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Vivendo um pesadelo

Capítulo I

Na vida muitas vezes passamos por situações as quais não aceitamos, e ter

de acompanhar meus pais numa mudança indesejada para um local distante e

desconhecido, parecia algo inconcebível para mim.

Eram quase meados dos anos noventa, meu pai como agrimensor havia

encontrado um vasto campo de trabalho no Estado de Mato Grosso e acabei tendo

que me mudar mesmo a contra gosto, forçado a deixar uma capital planejada e bem

estruturada como Goiânia para viver em Cuiabá.

Entrando no Estado de Mato Grosso pela BR-070, era possível enxergar as

condições precárias da rodovia, o asfalto bastante esburacado e alguns trechos sem

qualquer asfaltamento; curvas fechadas e falta de sinalização, aumentando o risco de

acidentes.

Durante longos períodos da viagem não se passava por uma única cidade

ou parada comercial, apenas se via uma densa floresta as margens da estrada e

conforme caía a noite, mais apavorante ficava a paisagem, iluminada apenas pelo

farol do velho carro de meu pai. O maior medo naquele momento era de que o

veículo quebrasse no meio do nada sem ter para quem pedir socorro, pois raramente

se cruzava com algum outro automóvel.

O walkman já estava sem pilhas para rodar o k-7 e sintonizar uma rádio

por ali seria algo impossível. A claridade no carro era quase nenhuma, o que

dificultava qualquer leitura, então o jeito era tentar dormir.

Não demorou muito para que eu caísse num sono profundo e tempos

depois me visse numa espécie de sanatório, onde minha mãe era acompanhada por

uma enfermeira que lhe segurava pelo braço. A enfermeira pedia que eu me

escondesse de modo que minha mãe não me visse, pois, não andava bem da cabeça.

Naquilo observei logo adiante um tumulo e repentinamente como se transportado

me vi na cova, preso no caixão, e foi quando despertei me sentindo totalmente

sufocado.

O calor sentido já era insuportável, mesmo estando ainda na entrada de

Cuiabá. Estranhei bastante ao chegar num local de altas temperaturas e com quase

total falta de infraestrutura. Uma cidade praticamente abandonada pelo poder

público, muitas construções antigas denotavam a decadência de séculos, havia

sujeira por todos os lados e um odor fétido no ar, de esgoto correndo a céu aberto.

Meu pai havia parado o carro em frente a uma casa simples de madeira,

que aparentava certa ruína e quase completo abandono. A casa ficava em uma

pequena vila de construções muito similares e ruas poeirentas, que apesar de

próxima à região central, estava um tanto isolada, rodeada por mata nativa, de

muitas árvores retorcidas e palmeiras, bem como capim alto entre outras ervas

daninhas, trazendo um ar sinistro ao local.

_Chegamos! _disse meu pai entusiasmado.

_Onde? _perguntou minha mãe perplexa.

Olhei aos arredores e havia apenas algumas casas espalhadas, com cercas

baixas de madeira; sendo possível notar a presença de alguns moradores solitários,

pessoas velhas debruçadas sob o parapeito das janelas ou encostadas ao batente de

portas. Todo o lugar parecia mergulhado em um silêncio quase absoluto, exceto pelo

barulho do cantar de algumas cigarras.

Descemos todos do carro e seguimos em direção a entrada da casa. Meu

pai escolheu entre o molho de chaves que carregava a chave da porta principal e a

abriu. Na casa a princípio pouco se enxergava pela falta de iluminação, mas na

medida em que abrimos as janelas tudo se tornou visível.

A velha casa possuía alguma mobilha empoeirada, mas de madeira

resistente.

_É, terei bastante trabalho por aqui! _foi a segunda coisa que minha mãe

disse.

Voltamos até o automóvel para buscar a bagagem e todas as coisas que

havíamos trazido.

Retirei a bicicleta afixada na parte traseira do veículo para que meu pai

pudesse abrir o porta-malas e a levei para detrás da casa.

Enquanto arrumávamos tudo, meu pai restabeleceu o fornecimento de

energia através do disjuntor e saiu em busca de algo para comermos.

Estava na sala tentando sintonizar a TV, enquanto uma jornalista

comentava sobre um grave incêndio em um ponto conhecido como “Portão do

Inferno”; a falta de chuva e a vegetação ressecada foi a principal causa do incidente.

Foi quando ouvi meu pai entrar pela porta dos fundos e uma discussão vinda da

cozinha.

_Demorou tanto por que Paulo? _perguntou minha mãe agitada.

_Parei para tomar uma cerveja! _respondeu ele com a maior naturalidade

do mundo, como se por anos não tivesse ele sido um alcoólatra incorrigível.

_Vai começar tudo de novo? _ perguntou minha mãe já nervosa. _Não vou

aguentar mais isso! _disse já aos gritos _Aceitei vir para cá na condição de que você

mudasse de vida!

_Ah Diva, esse calorão e não posso nem tomar uma breja? Parei! _falou de

maneira agressiva. Meus pais a bastante tempo não viviam bem, até acreditava que

minha mãe permanecia casada só por conveniência, por não ter condição de manter

uma casa sozinha.

Meu pai não era um homem ruim, mas coberto de vícios, perdera tudo que

possuíamos com jogos, bebidas e mulheres, chegou por muitas vezes a passar dias e

noites fora de casa, retornando somente quando já havia perdido tudo, até as cuecas

falando de um modo mais chulo. Era do tipo que gostava de esbanjar aquilo que

tinha, chegando muitas vezes a fechar um bordel inteiro para festas, regradas a

muita bebida, jogos e luxurias, não saindo da mesa de jogos enquanto ainda

houvesse um único vintém na carteira. Quando bebia se transformava, se tornava

violento e algumas vezes até chegou a me espancar, sendo preciso que minha mãe

ameaçasse chamar a polícia para que parasse de me bater.

_Vocês estão discutindo? _perguntei me aproximando da cozinha.

_Sua mãe com implicância! _respondeu meu pai.

_Pai, quando é que irá mudar suas atitudes, e deixar de fazer um inferno

em nossas vidas? _perguntei em tom áspero.

_Ora, me respeite seu moleque! _falou meu pai já se armando para me

bater.

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A caldeira do diabo

_Vai me bater?! _perguntei alterado. _Saiba que não sou mais aquele menino

que você espancava, não aceito mais essas coisas, não de você!

_Para Fábio, Já chega! _disse minha mãe de forma enérgica e temerosa.

_Ainda defende ele? _perguntei a ela.

_Chega! _gritou minha mãe, com medo que entrássemos em um confronto

corporal. _Não estou defendendo ninguém, só quero que essa discussão seja

encerrada e ponto, irei servir o jantar!

_Comam vocês, vou para o meu quarto! _falei nervoso.

Minha mãe não o defendia, apenas fazia de tudo para que se fosse evitado

um ato de violência doméstica, mas eu, como um verdadeiro adolescente, não era

capaz de compreender tamanha grandiosidade que partia dela, grandiosidade de

alma, que somente elas as mães possuem.

Em minha mochila além do walkman, havia trazido materiais para

desenho e algumas revistas.

Recostei junto à cabeceira da cama já colocando o fone de ouvido, tentando

sintonizar alguma estação de rádio. Encontrei uma emissora de nome Club FM,

onde o locutor acabara de anunciar a canção “Eyes Without a Face (Billy Idol)”.

Comecei a folhear alguns quadrinhos de terror, desenhados por Flavio

Colin, um verdadeiro mestre do desenho, mas não conseguia me concentrar ouvindo

o meu pai reclamar.

_Esse garoto já passou da hora de arrumar um emprego, até quando vai

ficar nesse quarto, sem fazer nada? _reclamou ele.

_Deixa o menino Paulo! _respondeu minha mãe _logo ele voltará a estudar!

_ Qualquer hora lhe dou um nó no rabo e o solto no mundo! __retrucou

enraivecido. Esta era a frase quase sempre dita por ele referindo-se a mim, em

momentos de fúria.

Decidi então dar uma volta para arejar minha cabeça.

_Vou dar uma volta! _gritei, passando por entre meus pais na cozinha.

Sai pela porta dos fundos e subi na bicicleta, saindo sem rumo. Acabei

numa estrada de terra cercada por um bosque. O sol começava a se pôr no horizonte,

lançando os últimos raios por entre árvores e arbustos, causando um efeito de

sombra e dourado intenso. Repentinamente um pé de vento começou a balançar os

galhos e folhas, me causando certo arrepio. Assustado não segui à diante, dei meia

volta, mas a bicicleta derrapou, me jogando no chão. Levantei levemente sujo e

machucado; foi quando ao erguer a cabeça enxerguei vindo à minha direção um

grande morcego, com asas enormes, mais de dois metros de envergadura, as quais a

cada movimento fazia com que ainda mais instabilidade houvesse de minha parte ao

tentar me locomover. Larguei a bicicleta e corri, corri muito rumo a minha casa e já

bastante ofegante consegui nela adentrar, fechando a porta. Por um instante tive

comigo uma falsa sensação de estar seguro, mas logo percebi a escuridão tomando

gradativamente o lugar da luz por todo o ambiente e entrei em pânico. Quase de

imediato me vi envolto por inúmeras mariposas e em completo desespero comecei a

espantá-las. Um estrondo ocorreu e estilhaços de vidro voaram para todos os lados.

Uma espécie de lobo adentrou pela janela principal me fechando contra a parede,

fazendo com que desesperadamente soltasse um grito abafado.

Foi quando ouvi ao longe a voz de minha mãe me chamando.

_Fábio, acorde, está tendo um pesadelo! _falou ela em voz alta já se

aproximando da cama. _Quantas vezes disse para não ler essas porcarias antes de

dormir? _perguntou já recolhendo as revistinhas espalhadas e colocando-as na

gaveta do criado mudo.

Havia pego no sono e nem sequer tinha percebido.

_Tudo bem, mãe, desculpe! _falei com a voz descompassada.

_Quer jantar agora? _perguntou ela.

_Não, penso que não! _respondi.

Minha mãe passou a mão no meu cabelo, seguiu rumo à porta e desligou a

luz no interruptor próximo.

_Boa noite! _desejou ela.

Levantei cismado, fechei a janela e demorou um pouco de tempo para que

voltasse a dormir.

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