A cidade ainda dormia tranquilamente e os primeiros raios de sol surgiam no horizonte iluminando a, já desativada, Clínica Psiquiátrica. As paredes de tijolo colonial já haviam perdido parte do reboco deixando vários dos tijolos expostos, parte do teto também já tinha se deteriorado com o tempo e desabado, ou as telhas haviam escorregado e espatifado no chão. Durante décadas aquele lugar tinha sido o responsável por movimentar todo o capital da comunidade ao seu redor, mas tudo mudou depois do incidente em setenta e cinco, naquela época os internos se rebelaram matando vários dos funcionários do lugar, além de muitos dos pacientes. Depois do ocorrido a clínica fechou suas portas e a cidade ao redor tornou-se uma sombra do que era, constantemente assombrada com os acontecimentos daquele local. A perda da clínica fez a cidade tornar-se uma pequena comunidade sem muitas expectativas para o futuro, e a maioria dos jovens deixavam o lugar para procurar uma vida com mais possibilidades em outras cidades.
Tânia olhou pela janela do quarto, o sol ainda não havia dissipado toda a neblina, que vinha com o tempo frio, deixando o prédio da clínica abandonada ainda mais aterrorizante. A jovem de pouco mais de quinze anos desviou o olhar enquanto colocava a camiseta da escola onde estudava. Sua mente divagava sobre os planos que seus amigos estavam bolando, precisava arrumar uma forma de convencê-los de que invadir aquele prédio não era uma boa ideia. Não por causa das histórias sobre fantasmas que contavam, aquilo não a assustava, não o suficiente para ser seu motivo. Tinha medo de animais que poderiam viver naquele lugar, não queria nem imaginar ser picada por uma aranha ou coisa do tipo. A garota prendeu o cabelo castanho em um rabo de cavalo, precisava ser rápida, pois os amigos tinham planejado tudo para aquela noite.
***
— É sério, Sabrina? — Tânia perguntou enquanto assoprava as mãos na tentativa de aquecê-las.
O dia era sem dúvida um dos mais frios do ano, e a garota só conseguia pensar em qual temperatura chegaria durante a noite. As duas amigas aproveitavam o intervalo entre as aulas para discutir sobre o plano de invasão da clínica durante aquela noite. Por um lado Tânia tentava ser racional enquanto a amiga ria dela ao ponto de seus olhos claros lacrimejarem de rir.
— Não consigo acreditar que você tem medo dessas coisas! Fantasmas não existem. — Sabrina retomou o fôlego, secando as lágrimas no canto dos olhos. — Eu te protejo!
— Não é medo — a garota revirou os olhos —, é receio, lá pode ter muitos animais peçonhentos, é disso que tenho medo. Tenho medo de coisas reais, que podem me machucar de verdade. E também por aquele lugar me provocar arrepios!
A garota falou desviando sua atenção para o prédio onde um dia tinha sido a clínica, mesmo do pátio da escola era possível ver a antiga construção imponente sobre a colina. Na verdade, não havia um único lugar da cidade, de pouco mais de dez mil habitantes, que não desse vista direta para a construção, era como se aquele lugar fosse o rei que todos deveriam adorar e que os vigiava a todo momento. Era praticamente o motivo da existência daquela cidade e não havia uma pessoa que não tivesse um familiar que já trabalhou naquele lugar no passado.
— Conseguiu convencer a medrosa? — Luiz perguntou para Sabrina sentando-se junto das garotas na escadaria acompanhado por Jonathan.
— O dia que alguém me convencer a ser imprudente, dou meus parabéns! — Tânia levantou. — Podem ir sozinhos, prefiro ficar no conforto da minha casa onde nada de ruim vai acontecer comigo.
— Que seja! — O rapaz, de cabelos encaracolados, falou rispidamente dando de ombros. — Ninguém vai sentir sua falta lá mesmo.
Jonathan e Sabrina se entreolharam, os quatro eram amigos desde a infância e em todos esses anos já havia se tornado habitual Tânia e Luiz baterem de frente um com o outro. A garota não entendia como os outros amigos conseguiam ser levados pelas ideias imprudentes que ele propunha e nem conseguia acreditar que uma pessoa com a idade dele ainda tinha aquelas ideias infantis.
— Não vamos brigar — Jonathan levantou abraçando Tânia. —, somos melhores amigos e vamos respeitar a escolha dela de não ir! Se não fosse nossa aposta — olhou para Luiz — eu ficaria em casa também, tá muito frio e de noite vai ficar congelante.
— Isso mesmo, somos todos amigos! — Sabrina acenou com a cabeça. — Nada de briga boba.
***
Tânia entrou em casa trancando a porta, depois das aulas na sexta-feira, ia direto para as aulas de inglês e depois para o jiu-jitsu. Aquele também era o dia em que os pais sempre iam para algum bar com seus amigos, deixando a garota sozinha até tarde da noite. Ela pendurou o casaco atrás da porta e subiu para o quarto. Estava com frio e precisava de um banho quente para superar aquele dia agitado. A garota olhou para o notebook sobre a cama, não estava disposta a se arriscar indo até a clínica desativada, mas, por outro lado, estava muito curiosa sobre a história do lugar. Era como se aquela construção tivesse algum tipo de magnetismo que atraía a atenção das pessoas e não era diferente com a garota, que estava parada observando a clínica.
Tânia ligou o computador indo para o site da biblioteca da cidade, não havia muitos anos que tinham instalado internet no local e as bibliotecárias tinham disponibilizado on-line os jornais antigos da cidade. Não demorou até a garota encontrar algumas reportagens sobre a clínica. Não haviam registros de jornais da época em que ela havia sido fundada, por volta de mil e novecentos, mas haviam várias coisas a partir da década de sessenta. Os jornais sempre afirmavam que o lugar era um dos mais importantes do estado quando estava em funcionamento, tendo profissionais renomados trabalhando lá. Porém, o número de pacientes mortos crescia ano após ano, em consequência dos testes realizados. Pessoas eram encontradas sem membros ou até mesmo com seus crânios abertos para serem examinados ou para serem submetidas a Lobotomias.
A garota respirou fundo evitando olhar pela janela, sentia que a construção a observava, na tela do notebook a foto antiga de um interno da clínica mostrava a realidade daquele lugar. O homem jovem parecia rosnar para a câmera, lhe faltava alguns dentes e o rosto era sulcado pela desnutrição, a pele clara apresentava hematomas arredondados principalmente na cabeça. Era Maximiliano Torres, conhecido por ser o responsável pelo início do incidente de setenta e cinco. Segundo o jornal, ele havia sido preso depois de ser condenado por cometer vários estupros e por canibalismo. Foi alegado que ele não possuía capacidade mental para responder judicialmente pelos seus crimes, sendo então encaminhado para a clínica.
Tânia olhou para outra foto que seguia o texto, nela Maximiliano estava preso em uma cama e amordaçado, mas mantinha um sorriso medonho em seu rosto. A garota sentiu um frio na espinha ao ver a imagem, o homem agora tinha tomado um semblante ainda mais assustador. Segundo os registros da época, não era a primeira vez que tinham problemas com o paciente. Naquela noite, Maximiliano tinha conseguido se livrar das amarras durante uma sessão de Eletroconvulsoterapia, estuprou e se alimentou do médico e da enfermeira que estavam na sala. Depois disso ele saiu pelos corredores libertando os pacientes, o caos logo tomou conta do lugar. E ainda pior, Maximiliano não foi encontrado nem entre os vivos nem com os mortos, sendo, seu paradeiro, um mistério.
Tânia saltou sobre a cama escutando o celular tocar, o coração da jovem disparou com o susto e ela começou a rir de si mesma. Já haviam passado das dez da noite, provavelmente seus amigos já estavam na clínica abandonada. Na tela do aparelho aparecia o nome de Sabrina que estava ligando para a garota.
— Amiga! Socorro, aconteceu alguma coisa com o Jonathan! — Tânia nem ao menos teve tempo de responder e a ligação caiu.
Ela levantou da cama, suas mãos tremiam enquanto tentava retornar a chamada que apenas caia na caixa postal. Ainda com medo a garota desviou o olhar para a janela, na penumbra da noite era possível ver as janelas quebradas e o telhado já apodrecido da clínica. Seus amigos estavam lá e precisavam de ajuda. A garota desceu as escadas perguntando a si mesma o motivo de Sabrina não ter ligado para a polícia, enquanto isso tentava ligar para Jonathan ou para Luiz, porém, o telefone de ambos também estavam desligados ou fora de área. A garota olhou pela casa, mas não encontrava nada que pudesse ser útil para levar até a clínica. Tânia deixou a casa colando um recado sobre a mesa falando que havia ido encontrar Sabrina e que provavelmente passaria a noite na casa da amiga.
***
Uma coruja piava preguiçosa por entre as árvores que circundavam o velho prédio. Tânia desceu da bicicleta olhando para os enormes portões de ferro que haviam sobrevivido ao tempo. A jovem procurou na mochila por seu cadeado, mas ele não estava lá, ela bufou frustrada, aquele não era o tipo de coisa que poderia ter esquecido.
— Merda! — murmurou olhando ao redor tentando encontrar um lugar para deixar a bicicleta escondida.
Depois de conseguir encobrir a bicicleta sob um arbusto, ela voltou para o portão, teria de escalá-lo. A garota segurou a grade de ferro que estava tão gelada quanto o ar noturno. Perguntava a si mesma o motivo dos amigos não estarem lá por perto, mas agora começava a suspeitar de que tudo não havia passado de uma brincadeira de mal gosto da parte deles. Tânia impulsionou o corpo começando a escalar, mataria os três se aquilo fosse uma piada. Logo ela estava no topo do portão e saltou para o chão caindo agachada, agora ainda mais perto da construção sentia mais frio, era como se aquele frio fosse exalado pelas paredes antigas. Tânia abraçou-se tentando tirar da mente as fotos de Maximiliano e seu sorriso apavorante, precisava encontrar os amigos o mais rápido possível para poderem deixar aquele lugar.
O silêncio que reinava na noite foi quebrado e Tânia olhou ao redor assustada, em alguma rua não muito distante dali, uma viatura passava com sua sirene ligada. Depois de um tempo o barulho distanciou-se. A garota sentia-se indecisa, parte dela tinha ficado preocupada que a viatura estivesse indo para a clínica. Ela se questionava o que aconteceria se a polícia a encontrasse lá dentro, e o quanto aquilo poderia influenciar no seu futuro. Por outro lado, seria o fim do problema seu e de seus amigos. A garota suponha que, se a polícia os encontrasse e levasse para casa. Aquilo poderia ser até uma história engraçada para contar aos netos. A garota viu uma luz fraca que vinha da lateral do prédio, parecia a luz de uma lanterna, ela correu até o lugar encontrando Luiz e Sabrina
Luiz bufou impaciente, sua lanterna começava a falhar, o rapaz deu alguns tapas no objeto na tentativa de que ele voltasse a funcionar. A luz voltou a brilhar de forma fraca, mas não demorou a desligar novamente. Tomado pela raiva, ele lançou o aparelho contra uma porta entreaberta que, com um rangido desafinado, terminou de abrir. O garoto se aproximou enquanto tentava acostumar a visão ao escuro. No interior do cômodo havia uma cama antiga de metal e sobre ela um colchão velho e desgastado, nas paredes, apesar do mofo, era possível ver os desenhos feitos por alguma criança, eram traços que naquela escuridão o rapaz não conseguia distinguir o que representavam. Tânia subiu as escadas usando a lanterna do celular para iluminar o caminho. As pilhas de sua lanterna não estavam funcionando mais, na verdade, tudo naquela noite não parecia querer funcionar direito, era como um pesadelo onde você não tem controle de seu corpo. A garota ficou paralisada escutando o som vindo de uma das portas, ela aproximou-se tentando fazer o mínimo de barulho. A porta de metal estava gelada e Tânia sentiu queimando sua orelha enquanto encostava tentando escutar o som que vinha do outro lado. — Luiz é você? — murmurou pela fechadura — Jonathan, Sabrina?Segundo andar
A tempestade, que havia armado durante todo o dia, finalmente começou a cair. As gotas grossas de água batiam contra o vidro quebrado das janelas respingando para dentro da construção, era uma tempestade violenta como não ocorria a muitos anos naquela cidade. Tânia sentou-se ao lado de Luiz que ainda estava desacordado, tinha conseguido achar um quarto com alguns móveis e arrastou o amigo para colocá-lo sobre o colchão velho. Ele ainda não parecia bem e o fato de estar sem uma blusa apropriada para aquele frio só piorava a situação, estava apenas com um casaco de moletom, parcialmente molhado de sangue.O c&
Sabrina encolheu com medo e cobriu a boca com as mãos evitando que emitisse qualquer som, podia escutar o som dos passos que vinham do corredor, quem quer que fosse estava perigosamente perto, ao seu lado Tânia acordava ainda confusa. Sabrina tapou a boca da amiga temendo que ela fizesse algum barulho enquanto voltava à realidade e que com isso entregasse o esconderijo que até o momento parecia perfeito. As garotas ficaram quietas, Tânia tirou devagar a mão da amiga de sobre sua boca mostrando que já estava desperta, elas se entreolharam temendo quem poderia ser no corredor. Tânia fechou os olhos tentando concentrar na direção que os passos seguiam, assim que estivessem seguras fariam o caminho contrário, Luiz não estava bem o suficiente para sair andando por aí. Qua
Os primos pararam com as costas unidas, garantiriam que não seriam pegos de surpresa por nenhuma das direções, um protegeria a retaguarda do outro. Eles pararam e Luiz virou olhando assustado para Tânia enquanto escutavam o grito de Sabrina vindo de uma das portas. O grito estava tão perto que parecia que ela gritava ao lado deles. Os dois olharam para a porta metálica enferrujada pelo tempo, era de lá que parecia vir os prantos da amiga.— Isso é uma sala de cirurgia. — Luiz falou olhando o letreiro sobre o arco. — Segundo os filmes, a porta ao lado pode ser para os telespectadores. Eu não duvido que esse lugar teria
Tânia correu para o segundo andar constantemente procurando por qualquer coisa que pudesse usar para se defender, ela sabia lutar, mas jamais deixaria aquele homem chegar perto o suficiente para poder aplicar algum golpe. A garota entrou no quarto estofado, teria que pensar em alguma coisa rápido antes que ele viesse atrás dela. A porta abria para o corredor e tinha maçaneta apenas do lado de fora acompanhado de um mecanismo que a travava. Ela sorriu aliviada, pois sua memória não havia pregado-lhe uma peça. — Não me deixe na mão! — Ela sussurrou estudando o mecanismo para trancar a porta.
Tânia olhou enquanto os raios de sol tomavam toda a construção, não morreria naquele lugar. Ela caminhou sentindo o joelho que doía cada vez mais. Agora iluminado, ela conseguia ver mais nitidamente a decadência da estrutura da antiga clínica. As paredes já haviam perdido a tinta e os tacos, do piso, estavam descolando em muitos lugares. Por várias partes era possível ver pichações feitas por jovens que se aventuraram por lá antes deles. Tânia pensava se eles teriam passado por situações como a que eles passaram, ou se apenas suas imaginações lhes haviam pregado peças e por isso o lugar ficou conhecido como assombrado.Último capítulo