AIYANA
O céu já começava a perder a cor, tingido por um dourado opaco que logo se dissolveria no azul escuro da noite. As sombras se arrastavam pelas árvores, e o som distante do rio ajudava a manter meu foco enquanto eu deslizava a lâmina da faca pela pedra de amolar, com movimentos lentos e cuidadosos.
Uma das três. A de caça. As outras duas já estavam no lugar, uma presa no interior da minha bota esquerda, a outra, no cós da calça, na parte de trás.
Senti o olhar dele antes mesmo de ouvir a voz.
— Você não devia ir com ele.
Icarus estava de pé a poucos passos, os braços cruzados sobre o peito e aquele cenho franzido que ele achava que escondia o que sentia. Não escondia.
Levantei o
AIYANAMordi o lábio inferior, encarando o cenário à frente.— Precisamos entrar nas casas. Ver se tem algo que conseguimos usar. Comida, água, roupas limpas e armas. — falei, soltando seu braço devagar.Max assentiu, firme, mas não se mexeu de imediato. Ele olhou mais uma vez para o espaço vazio onde o corpo do pai estivera. Eu podia sentir a pergunta queimando nele: o que eles fizeram com ele?Eu também queria saber.Mas agora… agora era sobreviver primeiro.— Vamos. — murmurei, começando a andar em direção à antiga casa dos Roffman.
AIYANAMeus dedos tremeram quando a puxei para fora.Dentro, havia apenas duas coisas.Uma foto, minha mãe sorrindo com uma linda barriga de grávida, os olhos tão vivos que pareciam me seguir e o colar que ela deixou para mim. Um pingente em formato de lua crescente, pequeno, mas meu maior tesouro.Peguei a foto com cuidado, como se o papel antigo pudesse desmanchar sob meus dedos. Por um instante, tudo ao meu redor sumiu. Eu só via ela. O brilho nos olhos, o cabelo solto dançando ao vento. Ela parecia tão viva naquela imagem que meu peito doeu.Depois, peguei o colar e o coloquei no pescoço com um cuidado quase cerimonial. Quando ele repousou sobre minha pele, algo dentro de m
AIYANAA floresta parecia suspeita à medida que nos aproximávamos do refúgio. O ar estava carregado com algo que eu não conseguia definir, como se a própria terra estivesse segurando a respiração, esperando por algo.Maxim andava ao meu lado, os passos ritmados, mas com a expressão tensa, e o silêncio entre nós parecia ainda mais desconfortável do que as palavras que não trocamos antes. A noite, agora completamente escura, engolia tudo ao redor, e apenas a luz da lua filtrava-se pelas copas das árvores, como um farol que nos guiava para o desconhecido.A tensão estava alta. A perda de Azz ainda pairava sobre nós, deixamos seu pequeno corpo no santuário. Alyssa, embora tentando se manter firme, estava quebrada por dentro. Seu olhar se perdia, sua mão tremia enquanto segurava a do irmão de Azz. Eu sabia o quanto ela se apegara aos dois meninos, e a dor estava estampada em seu rosto. A tristeza não era algo que poderia ser escondido.Chegamos a clareira, onde as árvores se abriam, forma
AIYANASaímos antes do amanhecer. A neblina ainda beijava o asfalto quando o refúgio ficou para trás, engolido pela escuridão cinzenta da floresta. Três carros, mas com um mesmo destino: a aldeia dos Sámi. Ou, como os mais antigos ainda sussurram, os selvagens.— Nervosa? — ele perguntou sem tirar os olhos da estrada.Dei-lhe meu melhor olhar de cadela relaxada, mas tenho certeza que pareceu mais com um cachorro carente.— Você não está? — murmurei, encostando a cabeça no vidro gelado.No banco de trás, Alyssa cochilava, o garotinho dormia encolhido como um filhote.Max, Isabela, Birguit e o adolescente, Caleb, esse &eac
AIYANAO dia amanheceu em tons dourados e rosados, mas a tensão no ar parecia tingi-lo de algo mais sombrio. O grande evento da noite lançava uma sombra sobre cada olhar e gesto da minha prima e tia, elas estavam reluzentes e tentei ficar minimamente feliz por elas.A aldeia estava em alvoroço desde cedo. As amigas de Isabela entravam e saíam do pequeno quarto de madeira, carregando vestidos, bijuterias brilhantes e potes de unguentos perfumados. O cheiro adocicado de jasmim e baunilha impregnava o ar, tornando tudo ainda mais sufocante. Eu me encostei no batente da porta, observando minha prima sentada diante de um espelho rachado, sorrindo de forma presunçosa enquanto uma de suas amigas trançava seu cabelo negro e sedoso, que descia como um rio escuro até sua cintura. Cada movimento dela era preciso, ensaiado. Ela sempre soube como cativar a atenção de uma sala inteira, e hoje não seria diferente.— Você está especialmente pensativa hoje, Aiyana. — A voz de Isabela tinha um tom quas
AIYANAA sensação de calor no peito, aquele fogo incontrolável que dançava dentro de mim, ainda estava lá, como se a chama ancestral tivesse se enraizado em meu corpo. Mas o que antes parecia ser um privilégio agora só me trazia agonia.A cada passo que dava, sentia os olhares da alcateia pesando sobre mim, frios, duros, implacáveis. O desprezo estampado em seus rostos me cortava mais do que qualquer palavra. Eles me viam como uma intrusa, uma ameaça. Não pertencente a eles. E, se já não fosse suficiente, eu tinha que enfrentar o ódio de Isabela e a rejeição estampada no olhar de Maxim.Isabela se aproximou com um sorriso venenoso nos lábios, seus olhos brilhando com um ódio latente. Eu podia quase sentir a tensão pulsando no ar.— Você realmente acha que pode simplesmente ser a "escolhida", Aiyana? — disse ela, a voz baixa e cortante, quase como se quisesse me ferir com cada sílaba. — Sua mãe era uma bruxa, e agora você acha que a chama te escolheu por acaso? Não engula essa mentira.
AIYANAO amanhecer estava perto de chegar, mas eu já estava de volta à beira da floresta, caminhando devagar. Meu corpo cansado ainda sentia os efeitos da noite mal dormida, e minha mente estava um turbilhão. A caverna onde passei a noite, embora já fosse um lugar familiar para mim, não me trouxe a paz que eu procurava. Dormir na floresta já não era tão fácil quanto antes. As árvores começaram a clarear com os primeiros raios de sol, mas o ar ainda estava frio, e eu sentia meu corpo arrepiado, não só pela temperatura, mas também pela inquietação. Meu coração batia mais rápido a cada passo que dava em direção à aldeia. Eu não sabia o que iria enfrentar lá, mas sabia que não podia continuar fugindo. Eu precisava voltar.De repente, alguém me pegou pela cintura, puxando-me com força para fora da trilha. Antes que pudesse reagir, uma mão cobriu minha boca, abafando meu grito. Meu corpo entrou em pânico, mas não pude fazer mais nada além de tentar me soltar. Estava sendo arrastada, forçad
AIYANAUma batida suave na porta me acordou, e eu levantei a cabeça, atordoada e ainda com a sensação de que a noite inteira tinha sido uma luta. A batida se repetiu, mais firme desta vez.Já se passou um ano desde que a chama revelou que Maxim e eu somos companheiros destinados, e as coisas só pioraram. Isabela se tornou mais cruel a cada dia, e ela fazia questão de transformar cada minuto que eu passava perto dela em um inferno. Não havia um só momento em que ela não fizesse questão de esfregar na minha cara o quanto ela e Maxim estavam juntos e felizes, com toques constantes e beijos sempre visíveis ou quando ela o fazia dizer que a amava. Ele, por sua vez, me ignorava na maior parte das vezes, mas não fazia nada para impedir Isabela em seus ataques maldosos.Às vezes, eu sentia o olhar dele. Um olhar que parecia me atravessar, e por um breve momento, eu via algo ali. Mas era tão efêmero, tão pequeno, que logo desaparecia. Maxim continuava distante, implacável, como se eu fosse ins