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Desafios Arruinados

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   ㅡ Eu não quero saber se o Ministro não aprovou nossas regras, Armon. ㅡ rosno, fazendo-o tremer levemente. Estreitando os olhos para o papel que ele me estende corajosamente, abro minha expressão mais animalesca e ponho as garras para fora. ㅡ Mande uma mensagem agora para a sede e lhe diga que o que me propôs jamais será aceito. Eu sou o deus desse reino, e não vou tolerar ordens de um inferior a mim.

   O mensageiro novato se encolhe, me fazendo ter vontade de bater na sua cabeça. Por Taryan, se eu não conseguir alguém ao menos corajoso para enviar minhas mensagens, terei que matar mais um? A busca por novos humanos capazes de realizar viagens longas assim está ficando cada vez mais complicada desde que a barreira foi criada. Aparentemente, com a proteção, eles têm ficado mais distantes da floresta e enfiados em suas vilas.

   Passando a garra ameaçadoramente pela minha mesa, observo o humano ficar pálido enquanto me encara com olhos arregalados.

   Erguendo a sobrancelha diante sua hesitação, faço um sinal para que ele acorde para a vida e faça o que ordenei.

   ㅡ Korian... hmm, senhor, sinto lhe dizer, mas o Reino Drysand não teve um deus como seu soberano por um longo tempo. Não acho que...

   Em um rompante, me ergo da cadeira com furiosa rapidez, fazendo-o dar vários passos atrás e me olhar ainda mais aterrorizado. Apoiando as mãos na mesa com deliberada frieza, deixo bem claro o poder saindo de meus dedos para o rosto assustado de meu escravo. Ele engole em seco várias vezes e dá dois passos para trás, mas nós dois sabemos que eu posso alcançá-lo em um piscar de olhos.

   Meus olhos perfuram os seus enquanto continuo observando sua expressão ficar cada vez mais amedrontada. Covarde maldito. Se eu quisesse alguém que se mijasse a cada vez que me encarasse, poderia apenas sequestrar alguém do Reino Lunar para me entreter na cama. Mesmo que as mulheres de lá não sejam minha escolha favorita, adoraria ver o terror em seus olhos enquanto eu lentamente as matava.

   E olhando para ele agora... Talvez eu possa me divertir, também. De outra forma.

   ㅡ Armon, minha paciência está no limite. Me insulte mais uma vez e eu terei prazer de trazer até mim a mulher que você chama de esposa. ㅡ lentamente, quase brincando com sua sanidade, ergo uma foto que guardo dentro da gaveta e mostro a ele, vendo seu rosto torcer em desespero e fúria.

   Um sorriso maligno brota em meu rosto.

   ㅡ Se não quiser minhas garras perto dos peitos dela, mensageiro, faça o favor de fazer seu trabalho direito. Ou eu poderei me divertir bastante com o corpo dela antes de matá-la.

   Eu não tinha a intenção de fazer isso, é claro, já que matar humanas nunca me atraiu tanto. Porém, precisava de algo que pudesse me levar sempre à dois passos na frente dele. Essa parece ser a única opção viável.

   ㅡ Senhor... ㅡ o humano começa, mas eu o corto com furiosa acidez.

   ㅡ Faça o que mandei, Armon, e retorne aqui. Só assim poderá voltar para sua casa maldita. Mas se falhar...

   Eu quero rir com o olhar aterrorizado em seus olhos, mas me contento em apenas abrir um sorriso.

   ㅡ Vá. ㅡ ordeno.

   Ele não espera. Sai quase correndo da minha sala, e imediatamente um dos meus guardas preenche o ambiente com sua enorme musculatura.

   ㅡ Devemos matá-lo, senhor? ㅡ pergunta sem rodeios.

   ㅡ Não. Ele tem que cumprir a dívida primeiro. ㅡ respondo, cortando-o quando abre a boca novamente.

   Sua expressão de surpresa me faz revirar os olhos.

   ㅡ Mas o senhor disse...

   ㅡ Não importa o que eu disse ㅡ aumento a voz, fuzilando-o com o olhar. ㅡ Ele tem uma família?

   O guarda assente.

   ㅡ Uma esposa e duas filhas, senhor. Vivem nas montanhas, a caminho de Munsk.

   Balanço a cabeça.

   ㅡ Deixe que ele volte. Não somos famosos por desmembrar famílias. Ainda mais quando ele é o único homem.

   O guarda arregala os olhos.

   ㅡ Deixar que volte? Mas ele vai nos denunciar na primeira chance que tiver. Senhor, se me permite...

   Em um piscar de olhos, o guarda está colado na parede con puro terror nos olhos e minha mão em sua garganta, apertando bem.

   ㅡ Não, eu não permito. Talvez você deveria tomar mais cuidado com o que fala ao meu redor. ㅡ aperto ainda mais a mão, e ele solta um ganido, tentando puxar o ar. ㅡ Se eu digo para você matar, você mata. Se digo para deixar o homem viver com sua família, você deixa. Estamos entendidos, ou eu preciso desenhar?

   Solto o homem, fúria no olhar quando o vejo se inclinar par a a frente e tossir várias vezes antes de se erguer e me encarar com coragem forçada.

   Tenho que lhe dar um ponto por isso. Outros já teriam fugido sem olhar para trás.

   ㅡ Entendido, senhor. Tratarei disso imediatamente. Mas como eu...

   Tenho que segurar um suspiro de irritação.

   ㅡ Você não é poderoso o suficiente para, pelo menos, enfeitiçar o homem? ㅡ minha voz corta como lâmina.

   Posso ver que ele engole em seco, e sua postura fica mais ereta.

   ㅡ Sou, sim, senhor. Farei o que me ordenou e encontrarei o homem na volta.

   Balanço a cabeça novamente.

   ㅡ Está dispensado.

   O homem foge, me deixando sozinho com a papelada infernal. Suspirando alto, volto para a mesa, ainda massageando a cabeça por conta da dor que só cresce no decorrer dos minutos.

   Olho para a janela, vendo minha cidade abaixo dela, e o sol já se pondo por trás das altas colinas que envolvem Taryan. O primeiro raio da manhã nasce bem de frente para meu quarto, no complexo oposto da sala onde eu estou. As primeiras luzes matinais o aquecem como um cobertor enquanto pensa nas diversas atividades que terá de fazer durante o dia, e em como seria maravilhoso passar a manhã inteira na cama.

   Mas logo os ventos começam, e isso é suficiente para que me levante. A brisa sopra forte por dentro de meu quarto, chacoalhando as janelas e esvoaçando as cortinas com violência, um prenúncio do dia chuvoso que se seguirá. A única lembrança que ele possui, porém, são das noites frias de sua terra que pioram ainda mais quando o inverno chega. Nesse tempo, é necessário planejar meses antes uma forma de não fazer os moradores do Reino Floral morrerem congelados.

   Eu e meus conselheiros montamos, alguns invernos atrás, um meio de proteger nossos viventes. A cidade se movimenta alegremente abaixo de mim, e cada pedacinho de meu corpo deseja estar com eles lá embaixo, rindo e dançando com as mulheres na praça. Daqui posso ouvir claramente a risadagem,  mesmo que ainda esteja bastante cedo. O sino toca fortemente do outro lado, sinalizando o início da manhã e a entrada dos novos trabalhadores em seus cargos, iniciando-se um novo dia.

   Suspiro, olhando para a mesa cheia de papéis. Se pudesse terminar rápido... poderia ir na cidade um pouco e festejar com meu povo. Ou talvez... fisgar uma mulher e trazê-la para passar a noite. As opções parecem bem atraentes.

   Me jogo de volta na cadeira, fazendo uma careta para os números e relatórios gigantes nas folhas. Esfrego a testa mais uma vez, me perguntando por que diabos uma dor de cabeça começa neste exato momento. Quando eu preciso da maior quantidade de sanidade possível para não enlouquecer diante disso.

   Uma batida na porta o acorda levemente para a realidade, duas horas depois. Suspirando dramaticamente, digo:

   ㅡ Entre.

   Chean, seu conselheiro, entra. Ele carrega consigo uma pasta marrom recheada de mais folhas e eu quase fecho os olhos para ter certeza de que não estou tendo um pesadelo.

   ㅡ Senhor, tenho notícias urgentes.

   Reconhecendo algo estranho na voz dele, eu faço sinal para que se sente. Chean parece duro como uma rocha.

   ㅡ Diga logo, homem. Pare de tremer.

   Ele engole em seco, abrindo a pasta rapidamente e retirando um dos papéis, me entregando logo em seguida.

   É uma foto, na verdade. Uma humana, acredito. Cabelos marrom-avermelhado, olhos expressivos em um tom de verde intenso, e corpo magrelo. Ergo uma sobrancelha para Chean.

   ㅡ Você vai me trazer essa garota? Já disse que não mato humanos.

   Chean parece que está quase ao ponto de ter um ataque. Ele aponta para a foto, o dedo tremendo.

   ㅡ Não é isso, senhor. Ela... ela é...

   ㅡ Ela é o que, por Taryan? Se não quiser minhas garras no seu pescoço, é melhor falar logo.

   ㅡ Ela é... filha de Althaea, senhor.

   Eu recuo como se tivesse levado um soco, olhando estupefato para o rosto assustado de Chean.

   ㅡ Filha de... isso é impossível, e você sabe. Ela morreu há vários anos.

   Ele assente rapidamente, e seu rosto assume um tom de vermelho ardente.

   ㅡ Eu sei. Mas há os boatos que dizem...

   ㅡ Eu não quero boatos. Quem é essa garota?

   ㅡ Eu já disse, senhor.

   ㅡ Ela não é filha de Althaea. Se a rainha morreu há 500 anos, como poderia ter uma filha humana?

 

   Chean engole em seco.

   ㅡ O Feitiço da Eternidade, senhor. A própria rainha o criou. Ela pode ter usado durante a Guerra e...

   Me ergo da cadeira novamente, esfregando a testa com ainda mais força.

   ㅡ Chega. Isso não é verdade. Eu tenho esperado encontrar a verdadeira filha dela há séculos, e você chega aqui dizendo que é uma humana?

   ㅡ Ela é uma humana, senhor, mas metade deusa. Talvez até tenha poderes que nem conhece.

   Uma ligeira hesitação em seu tom me faz virar para observá-lo.

   Desde que Althaea morreu na Guerra, eu e meus homens temos tentado encontrar a garota que, durante a luta, estivera no ventre da rainha. Quando a abriram, descobriram que nada havia ali a não ser um rastro de magia. A rainha havia usado sua própria magia para esconder a criança no corpo de outra pessoa que ninguém não conhecia, é claro. E durante anos e anos eu a procurei por todos os lados, sabendo que seu poder ㅡ se ela realmente possuísse os poderes de sua mãe, iria me fazer o homem mais poderoso de Taryan.

   Todos conhecem o Feitiço da Troca. Enquanto uma pessoa dá seus poderes, a outra recebe. Eu forçaria a pequena princesa a me dar sua magia. Esse foi o motivo pelo qual tantos deuses e semideuses desistiram de procurar as Joias para, na verdade, correr atrás da joia mais preciosa de todas. Mas passamos séculos correndo atrás de vilas humanas em busca da princesa, e ela nunca foi encontrada.

   E agora... ver essa garota. Olhando melhor para a foto, vejo algumas ligeiras semelhanças com a rainha. Engulo em seco. Talvez não seja verdade.

   Ou talvez seja.

   Virando para Chean, encontro seu olhar com determinação.

   ㅡ Quero que a traga até mim.

   Ele parece chocado, e se lança de pé em um segundo.

   ㅡ Senhor. Eu não...

   ㅡ Traga-a para mim.

 

   Mais uma vez, um dos meus homens está prestes a ter um ataque.

   ㅡ Mas como eu vou fazer isso, senhor? Ela vive nas terras humanas.

   Reviro os olhos e faço um gesto despreocupado com a mão.

   ㅡ Só use algo para assustá-la. Se a conhece tão bem como diz, deve saber o que ela gosta, não é?

   Ele engole em seco. Mais uma vez.

   ㅡ Sim, senhor.

   ㅡ Então tire dela. Entendido? Só retorne ao castelo quando estiver com a humana.

   ㅡ Sim, senhor.

   Quando Chean está quase saindo, chamo-o novamente.

   ㅡ Chean.

   ㅡ Sim?

   ㅡ Você sabe o nome dessa garota?

   Ele sacode a cabeça.

   ㅡ Não. Quando descobri a existência dela, corri para cá. Os outros deuses já conhecem seu paradeiro, até onde sei. Se não formos mais rápidos que eles...

   ㅡ O que ela pode fazer de mal? É só uma humana.

   Chean inclina a cabeça.

   ㅡ Filha da rainha mais poderosa da história de Taryan. Ela não pode ser apenas uma humana inútil.

   Balanço a cabeça, tentando encontrar algum sentido nisso tudo. Se o que Chean falou for verdade, o que eu poderia fazer para chegar primeiro? Os semideuses já estão em movimento. Se já sabem onde ela está, o que faz, e o que irão fazer para pegá-la, é porque essa garota possui poderes.

   Mas quais?

   ㅡ Chean, o que sabemos sobre ela? ㅡ indico a foto na mesa, vendo meu conselheiro encarar o rosto da humana antes de olhar para mim.

   ㅡ Pouca coisa. Ela nasceu de uma mulher que a abandonou com seu filho mais velho, cresceu na casa dos governadores da vila e é assediada pelo filho deles.

   Minha sobrancelha se ergue.

   ㅡ Assediada?

   Ele assente.

   ㅡ Aparentemente, ele a persegue porque ela adora tentar fugir para a floresta.

   ㅡ Floresta? Uma humana? Ela sabe da existência de seus poderes?

   Chean sacode a cabeça.

   ㅡ Não.

   ㅡ Então ela é apenas estúpida.

   ㅡ É o que parece. Mas, até onde espionamos, a garota parece conseguir uns bons animais caçando na floresta. Eu diria que caça até melhor do que alguns daqui.

   Um pequeno sorriso brota em meu rosto. Não parece ser tão ruim, afinal de contas.

   ㅡ Ela pode fazer mais alguma outra coisa?

 

   ㅡ Até onde sei, achamos que ela pode ler limnae.

 

   Minha cabeça se ergue em um rompante e eu o encaro com os olhos arregalados.

   ㅡ O que você acabou de dizer?

 

   ㅡ São apenas rumores, senhor. Não alimente esperanças. Temos a espionado há alguns dias, mas não temos provas concretas de que possa entender a língua morta.

   ㅡ E como chegaram a essa conclusão? De que "acham" que ela pode ler, quero dizer?

   Chean retira outra foto dela da pasta, e eu a agarro com dedos ansiosos.

   ㅡ Vimos isso por sua janela de onde estávamos escondidos. Achamos que é um dos Livros Sagrados da Quimera.

   ㅡ A Quimera foi extinta há séculos. ㅡ digo, tentando visualizar direito o livro que ela está lendo na foto. É antigo e bem grosso, o que faz meu peito apertar. O que diabos essa humana está fazendo?

   ㅡ Não é o que parece. Mas, de qualquer forma, é apenas um livro. Não é como se estivéssemos a invocando ou algo assim.

   ㅡ Ela pode invocar a Quimera.

   Chean sorri.

   ㅡ Não, não pode. O livro é enfeitiçado e foi escondido onde ninguém nunca o encontrou. Além disso, a chave nunca foi vista por Taryan ou fora daqui.

   ㅡ Você consegue descobrir o que ela está lendo aqui? ㅡ pergunto, lhe dando de volta a foto.

   ㅡ Talvez, se a observar por mais alguns dias. Nós percebemos que ela lê uma vez a cada três dias esse livro, e sempre fica olhando pela janela enquanto o faz. Como se estivesse...

   ㅡ Procurando por algo. ㅡ completo, fazendo uma careta. ㅡ Você mencionou antes que tinha uma humana sendo perseguida por Hethan, não é? É ela?

   Chean assente, e eu continuo:

   ㅡ Tire-o das masmorras e o prenda com as algemas enfeitiçadas que o deixe sempre amarrado à mim. Diga-lhe para buscá-la.

   ㅡ Sim, senhor. Aparentemente, os dois já se encontraram várias vezes antes.

   Abro um sorriso malicioso.

   ㅡ Melhor ainda. Ela já o conhece e sabe que não estamos brincando. Então, quem podemos sequestrar para garantir que venha?

   Chean pensa por um instante.

   ㅡ Ela só tem o irmão. Ninguém mais, acredito.

   ㅡ Então será ele. Traga-o para mim e a garota também.

   ㅡ Sim, senhor.

   ㅡ Pode ir.

   Observo-o partir com um sorriso, voltando para a janela.

   Encaro o horizonte, mais precisamente de onde posso ver uma estreita e ligeira camada de sombra cheia de névoa que desponta da última colina que envolve meu reinado. A floresta se inicia ali, um ponto onde dividimos a nobreza de minha casa e o início das tragédias que ocorrem em nossos reinos, consumada pela presença constante de criaturas grotescas que só desejam sangue e carne.

   A humana vive além dessa muralha de pesadelos; sua vida provavelmente fora marcada de alguma forma por alguma criatura que vive vagando sobre suas terras quando não há ninguém olhando. Existe uma pequena ruptura na barreira que é larga o suficiente para que um monstro pequeno passe, de modo que, considerando as informações que já possuo da humana e sabendo que ela é uma tola que gosta de passar perigo para nada, ela já deve ter tido umas belas surpresas com algum deles.

   Sorrindo quando vejo o último raio de sol sumindo no horizonte, fico assistindo a mudança de cores no céu até que as estrelas surgem brilhando no céu escuro.

   Suspiro quando volto para minha mesa.

   Queria poder olhar as estrelas sem me preocupar em tarefas ou serviço.

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