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Quilômetros ao Passado

Após alguns chacoalhões pelas estreitas ruas da cidade o antigo modelo Meteoro finalmente cai na estrada, ele segue a 100km/h cortando uma densa névoa que substitui temporariamente a chuva. Arthur sente as pálpebras pesarem, o cansaço da tensa noite anterior parece ainda estar massacrando seu corpo, sente dores e desconforto muscular principalmente ao redor do pescoço, por vezes se esquece de tudo quando fixa o olhar pela paisagem escura da noite e sua mente segue em  viagem para outros lugares e épocas, neste momento de início da jornada seus pensamentos o remetem a uma lembrança ímpar com sua filha. Arthur se vê em um quarto de hospital com sua esposa Claudia, eles eram obviamente mais jovens e pareciam ansiosos, sua esposa sentada no leito ainda com a camisola que tinha o logo do Hospital e maternidade Santa Casa de Misericórdia, o casal conversa sobre um assunto qualquer sem importância que servia apenas para tentar diminuir a tensão da espera, quando ouviram um choro distante de um bebê e antes mesmo que alguém batesse à porta um olhou para o outro e juntos afirmaram.

            “_É a Sophia!”

            O casal se espantou com o sentimento mútuo de percepção materna e paterna que os qualificavam como pais e começaram a rir de alegria enquanto dois toques na porta antecederam o giro da maçaneta e na sequência viram a enfermeira entrar lentamente e com todo o cuidado do mundo com a pequena e frágil Sophia nos braços, parecia que uma luz divina as acompanhava causando uma emoção única e inesquecível ao casal.

            _Pelo jeito o sonho está bom. – Estas palavras entoadas de forma rouca e aguda trouxe Arthur de volta a realidade como se alguém cortasse um cordão umbilical que o ligava à lembrança, chegou a sentir um mal-estar, pois seu corpo e mente queriam continuar conectados à aquele momento inesquecível. _Desculpe, não quis atrapalhar suas lembranças, é que não temos muito tempo.

            Incomodado por voltar abruptamente a realidade Arthur respira fundo para se acalmar e alinhar com a realidade.

            _Tempo? – ainda um pouco fora de foco ele questiona o anfitrião de forma irritada. _Por acaso já estamos chegando?

            _Neste caso meu caro, o tempo é relativo.

            _Não entendo. – Arthur deixa a irritabilidade transparecer em suas palavras. _Afinal de contas quem é você? Qual o seu nome?

            _ Meu nome é Helvis, como o do rei, só que com “H”.

            _Você é um cara estranho, porque insiste em falar comigo? – Arthur fala enquanto olha pela janela e tenta ver alguma paisagem para se localizar, é em vão, o nevoeiro segue denso impedindo uma visão além do acostamento da rodovia.

            _É que a viagem será longa, o tempo está ruim e não confio no motorista. – Helvis fala olhando diretamente para frente do ônibus, como se conseguisse ver a estrada além do nevoeiro.

            _Eu te entendo, contudo, não estou a fim de conversa, quero apenas ficar com meus pensamentos.

            _Noite ruim?

            _Por favor, não insista.

            _Sabe de uma coisa, a vida é como este ônibus nesta estrada, enfrentamos nebulosidade, tempestade, sol forte, declives, aclives e muitas vezes deformidades, porém, jamais deixamos de seguir em frente porque sempre há um objetivo onde queremos chegar.

            _Porque está falando sobre a vida comigo?

            _Enquanto você viajava em seus pensamentos de olhos abertos pude ver sua expressão de ternura, foi algo bom não é mesmo?

            _Olha! De verdade! Não estou a fim de papo, ainda mais um papo psicológico. – Arthur se levantou para se sentar em outra poltrona mais atrás e percebeu que as poucas pessoas que estavam sentadas espalhadas em poltronas aleatórias eram sinistras, tinham uma expressão de dor no olhar, tal percepção fez percorrer lhe um

            “_Tem algo errado neste ônibus.”

            Arthur ficou parado olhando aqueles passageiros tempo o suficiente para ser notado por eles e quando isto aconteceu, uma mulher de cabelos negros aparentemente úmidos, rosto fino e pálida lhe encarou com os olhos fundos e expressão de raiva, como se estivesse revoltada com algo. Ele desviou o olhar e foi salvo por um puxão.

            _Vamos, sente-se.

            _O que está acontecendo aqui? Arthur estava confuso e assustado.

            _Nada meu caro, as pessoas apenas estão cansadas e não gostam de serem encaradas.

            Arthur ficou ali por alguns momentos observando a estrada pelo para-brisa e algo lhe chamou a atenção, não via veículos ou faróis que viessem no sentido contrário, aquilo o perturbou.

            _Porque não vejo movimento no sentido contrário?

            _Por causa da quarentena, a população da capital está proibida de ir para outros municípios.

            _Nunca vi esta estrada tão escura como agora.

            _A escuridão sempre é passageira.

            _Falou o filósofo. – Arthur debochou de Helvis.

            _O que o faz seguir para a capital em época de pandemia, sua família está lá?

            _Você é insistente, não é? – Arthur parece estar se rendendo ao interesse de seu novo amigo.

            _Como eu disse, a viagem será longa e cansativa, podemos nos desgastar neste cenário ou conversarmos para nos distrairmos um pouco.

            _Sim, tenho família lá.

            _Deve ama-los muito.

            _Talvez.

            _Certeza que sim.

            _Porque esta certeza?

            _Somente o amor pode encorajar alguém a enfrentar o perigo da morte entrando em uma área de quarentena.

            _Pelo jeito você também tem parentes na capital e deve ama-los muito.

            _Ah não! Sou sozinho neste mundo.

            _E porque se arrisca?

            _Sou como um andarilho, nada me detém, nem mesmo um vírus contagioso.

            _Desculpe a sinceridade, mas seu pensamento é bem idiota.

            _Idiota é se culpar por coisas que não teve culpa.

            Ao dizer estas palavras, Helvis despertou algo dentro do coração de Arthur que o incomodou muito. Ele olhou para o anfitrião que retribuía o olhar com um leve sorriso sarcástico no rosto.

            Quando Arthur tentou responder algo foi imediatamente interrompido por um solavanco, em um reflexo olhou para frente e teve a mesma visão do motorista, em meio a forte neblina surgiu uma placa onde estava escrito:

            “Causas, Lanches e sucos”

            Totalmente perdido nos fatos não conseguia ver coerência em tudo que estava acontecendo e vendo. O sinal de pisca à direita iluminava a névoa enquanto que o ônibus reduzia bruscamente a velocidade e ia saindo pela acostamento, deu mais alguns solavancos e entrou por uma passagem de madeira que parecia um portal, na parte superior onde havia uma tora no alto, em posição horizontal com uma placa presa à correntes e esta balançava lentamente rugindo pela ferrugem que aglutinava nos ganchos. E como um passe de mágica, após passarem por aquela entrada a névoa desapareceu, o estacionamento do lugar estava vazio e úmido, como se acabara de chover. O ônibus estacionou em frente a porta da lanchonete, o neon lilás piscava intensamente e fazia um zunido típico, quando a porta do veículo se abriu disparando o ar comprimido. Helvis levantou-se de sua poltrona e percebeu que Arthur continuava inerte, olhando pela janela.

            _Vamos meu rapaz, é hora da parada para esticar o esqueleto. - Arthur a contragosto levantou-se e lentamente seguiu seu novo amigo pelas escadas do ônibus, pensou ser menos desagradável uns minutos com aquele homem estranho e tomando um café do que ficar lá sentado ouvindo o mesmo homem estranho lhe enchendo a cabeça com frases sem sentido.

Eles entraram na lanchonete que estava completamente vazia e à meia luz, parecia um cenário de filme pós-apocalíptico, em frente em forma de arco estava o balcão, com estufas de salgados, uma máquina de café, um recipiente com sachês de mostarda, catchup e maionese, no interior do balcão  estava um aparelho de espremer frutas, um liquidificador e ao fundo uma chapa para preparar lanches, entretanto, não havia ninguém para atendê-los e no ambiente ecoava uma música que o levou aos anos oitenta, “Primeiros Erros – Kiko Zambianchi.

            Que belo lugar hein? – Arthur é irônico em suas palavras quer aproveitar o momento para vingar-se de Helvis, que tanto lhe incomodou até aquele momento. _Tem de tudo, menos alguém que nos atenda. – Virou-se olhando panoramicamente o local e observou que havia um outro ambiente, uma sala com pouca iluminação feita por arandelas e lâmpadas de potência fraca, havia poltronas e uma tela branca enorme que tomava quase toda a parede, parecendo um cinema, olhou para o motorista que estava debruçado no balcão e completou. _Você sempre para aqui?

            O Chofer com sua expressão carrancuda e cheia de rugas olhou fixamente para Arthur e cuspiu no chão com desprezo, ajeitou seu quepe

Na cabeça e virou-se para frente do balcão.

            _Cuidado com Mike, não queira vê-lo irritado.

            Arthur acenou com a mão em um gesto de menosprezo e deixou o local caminhando em sentido ao outro ambiente, por um instante percebeu que os outros passageiros não haviam descido do ônibus, porém, estava tão cansado de tudo aquilo que se negou a fazer qualquer tipo de questionamento ao motorista ou a Helvis. Há sua frente as poltronas estofadas vermelhas eram aprazíveis e cativantes, o local tinha no ar um aroma de lavanda o chão era acarpetado na cor creme, o ambiente lhe fez sentir um desejo enorme de senta-se para experimentar todo aquele conforto. Após se acomodar fechou os olhos e sentiu um relaxamento percorrer lhe o corpo, uma sensação única de paz jamais sentida antes, de repente sentiu uma presença ao seu lado e ao abrir os olhos deu de cara com Helvis.

            _Estava bom demais para ser verdade. – Resmungou Arthur.

            _Fique tranquilo meu caro, vai ficar melhor ainda. – Após Helvis dizer estas palavras as luzes da sala foram diminuindo até se apagarem por completo e a tela branca acendeu, surgiu por alguns segundos um chiado que logo foi substituído por uma imagem de fundo preto e letras brancas centralizadas que dizia:

            “Causas”

            Em seguida um filme começou a rodar com imagens de super 8 e logo iniciou uma contagem regressiva com números centralizados em um “alvo”, ao final da contagem o filme iniciou. Imediatamente Arthur identificou do que se tratava a película, era sobre a sua infância, as imagens mudavam rapidamente, mostrando como flashes vários momentos do pequeno Arthur, brincando de jogar bola na rua com os amigos, empinando pipas, pique-esconde e de repente Arthur se surpreendeu ao ver uma cena em que ele aparece apanhando no segundo ano escolar em uma roda feita por seus amigos, eles zombam e atiram restos de seus lanches chamando o pequeno Arthur de mendigo sem teto. Neste momento seus olhos se encheram de lágrimas, e seu peito apertou forte, pois ele se lembrou de momentos que já havia enterrado em sua memória. Momentos de fome e dor que não queria mais se lembrar, contudo, aquelas imagens o obrigavam a rever aquele momento sombrio de sua infância. Já no seu limite emocional tentou levantar-se para ir embora, sua tentativa foi em vão, era como se lhe faltasse forças para se levantar, e as imagens seguiam em frente, agora mostrava Arthur e dois amigos acendendo fogos de artifício na cauda de um velho gato de rua, o animal fugiu em disparada e gritando como e estivesse sendo mutilado enquanto os jovens riam.

            Helvis fitou Arthur discretamente e percebeu o impacto que aquelas imagens estavam causando a ele. O filme rodava rapidamente ao passo que o Arthur do filme também crescia, entre imagens distorcidas uma passou a rodar normalmente, o jovem estava no quintal dos fundos de sua casa, ao seu lado um galinheiro com as aves mortas, o pequeno portão de madeira e tela estava destruído e seu pai um homem alto e forte que não disfarçava sua brutalidade estava mais à frente segurando seu cachorro e companheiro Bugue pelo couro das costas, o cão estava com o olhar melancólico de quem era inocente, porém, seu pai já havia julgado a culpa e decidido qual seria a punição, com a outra mão ele segurava um enorme facão. O jovem Arthur chorava e implorava pela vida de seu melhor e único amigo enquanto que seu pai enfurecido e sem compaixão ergueu o facão o mais alto que pode, Bugue olhou pela última vez para Arthur, o facão desceu cortando lhe o pescoço e em seguida houve vários golpes até que o cão silenciou.

            Na poltrona vermelha o atual Arthur solta um longo grito “_Nããooo! Seu monstro” – Em seguida passa a chorar compulsivamente.

            Helvis deixa escapar um leve sorriso no rosto, tudo parecia estar acontecendo conforme o seu desejo.

            O filme seguiu, as imagens voltaram a ser distorcidas e quando normalizaram Arthur se viu na adolescência próximo a porta do quarto de seus pais de onde vinham gritos de uma séria discussão. O atual Arthur foi rapidamente se lembrando daquele fatídico dia. A discussão era inflamada por ambas as partes e o assunto era uma traição que acontecera entre o pai e a vizinha. A mãe de Arthur enfurecida pedia que o homem fosse embora enquanto esvazia os armários jogando as roupas dele pelo chão, o homem por sua vez gritava tentando se justificar até que enfurecido começou a esbofetear a mulher com golpes fortes no rosto e no estômago dela, foi quando o adolescente inconformado com o que via em um impulso entrou no quarto pedindo que seu pai tivesse piedade e não agredisse mais a sua mãe, imediatamente o homem parou e o encarou com os olhos flamejantes de ódio e com as costas da mão o esbofeteou jogando-o longe, e não satisfeito, seu pai avançou sobre o rapaz e o espancou com socos e pontapés gritando:

            “_Quem manda aqui?”

            Reviver aquela cena foi o limite para Arthur, sem conseguir se levantar da poltrona, fechou os olhos e tampou os ouvidos enquanto chorava e sua mente chegava aos confins de sua sanidade. Ele percebeu que o som do filme ia diminuindo e a claridade do local foi retornando até que a tela parou de transmitir aquela película maléfica.

            Helvis levantou-se e caminhando de volta para o balcão da lanchonete chamou seu amigo para acompanha-lo. Com a respiração ofegante e certa dificuldade de se levantar, Arthur foi se esgueirando pela poltrona e tentando se recuperar dos momentos difíceis por que passou. Quando chegou na lanchonete sentou-se entre o Chofer e Helvis, percebeu que a iluminação estava mais cintilante, foi quando levou um susto, uma garçonete aparentando ter surgido no nada bateu um copo de vidro na mesa e já foi enchendo pela metade com café.

            _Meu Deus! – Arthur sentia que não suportaria tantas emoções seguidas vezes. _De onde você surgiu?

            A garota o fitou com os olhos e foi se afastando para atender e servir os outros passageiros do ônibus que estavam sentados no balcão foi quando Arthur viu que agora tinha um chapeiro preparando lanches e que os passageiros sinistros do ônibus haviam descido, era como se já estivessem lá anteriormente e ele não os vira. Sentia que tudo aquilo era muita insanidade junta e que estava enlouquecendo.

            _O que está acontecendo Helvis? – Ele estava confuso e queria entender o que estava havendo.

            _Apenas tome seu café. – A resposta de Helvis foi objetiva.

            _Já estou tomando o café, me diga, o que houve? – Seus olhos apresentavam espanto. _Foi um sonho? Um Deja’vú?

            _Foi uma busca na memória.

            _Como assim? Levei anos para enterrar toda essa meleca e você me traz em um lugar que de alguma forma me fez relembrar de tudo novamente.

            _É um processo Arthur. – A voz de Helves está serena e ele segue falando sem olhar diretamente para Arthur. _A vida é complexa e muitas vezes não sabemos lidar com ela, isso nos leva a um caos que culmina normalmente com uma tragédia.

            Após alguns instantes olhando para indiferença de Helvis, Arthur salta do banco.

            _Pra mim chega dessa loucura. – Tomou o último gole do café e saiu andando para o estacionamento.

            O local continuava vazio somente com o velho ônibus Meteoro estacionado na entrada da lanchonete. Arthur atravessou uns cinquenta metros até o lado oposto que dava na saída e enquanto caminhava percebia o quanto era estranho tudo aquilo e lá do lado de fora era pior ainda, “_como era possível a névoa circundar todo o local.”

            Quando chegou no limite entre o estacionamento e a saída para o acesso à rodovia foi surpreendido novamente, além da densa névoa só conseguiu ver que no limite do local que estava e a rodovia havia um imenso desfiladeiro, sem ponte ou qualquer outro tipo de acesso que pudesse tornar viável o retorno à estrada.

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