Luiz bufou impaciente, sua lanterna começava a falhar, o rapaz deu alguns tapas no objeto na tentativa de que ele voltasse a funcionar. A luz voltou a brilhar de forma fraca, mas não demorou a desligar novamente. Tomado pela raiva, ele lançou o aparelho contra uma porta entreaberta que, com um rangido desafinado, terminou de abrir. O garoto se aproximou enquanto tentava acostumar a visão ao escuro. No interior do cômodo havia uma cama antiga de metal e sobre ela um colchão velho e desgastado, nas paredes, apesar do mofo, era possível ver os desenhos feitos por alguma criança, eram traços que naquela escuridão o rapaz não conseguia distinguir o que representavam.
Luiz bateu a mão no bolso sentindo seu isqueiro junto do maço de cigarros e entrou no cômodo procurando pela lanterna com o auxílio da luz fraca do fogo que o ajudava a ver os desenhos bizarros feitos com giz de cera. Ele se aproximou olhando com desdém para as imagens sobre a tinta, que um dia havia sido branca, em alguns deles apareciam animais decapitados ou com as vísceras à mostra. A maior de todas as figuras retratava um cachorro pendurado, por uma corda, em uma árvore. O jovem desviou o olhar das figuras macabras voltando sua atenção em procurar sua lanterna. Ele abaixou olhando ao redor finalmente encontrando-a, estava debaixo da cama bem perto da parede. Luiz olhou com nojo para o chão sujo enquanto abaixava-se, deitando no chão, entrando debaixo da cama. Ele esticou a mão tocando na corda presa ao cabo da lanterna, mas o som da porta batendo o assustou. O garoto tentou se levantar batendo a cabeça na cama, alguma coisa segurou seus tornozelos ele tentou chutar quem quer que fosse. Se fosse uma das amigas ela aprenderia a lhe pregar uma peça daquelas, mas antes que pudesse se defender sentiu seu corpo perder as forças enquanto começava a ser arrastado.
***
Tânia assustou escutando o som de uma porta batendo, provavelmente era o idiota do Luiz que estava as batendo já sem paciência com a busca por Jonathan. Não entendia os motivos do outro tender a se comportar como um delinquente e talvez não aguentaria seus desaforos caso não fossem primos, além de amigos. Se não tivessem ido até aquele lugar talvez ele não precisaria agir como um idiota agora. Sabrina olhava com nojo para os equipamentos sobre as mesas ao lado das macas, ela agora concordava com Tânia de que ir até aquele lugar não era uma boa ideia. As paredes do cômodo, onde estavam, eram feitas de pedra o que deixava o lugar ainda mais frio. Tânia olhou o telhado feito de madeira, provavelmente era aquele o motivo do chão ter desmoronado com Jonathan, a estrutura provavelmente apodreceu com o tempo.
— Frio da porra! — As garotas escutaram a voz de Jonathan protestando do outro lado da porta que dava para o escritório do necrotério.
— Graças a Deus! — Sabrina gritou rindo e correndo até a porta a abrindo.
Jonathan levantou com dificuldade ao ver as amigas, estava aliviado que eles não tinham o deixado pra trás dentro daquele buraco frio. O rapaz apoiou na parede sentindo dor. Preocupadas, as duas foram até ele segurando-o cada uma de um lado.
— Acho que meu tornozelo não tá legal. — Jonathan tentou apoiar o pé, mas a dor não permitia que ele deixasse seu peso sobre o membro. — Com certeza meu tornozelo não tá legal.
O garoto fez um muxoxo, se o tornozelo não estivesse doendo tanto ele iria propor para que dessem uma explorada na clínica abandonada, afinal já estavam lá dentro de qualquer forma e não custava nada dar uma explorada no lugar.
— Fica quietinho que a gente te ajuda! — Tânia segurou o amigo para que ele usasse seu corpo de apoio.
— Se a gente achar umas muletas eu aguento explorar isso aqui — o rapaz manifestou fazendo a dupla de meninas rirem.
— Precisa de um médico, isso sim! — Tânia falou enquanto eles voltavam para o necrotério. — Vamos achar alguma coisa pra fazer uma tala. Isso vai ajudar um pouco, eu acho.
Tânia sentou o amigo em uma das macas procurando, entre as coisas que estavam no necrotério, alguma que poderia ser usada como apoio para firmar o tornozelo dele. Nada por lá parecia muito bom ou estava limpo o suficiente para ser utilizado.
— Não tem nada de útil aqui! — Sabrina ergueu os trapos que achou num canto, o pano fedia a urina de rato o que a fez querer vomitar.
— Vamos ter que te carregar garotão. — Tânia riu para Jonathan que estava levemente sem graça.
***
As garotas apoiavam Jonathan pelo corredor enquanto ele cantava tentando afastar o medo que estava sentindo. Não gostava de lugares apertados e sentia-se sufocado naquele corredor entre as duas garotas. De alguma forma, preferia o buraco do que o interior mofo da clínica. As paredes pareciam se aproximar ficando cada vez mais estreito entre elas enquanto seguiam pelo corredor escuro. Tânia parou olhando para a porta que os separavam da recepção, tinha certeza que havia a deixado aberta, Sabrina também parecia inquieta com aquilo. As duas se entreolharam como se uma tivesse lido o que se passava na mente da outra.
— Pode ser o vento! — A garota de cabelos claros falou com a amiga. — A gente escutou uma porta fechando. Lembra? O vento pode ter empurrado.
— É verdade! — Tânia respondeu abrindo a porta novamente.
A recepção estava vazia, as duas garotas ajudaram Jonathan a sentar-se em um canto menos sujo do lugar. O garoto ergueu a perna da calça olhando para seu tornozelo que estava levemente roxo e inchado, sentia o lugar latejar constantemente. Ele gemeu cutucando o local da luxação encolhendo de dor, Sabina foi até o amigo olhando o tornozelo do garoto.
— Assim que o Luiz voltar podemos ir para casa e cuidar disso! — ela falou calma. — E vou pedir à minha mãe para cuidar do seu tornozelo, nem vai ter que ir ao médico.
O celular da garota despertou em seu bolso, assustando a todos. Ela desligou o aparelho olhando para a porta por onde Luiz tinha seguido, logo ele estaria de volta.
***
Mais de quinze minutos haviam se passado desde que o despertador de Sabrina havia tocado e até o momento não tinham tido nem sinal de Luiz. Os amigos estavam começando a ficar preocupados com a demora dele, mas parte deles acreditavam que aquilo poderia ser uma pegadinha de Luiz, era bem do estilo dele fazer aquele tipo de coisa com eles. Sabrina estava sentada ao lado de Jonathan no chão sujo enquanto Tânia andava impaciente de um lado para o outro. Ela queria poder ir atrás de Luiz, mas só perderia seu tempo e sua paciência se aquilo fosse só mais uma das gracinhas do primo. A garota se lembrou do som da porta se batendo, começava a se questionar se a porta do corredor para o necrotério poderia ser a porta que escutaram, o vento naquela noite não estava forte o suficiente para bater a porta com aquela violência e mesmo se estivesse com ventos fortes não havia passagem de ar o suficiente para aquilo. Além disso, tinha a constante sensação de que estavam sendo observados. A garota olhou pensativa para as escadarias.
— Vou ir atrás dele! — falou indo até Jonathan. — Me dá um dos walk talk. Vocês esperam aqui e qualquer coisa nos comunicamos por isso, qualquer coisa mesmo.
Jonathan tirou os dois aparelhos de dentro da mochila entregando um deles para Tânia, a garota fez um teste rápido, não queria ser pega de surpresa descobrindo que ele não estava funcionando quando fosse necessário utilizá-lo. Ela deixou a recepção rumo a ala infantil da clínica.
Aqueles corredores pareciam menos sujos do que os que davam acesso ao necrotério ou à ala administrativa. Ao menos as paredes estavam consideravelmente menos degradadas pelo tempo e o lugar fedia um pouco menos. Tânia parou olhando para o chão a sua frente, havia uma ruptura nos padrões de passos na poeira que era bruscamente interrompido por um traço largo e contínuo. Tânia engoliu em seco parecia que alguém tinha sido arrastado para dentro ou para fora de um dos quartos. Ela respirou fundo abrindo uma fresta da porta, vendo uma cama metálica antiga cercada por desenhos nas paredes, a garota deu um passo em direção ao quarto, mas a porta bateu com força impedindo sua passagem. A garota conteve o grito dando alguns passos parando contra a parede do outro lado do corredor, sua respiração estava pesada e sentia que poderia ter um ataque do coração. Sua lanterna tinha caído no chão e iluminava a porta que acabava de ser fechada, pela fresta debaixo da passagem a garota conseguia ver a sombra de alguém correndo de um lado para o outro do quarto, infelizmente a sombra era pequena demais para ser de Luiz.
— Merda! — murmurou lembrando-se das fotos de Maximiliano. — Merda…
Tânia correu pelo corredor voltando para a recepção, precisava encontrar os amigos e deixar aquele lugar o mais rápido possível. Ela parou respirando com dificuldade por ter corrido. A recepção estava vazia, e não haviam sinais nem de Jonathan ou Sabrina. Tânia segurou o choro beliscando o próprio braço na esperança de que aquilo fosse apenas um pesadelo, mas ela estava acordada. Com as mãos trêmulas a jovem tirou o walk talk do bolso.
— Pessoal, onde vocês estão? — sussurrou apertando o botão de fala. — Precisamos sair daqui, rápido. Alguém por favor me responde, eu estou com medo.
A garota abraçou o aparelho contra o peito enquanto aguardava uma resposta, mas o único som que escutou foi de sua respiração. Seu coração disparou escutando um chiado no aparelho, finalmente alguém iria respondê-la, mas logo o som parou dando lugar ao silêncio. Ela queria gritar chamando por eles, mas não queria que a coisa que estava no quarto a encontrasse, ou pior ainda, o que estava fora do quarto poderia encontrá-la. Tânia olhou para o corredor por onde tinham entrado na clínica, sairia daquele lugar e chamaria a polícia. Ela abriu a porta indo para o corredor bolorento e logo estava na passagem lateral por onde haviam entrado. A garota girou a maçaneta com força, mas ela parecia estar emperrada e mesmo usando toda sua força Tânia não conseguia abrir.
— E agora? — Ela se encolheu ficando em posição fetal sentada sobre o chão.
Lágrimas escorriam em seu rosto, o ar estava pesado para respirar e o desespero tomava conta de seu corpo. Estava presa naquele lugar. Novamente a garota escutou o som de alguma coisa caindo no segundo andar. Apesar do medo, ela levantou, talvez fossem os amigos que haviam subido para explorar a Clínica.
Tânia subiu as escadas usando a lanterna do celular para iluminar o caminho. As pilhas de sua lanterna não estavam funcionando mais, na verdade, tudo naquela noite não parecia querer funcionar direito, era como um pesadelo onde você não tem controle de seu corpo. A garota ficou paralisada escutando o som vindo de uma das portas, ela aproximou-se tentando fazer o mínimo de barulho. A porta de metal estava gelada e Tânia sentiu queimando sua orelha enquanto encostava tentando escutar o som que vinha do outro lado. — Luiz é você? — murmurou pela fechadura — Jonathan, Sabrina?
A tempestade, que havia armado durante todo o dia, finalmente começou a cair. As gotas grossas de água batiam contra o vidro quebrado das janelas respingando para dentro da construção, era uma tempestade violenta como não ocorria a muitos anos naquela cidade. Tânia sentou-se ao lado de Luiz que ainda estava desacordado, tinha conseguido achar um quarto com alguns móveis e arrastou o amigo para colocá-lo sobre o colchão velho. Ele ainda não parecia bem e o fato de estar sem uma blusa apropriada para aquele frio só piorava a situação, estava apenas com um casaco de moletom, parcialmente molhado de sangue.O c&
Sabrina encolheu com medo e cobriu a boca com as mãos evitando que emitisse qualquer som, podia escutar o som dos passos que vinham do corredor, quem quer que fosse estava perigosamente perto, ao seu lado Tânia acordava ainda confusa. Sabrina tapou a boca da amiga temendo que ela fizesse algum barulho enquanto voltava à realidade e que com isso entregasse o esconderijo que até o momento parecia perfeito. As garotas ficaram quietas, Tânia tirou devagar a mão da amiga de sobre sua boca mostrando que já estava desperta, elas se entreolharam temendo quem poderia ser no corredor. Tânia fechou os olhos tentando concentrar na direção que os passos seguiam, assim que estivessem seguras fariam o caminho contrário, Luiz não estava bem o suficiente para sair andando por aí. Qua
Os primos pararam com as costas unidas, garantiriam que não seriam pegos de surpresa por nenhuma das direções, um protegeria a retaguarda do outro. Eles pararam e Luiz virou olhando assustado para Tânia enquanto escutavam o grito de Sabrina vindo de uma das portas. O grito estava tão perto que parecia que ela gritava ao lado deles. Os dois olharam para a porta metálica enferrujada pelo tempo, era de lá que parecia vir os prantos da amiga.— Isso é uma sala de cirurgia. — Luiz falou olhando o letreiro sobre o arco. — Segundo os filmes, a porta ao lado pode ser para os telespectadores. Eu não duvido que esse lugar teria
Tânia correu para o segundo andar constantemente procurando por qualquer coisa que pudesse usar para se defender, ela sabia lutar, mas jamais deixaria aquele homem chegar perto o suficiente para poder aplicar algum golpe. A garota entrou no quarto estofado, teria que pensar em alguma coisa rápido antes que ele viesse atrás dela. A porta abria para o corredor e tinha maçaneta apenas do lado de fora acompanhado de um mecanismo que a travava. Ela sorriu aliviada, pois sua memória não havia pregado-lhe uma peça. — Não me deixe na mão! — Ela sussurrou estudando o mecanismo para trancar a porta.
Tânia olhou enquanto os raios de sol tomavam toda a construção, não morreria naquele lugar. Ela caminhou sentindo o joelho que doía cada vez mais. Agora iluminado, ela conseguia ver mais nitidamente a decadência da estrutura da antiga clínica. As paredes já haviam perdido a tinta e os tacos, do piso, estavam descolando em muitos lugares. Por várias partes era possível ver pichações feitas por jovens que se aventuraram por lá antes deles. Tânia pensava se eles teriam passado por situações como a que eles passaram, ou se apenas suas imaginações lhes haviam pregado peças e por isso o lugar ficou conhecido como assombrado. Torres desceu do carro e acendeu um cigarro fumando-o até o fim, enquanto sua mente vagueava por lugares distantes. O homem jogou a bituca no chão pisando sobre ela. Lembrava-se da primeira vez que tinha ido até aquele lugar, na juventude, junto de sua namorada. Foi quando descobriram quem Maximiliano realmente era, semanas depois a garota foi encontrada morta e o assassino era o seu irmão. Depois daquele dia tinha se convencido de que jamais teria filhos para não correr o risco deles serem como o outro era. Assim foi feito, Torres era um solteirão de quase setenta anos que se recusava a se aposentar para não ter que ficar sozinho em casa. Mas além disso, ele havia se vingado do irmão, naquela noite em setenta e cinco, quando tudo aconteceu na clínica, ele encontrou Maximiliano. EstavRedenção
A cidade ainda dormia tranquilamente e os primeiros raios de sol surgiam no horizonte iluminando a, já desativada, Clínica Psiquiátrica. As paredes de tijolo colonial já haviam perdido parte do reboco deixando vários dos tijolos expostos, parte do teto também já tinha se deteriorado com o tempo e desabado, ou as telhas haviam escorregado e espatifado no chão. Durante décadas aquele lugar tinha sido o responsável por movimentar todo o capital da comunidade ao seu redor, mas tudo mudou depois do incidente em setenta e cinco, naquela época os internos se rebelaram matando vários dos funcionários do lugar, além de muitos dos pacientes. Depois do ocorrido a clínica fechou suas portas e a cidade ao redor tornou-se uma sombra do que era, constantemente asso