamanha burrice que isso é. Ninguém pode fugir da propriedade, e eu certamente não serei a primeira. Mas, ainda assim, sempre há ramificações na perfeição. Nada nunca vai ser tão incrível que não possa ser rompido. Até mesmo coisas tão bem construídas como isso.

   Meu corpo tensiona quando escuto ao longe um galho quebrando, e imediatamente viro o arco e flecha para a direção que veio o som. Com tantos anos de prática, aprendi a perceber as coisas mesmo quando estou com dificuldade para enxergar; como agora. Com toda essa névoa branca é impossível enxergar o possível movimento de um animal.

   Escuto novamente. Galho quebrando. Algo como se fosse um pequeno passo logo em seguida. Não é um animal; isso são passos humanos com certeza. Passos lentos e deliberados; a pessoa quer que eu saiba que está me rondando. Quer que eu saiba que está de olho em mim e no que estio fazendo.

   Meu hálito condensa no frio da noite e vira fumaça quando suspiro.

   Me cobrindo mais com a manta surrada, tento ignorar que meus dedos não cobertos com luvas já estão ficando duros e sensíveis. Consequências de ter preferido gastar o mísero dinheiro que recebo com uma manta nova e ter esquecido as luvas, que eram um problema maior.

   Levanto do meu esconderijo atrás de um tronco malditamente grosso no eixo e encaro o nada, vendo ao longe uma pequena sombra que me chama a atenção. Seria um coelho?

   Aponto a flecha naquela direção, me perguntando se aquilo seria mesmo um coelho e rezando para que seja. Já cometi o maldito erro de ter atirado a flecha numa pessoa quando na verdade pensava que era um animal, e as consequências que isso me trouxe não foram nem um pouco agradáveis. Apenas mais um dos motivos pelo qual eu quero vingança. Contra todos eles.

   Todos eles me machucaram, me trataram como lixo quando estava na sarjeta e cheguei ao fundo do poço. Todos eles criaram contra mim um ódio absoluto e completo que consumia seus ossos até que a única coisa que desejavam era me matar para acabar com tanta bagunça. Mas esse não foi meu pior problema.

   Tive que aceitar as humilhações e desprezo apenas para estar aqui correndo perigo e tentando arrumar algo para comer. Para eles também. Sempre quis sumir daqui com o animal que eu caçasse, mas sempre há alguém me observando e esperando apenas para ver o que eu faço depois de ter capturado minha presa. Normalmente esse alguém é o filho do meu patrão, o homem que me persegue dia e noite até a vila para garantir que eu não fuja da prisão em que eles me colocaram.

   Rangendo os dentes e esfregando as mãos para aliviar o frio, aponto a flecha mais uma vez para a sombra que desponta da névoa, agora um pouco mais nítida. Definitivamente um coelho. O que diabos faz aqui, amigo? Nesse frio todo você deveria estar hibernando, e não sob a mira da minha flecha.

   Miro na parte mais gordinha do animal, perto de onde sei que fica o coração, para que não tente se contorcer demais enquanto eu termino a execução. Apesar de ter feito isso incontáveis vezes, cada uma sempre foi mais dificil que a anterior. Já perdi as contas de quantas vezes acordei no meio da noite depois de um pesadelo maldito onde sonhava com os olhos dos animais revirados de dor enquanto eu o matava.

   Espero que me perdoe por isso, coelho.

   Disparo. A flecha corta o vento e vai direto na direção do coelho, atingindo o alvo com perfeição. Tento não estremecer quando escuto o ganido nervoso de dor e susto do animal depois que a flecha o perfura.

   Aproximando do local, encontro o coelhinho já morto no chão, os grandes olhos pretos parecendo como se estivessem me encarando e me julgando pela sua morte e dos demais que já matei antes dele. Esses olhos... Me fazem companhia à noite quando estou dormindo. Tantos pesadelos... Tantas mortes...

   Sacudo a cabeça com força e pego o manto que trouxe como reserva para levar o animal morto de volta à propriedade. O frio congela meus ossos, o que torna o processo de volta um pouco mais dificil. Mas não deixo, em nenhum momento, de sentir o movimento leve e fluido atrás de mim de um espião enviado pela minha patroa que não suporta me ver um dia livre desse inferno que chamo de vida.

   A névoa vai se esvaindo conforme avanço pela floresta, as árvores mais grossas e maiores ficando para trás a cada passo. Até que a mansão desponta por trás de um pequeno morro que tive que descer até aqui. Equilibrando o manto envolvendo o coelho e o arco e flecha em uma das mãos, uso a outra para me impulsionar para cima e alcançar o topo. Estou completamente ofegante quando chego até os grandes portões de ouro extravagantes e cravejados de pedras preciosas que me levam à entrada.

   O enorme jardim fica mais bonito à noite. Depois que as luzes do lado de fora são acesas, as rosas e demais flores ficam em maior evidência, e suas cores são como uma explosão de arco-íris. Cada uma mais linda que a outra, elas se destacam no muro cor de ouro que envolve a mansão dos meus chefes, criando um belo contraste com a fonte branca de mármore que se encontra bem no meio do jardim, bem alinhada com a porta grande de mármore que leva para a parte de dentro da mansão.

   Um lugar completamente extravagante que ninguém faz proveito, apenas os criados que são escalados para cuidar das plantas.

   Ando pela grama verde e macia até os fundos da propriedade, largando o pequeno embrulho em cima da mesa já manchada de vermelho. Tentamos várias vezes tirar a mancha do sangue dos animais que ficou aqui, mas foi impossível. E é uma lembrança do que somos obrigados a fazer todos os dias para que eles possam ter boa comida.

   Pegando a faca grande do lado da pia, abro o embrulho que fiz em volta do coelho e avalio sua situação. Boa penugem, branca e pura. Isso deve valer algumas boas moedas na vila. E a carne... Penso nas vezes em que era obrigada a apenas sentir o cheiro dela cozida depois que caçava e em como isso me torturava. Nunca nos davam as sobras do jantar, apenas aquilo que fazíamos para nós mesmos: papa insossa e gosmenta. Era o que sobrava depois que o jantar estava pronto e podíamos pegar alguns poucos ingredientes de nossa cozinha.

   Tentando ignorar o formigamento nas mãos congeladas enquanto seguro o coelho e passo a faca por sua pele, ficando imediatamente com sangue até os antebraços. De certa forma, fico um pouco contente por este cheiro ficar no meu corpo mesmo depois do banho. Me lembra das pequenas vidas que tirei no meu tempo por aqui. E das vidas que um dia vou recuperar se eu sair.

   Finjo não sentir os passos do invasor atrás de mim, vindo diretamente para onde continuo o trabalho de tirar a pele branca do coelho. Virando ligeiramente, encontro o olhar escuro de Kennai, o filho do chefe. Meu patrão, como o chamo.

   Kennai me segue para todos os cantos como um cachorro da guarda real, sempre armado e sempre com esse olhar entediado e escuro para mim. Como se estivesse me culpando.

   ㅡ Sabia que se ficar franzindo a testa desse jeito, cria rugas mais cedo? ㅡ digo, arrancando de vez o pedaço grande de pele do pequeno animal. O cheiro do seu sangue é bastante ruim, mas não ligo. Eu mereço sentir.

   ㅡ O que estava fazendo na floresta a esta hora? ㅡ Ele pergunta, a voz fria. Com um gesto despreocupado, aponto para o coelho sem pele.

   ㅡ Não consegue ver? Estava caçando para seu pai e os demais comerem, não lembra? Pessoas como eu apenas trabalha e não ganha algo em troca, por isso decidi adiantar meu trabalho para apenas ir à vila amanhã.

   Até daqui posso sentir o perigo que emana dele. Kennai é uma das poucas pessoas que me dá medo, mas ele consegue me assustar com sua aparência dura e escura e suas atitudes grotescas. Seu corpo musculoso mais parece com um tronco de árvore quando está envolto em tantas camadas de roupa como agora. Ele poderia muito bem me quebrar ao meio com esses braços gigantes.

   ㅡ Sabe que suas ordens eram para nunca sair da propriedade à noite. Meu pai e...

   ㅡ Seu pai e mãe vão me castigar por ter saído à noite, eu já sei. Mas por que não poderia te dar um pouco de trabalho? Notei que ficou um pouco descontente depois que descobriu que sua namorada o traía.

   Em dois segundos ele está do meu lado. Tirou a faca de minha mão de forma tão rápida que só percebi o movimento quando ele me segurou contra seu corpo e apoiou a faca em meu pescoço. Nem estava ofegante.

   ㅡ Escute aqui, garota. Eu não tenho medo de você ou de sua completa arrogância, mas não morda mais do que pode mastigar. Sua existência não muda minha vida em nada, e se eu tiver que te matar para tirar um peso de minhas costas, assim farei.

   E me solta. Tento não demonstrar minha confusão e estremecimento ao ouvir sua voz assim tão perto e tão assustadora. Kennai sai de perto de mim e joga a faca na mesa, com tanta força que ela se enfia na madeira.

   Meus olhos demonstram desafio. Vejo isso refletido nos dele. Kennai foi a pessoa mais desprezível que conheci aqui desde que cheguei a este fim de mundo, e a cada atitude dele eu só confirmo isto mais e mais dentro da minha cabeça.

   ㅡ Eu não tenho medo de você, principezinho. ㅡ brinco com o apelido que roda a vila, e vejo seus músculos duros se contraírem. ㅡ Pode me matar, se quiser. Aqui eu já sou escrava mesmo, então pode fazer esse favor a nós dois de uma vez, até porque eu não tenho culpa que nenhuma mulher o queira para se tornar rainha. Todas elas desejam alguém mais decente e que não vejam tudo e todos como uma ameaça. Eu não sou sua amiga, então não venha me fazer ameaças vazias porque nós dois sabemos que precisam de mim para caçar.

   Tento ignorar sua presença quando me viro e, como se nada tivesse acontecido, continuo o trabalho. O ódio emana de nós dois, nos envolvendo como a névoa da floresta. O príncipe de Stalian anda lentamente até parar atrás de mim como minha própria sombra. Piscando as pestanas para ele, pergunto docemente:

   ㅡ Algum problema?

   ㅡ Sim, há um problema, Asterin. Eu não gosto quando meninas malcriadas que não sabem nada sobre minha vida e sobre o que eu faço me julguem e ainda tentam me dar ordens.

   ㅡ Eu não gosto de ser escrava do rei mesmo quando todos acreditam que a escravidão já foi abolida há séculos. Então, acho que estamos quites.

  

   ㅡ Você não é uma escrava. ㅡ Sei que seu maxilar está trincado, tamanha é a força que ele fez para as palavras saírem.

   ㅡ Uma pessoa que não tem um minuto de descanso no dia e tem que trabalhar caçando animais naquela floresta maldita e passa cada minuto do dia sendo vigiada por um príncipe mal humorado e que não sabe sorrir não é um escravo? Acho que nós dois temos concepções diferentes sobre este significado. Isso sem falar em cortar lenha, cozinhar, arrumar quartos e salas, entre outras coisas. Preciso continuar ou vai me deixar finalizar com o coelho para que vocês possam ter um excelente almoço mais tarde, príncipe Kennai?

   Coração batendo muito, muito forte, me retiro de sua presença e entro na pequena cozinha onde deixo a pele do coelho em cima da mesa e a carne do outro lado juntamente aos outros que consegui pegar mais cedo. Tento acalmar a respiração quando ouço os passos de Kennai se distanciando cada vez mais, até desaparecer.

   A fúria por essa gente vem apenas crescendo a cada hora que fico aqui. Essa vida miserável que eles mos fornecem é escondida de todos os outros da vila, que pensam que ninguém mais trabalha com escravos. Ainda mais o rei. Afinal, quem imaginaria que sua maior fonte de confiança estaria chicoteando pessoas nos seus próprios jardins?

   De certa forma, entendo um pouco a raiva e medo de Kennai quando me viu tão longe das muralhas da mansão. Estive bem perto da muralha de magia que nos separa dEles. As criaturas que nos governam, ainda mais que os reis humanos. Sua presença imortal e avassaladora é como um banho de água fria no inverno. Dói e não há nada que você possa fazer para mudar o ritmo da história.

   A muralha que nos divide foi construída depois que Eles entraram em conflito eterno com os humanos, desejando tomar suas terras e governar o mundo. A muralha foi como uma base de paz entre os dois, deixando ambos satisfeitos.

   Bem, isso poderia ter continuado se alguns dos monstros imortais não quisessem tanto nossa alma miserável além de tudo que já possuíam e não tentassem diversas vezes destruírem o muro que nos separava.

   É claro que ninguém nunca os destruiu, mas alguns monstros mais fracos podem passar por ele, que ficou mais fraco no decorrer dos séculos. A tão sonhada e tão bem manuseada muralha finalmente se encontra em seu estado mais fraco, onde as criaturas passeiam livres pela Floresta Negra e também por nossa vila como se fosse dono desta.

   Tantos problemas causados por eles...

   Desde que meu irmão retornou de sua missão nas fronteiras de nossas terras e também de Taryan, voltou completamente mudado. Não apenas seu físico, mas todos seus outros sentidos estavam sempre alertas para qualquer coisa que viesse a nos ameaçar. Qualquer barulho era motivo de uma "verificação" minuciosa e eu não podia sair do lugar onde estava até que ele já tenha visto tudo.

   Ouvindo um barulho da parte de fora, seguro a faca que estava cortando a carne do coelho e me preparo para atacara quem quer que esteja ainda acordado a esta hora. Fico chateada quando encontro Kennai parado à porta, olhando para minha faca daquele jeito arrogante e irritante de sempre. Dou de ombros e pergunto o que ele quer.

   ㅡ Você vai sair amanhã bem cedo para a vila trocar as peles que já tem pelo dinheiro e vai conseguir umas coisas para mim. Eu estou avisando, Asterin. Se eu ver uma moeda a menos dentro da sacola, sabe o que acontece.

   ㅡ Como se eu já não tivesse tido o gosto daquele chicote antes, não é?

   ㅡ Não quero ouvir suas reclamações. Parta antes que o sol nasça e volte com o que está aqui. ㅡ Me passa uma lista por cima da mesa. Tento não demonstrar meu divertimento quando dou de cara com sua letra feia para quem teve tantos professores bem pagos para lhes ensinar uma bela caligrafia. ㅡ Leve Grant com você. Ele sabe onde conseguir a maioria destas coisas.

   E vai embora mais uma vez. Até mesmo seu andar demonstra sua tamanha autoridade sobre minha vida. Ah, mas ele não sabe quem eu sou ou do que sou capaz.

   Ele um dia vai provar de minha vingança. E eu terei o maior prazer de lhe mostrar as várias técnicas de tortura que aprendi no decorrer da minha vida apenas para poder apreciar este pequeno momento.

✥ · ✥ · ✥

   O sol quente castiga minha pele.

   Comparando-se ao frio eterno da madrugada, agora o dia está pegando fogo. Mesmo com poucas camadas de roupa e blusa sem manga, ainda consigo sentir o abafado dentro do corpo de quem apenas necessita liberdade das roupas e só quer mergulhar no rio gelado.

   A bolsa em que carrego as peles ficou ensanguentada no caminho até aqui, de modo que enquanto passamos acabamos deixando pequeninos rastros de sangue. Tento ignorar os olhares cobiçosos quando passamos pelos corredores entre as barracas de diversas mercadorias; desde alimento até armas. Que, por acaso, apenas podem ser compradas com a permissão do rei.

   O barulho da conversa das pessoas ao redor me faz ter dor de cabeça, mas é assim todos os dias.

   No fim das barracas, bem ao longe, desponta o que deve ser uma imensa caixa preta no meio do nada. Poderia caber umas vinte pessoas ali dentro sem problemas, o que me deixou bastante curiosa. Porém quando tento desviar do caminho da barraca correta, meu irmão tem o favor de me empurrar de volta para a linha.

   ㅡ Eu não acho que você deveria ir lá, Asterin. ㅡ Ele diz, ligeiramente assustado. Ainda é um pouco difícil acreditar em tamanha desconfiança que ele possui, mas os anos de convivência me fizeram apenas a aceitar esse seu caso. Se bem que é bastante vergonhoso ter que servir de muralha entre ele e uma pessoa que, aparentemente, ele quer me manter longe.

   ㅡ Por que não? É algo perigoso demais para você? ㅡ provoco.

   ㅡ Dizem que ali é onde as Bruxas de Amelin fazem seus feitiços e os jogam sobre o mundo.

   Se eu tivesse ânimo e força de vontade, riria da cara apavorada que ele faz quando encara aquela caixa preta gigante. O maior perigo que deve haver ali são algumas cobras que podem ter deslizado por nossas vegetações e encontrado abrigo ali dentro.

   ㅡ Você não deveria acreditar em tudo que lhe dizem, querido irmão.

   Fazemos uma curva no estreito corredor e já de longe eu avisto a barraca comum que sempre compra nossas peles. Está bem movimentada, como sempre. Algumas pessoas saem dali com sorrisos e a mão fixa no bolso, e outras saem cabisbaixas e ainda segurando sacolas pequenas. O dono da barraca nunca gostou de bichos pequenos demais, apenas os corpulentos e mais bem estruturados o suficiente para darem boas roupas ou tapetes.

   É claro que abre uma exceção para o rei maldito. Sempre compra nossa mercadoria, por pior que seja. E também se não o fizer... Digamos apenas que o rei mandará um de seus carrascos malditos com um chicote na mão para vir até aqui fazer uma visita.

   ㅡ Asterin! É sempre bom vê-la. ㅡ o homem exclama quando nos vê, e seus olhos se tornam cobiçosos e cheios de fome quando enxerga a sacola que carrego.

   Ele é um dEles. Um imortal. Compra peles de animais e carne para que ele mesmo possa comer e fabricar seus próprios objetos e mercadorias. E também nunca deixa a oportunidade de encontrar um defunto por aí para devorá-lo também.

   ㅡ Trouxemos isto para você. ㅡ coloco a sacola cheia na mesa de sua barraca, tentando não notar o olhar de fome que toma conta de seus olhos. A criatura, com suas orelhas pontudas e ligeiramente azuladas nas pontas toca o bolso e as moedas ali tilintam, me fazendo ter uma súbita vontade de tirar apenas um pouco do dinheiro para comprar um par de luvas.

   Estou avisando, Asterin. Se eu ver uma moeda a menos nesta sacola, sabe o que acontece.

   Maldito Kennai.

   ㅡ Doze moedas de prata por tudo isso. ㅡ Ele diz, virando-se para mim, as pupilas ligeiramente dilatadas. Os dentes pontudos se movem para fora em um sorriso maldoso e minha única vontade é rasgar sua garganta por sequer pensar em me comer dessa maneira. Já aprendi a conhecer suas expressões e gestos. Meu irmão endurece ao meu lado.

   ㅡ Doze? Você sabe que isso tudo vale dezoito moedas de prata. ㅡ Grant diz atrás de mim como de costume.

   Cerro os dentes quando a criatura se inclina sobre o balcão, inspirando nosso cheiro fortemente. Ele passa a mão pelo lábio enquanto pensa no que quer que esteja pensando e nos avalia com atenção. Os olhos extremamente vermelhos se movem para a sacola com as peles que eu tirei da mesinha e voltei a segurar e depois de volta para mim.

   ㅡ Não posso oferecer mais do que isso, garota. A colheita está cada vez menor e não temos mais as mesmas mercadorias fáceis de antes.

   Mercadorias ele quer dizer que são pessoas. Pobres pessoas inocentes que vagam pela floresta e que acabam tombando com um deles e viram comida dos imortais. Trinco os dentes com força ao sentir o colar ao redor do meu pescoço esquentar um pouco; sinal de perigo. A criatura está agora com os dentes expostos e olhando diretamente para meu pescoço.

   ㅡ As pessoas foram avisadas sobre o perigo da floresta, Kiribati. Não somos mais os mesmos ingênuos e burros que saem a noite para aquele lugar. Não tenho culpa se você deixou mais do que uma pista sobre o que faziam com os humanos que cruzaram sua fronteira, então, ou você me paga o preço de antes ou terei o maior prazer em comunicar ao rei sobre isso.

   Ele sorri. Ou tenta. Os dentes afiados e retorcidos se abrem para mim em uma ameaça, o perigo sempre presente e fazendo o colar esquentar mais. Eu não deveria estar brincando com um imortal, sei disso, mas criaturas como ele merecem muito mais do que isso. Lentamente, toco a adaga que sempre carrego ao lado do quadril e sinto Grant fazer o mesmo.

    ㅡ Sabe o que eu posso fazer com você, menina Asterin? ㅡ se aproxima até que seu rosto esteja a centímetros do meu, o hálito quente e podre tocando meu rosto em cada palavra. ㅡ Não vejo a hora de um dia a pegar perambulando pela minha floresta para que possa finalmente apreciar seu corpo. Sua carne. O sabor de seu sangue. ㅡ lambe os lábios como se estivesse imaginando. O nojo dessa cena me faz tremer um pouco se não fosse a raiva me consumindo. ㅡ Ia fazer picadinho de seu corpo e devorar parte por parte até que não sobre nada além dos seus restos inúteis jogados por sobre as folhas.

   Escondendo o medo e sabendo que ele está blefando, falo:

   ㅡ Pode fazer isso, pequeno mago. Pode vir me encontrar toda madrugada, que é quando saio para caçar para não ter tanto trabalho pela manhã. Ah, mas quase me esqueci. Você é preso durante a noite, não é? Preso e torturado pelo seu próprio rei que quer que você o responda algumas perguntas. Tsc, tsc, tsc. Deveria ter mais cuidado com as palavras.

   Daqui mesmo posso sentir a tensão emanando de Grant, que se agarrou ao meu manto como se sua vida dependesse disso e agora sussurra várias vezes para que eu nunca mais faça isso de novo.

   A criatura imortal me olha com ódio mortal, as narinas ligeiramente dilatadas. Até mesmo o barulho ao redor diminuiu um pouco e eu posso ouvir os vários sussurros: "Ela está louca", ou "O que diabos essa garota está fazendo?".

   Nem eu mesma sei. Mas esta coisa vem me tentando cada vez mais para matá-lo a cada vez que venho aqui. Não é à toa que sempre estou carregando comigo a faca de caça que consegui roubar do arsenal do príncipe depois que fui encarregada de limpar seu quarto. Levei umas boas chicotadas por isso, mas nunca encontraram a faca. Sempre a carrego comigo.

   ㅡ Bem, menina Asterin. Essa sua boca grande ainda vai ser sua condenação. ㅡ se afasta e volta para seu lugar, estalando os dedos e fazendo as dezoito moedas de prata aparecerem no balcão. Deixo a sacola para trás e saio dali arrastando um Grant paralisado comigo até sair de perto dessa coisa.

   ㅡ Asterin, o que diabos estava pensando? ㅡ ele fala, como eu soube que faria. Sua exasperação evidente é a coisa mais idiota que vejo, e por mais que ele esteja coberto de razão, não confesso isso agora.

   ㅡ Estava sendo normal até que ele me tirou do sério. Você faria o mesmo, não?

 

   ㅡ Nunca! Eu aceitaria as doze moedas em um piscar de olhos.

   ㅡ E levaria chicoteadas por ter voltado com menos dinheiro? Prefere ter as costas rasgadas a uma pequena aventura corajosa?

   ㅡ Não.

   ㅡ Então cale a boca, Grant.

   Ele cala a boca. Bom mesmo. É melhor que fique quieto antes que eu o ensine aqui e agora a ser um pouco mais aventureiro. E isto consiste em levá-lo para a floresta para se encontrar com uma criatura imortal e matá-la. Porém sei que ele morreria apenas pelo susto de ver uma dessas coisas.

   De longe vejo mais uma vez aquela caixa preta gigante que se destaca no meio do verde. Os aldeões passam por mim também sussurrando sobre o que deve ser aquilo, já que normalmente quando há algum evento que é exposto para todos, ele fica no centro da cidade e não isolado em um lugar onde ninguém vai.

   Os sussurros ficam mais altos conforme uma maior quantidade de pessoas se juntam no final dos pequenos corredores para fofocar sobre a grande caixa. Bem, depois eu mesma responderei minhas próprias perguntas sobre ela.

   Sigo com Grant sobre a estrada de terra até o caminho que nos leva de volta para a mansão, parando quando encontro uma pequena flor no caminho. Ela está jogada no chão, mas perfeitamente viva e brilhante. É de um vermelho puro e rubro, da cor de sangue. Sangue que eu tirei de tanta gente e eles nunca voltaram para me cobrar. Bem, isto parece apenas uma tortura a mais para suportar.

   Jogo a flor de volta no chão e continuo seguindo para a mansão que eu aprendi a chamar de prisão.

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