Início / LGBTQ + / A Caldeira do Diabo / Visões do passado
Visões do passado

Capítulo II

Os dias transcorreram normalmente, sem grandes acontecimentos, meu

pai havia viajado a trabalho e a paz reinava em casa.

Minha mãe tinha me matriculado numa tradicional escola secundária do

Estado Mato-grossense, uma estrutura imponente, que ficava no “Bairro Quilombo”,

local bastante conhecido na capital e não muito distante de minha casa, cerca de uns

oito minutos de bicicleta ou vinte e sete minutos a pé seguindo por uma avenida de

nome “Presidente Marques”.

Seria minha primeira vez em um curso noturno, numa nova escola, em

uma turma diferente, com novos professores e não sabia o que encontraria pela

frente. Toda mudança traz insegurança, mas com certeza o mais difícil para jovens

como eu era deixar para trás os seus vínculos e recomeçar todo o seu círculo de

amizades; apesar desse definitivamente não ser o meu caso.

Mesmo sendo bastante comunicativo, era reservado nas questões pessoais,

solitário e de poucos amigos. Sempre tive muita dificuldade em socializar, me sentia

diferente das outras pessoas e talvez isso impedisse a minha relação com elas.

Ouvindo “Never Alone (2 Brothers on the 4th floor )” no walkman, já com a

mochila nas costas, saí de bicicleta rumo a escola. Durante o trajeto passei entre

carros e motos, pelas ruas e calçadas, vi pessoas as mais diversas, algumas

sorridentes, outras um tanto fechadas, por fim acabei chegando ao local sem maiores

problemas.

Quando adentrei a escola fiquei bastante impressionado... Aquele ambiente

apesar de um tanto sombrio e antiquado, era de tirar o fôlego. A arquitetura interior

primorosa, tão rica em detalhes, com escadarias, corrimões, lustres e luminárias,

guardando anos de história em perfeita conservação, me deixaram extasiado!

Procurei me informar na secretaria, onde ficava o terceiro ano do colegial e

fui informado que estar inscrito na “Turma A”. Já há alguns minutos havia

começado a primeira aula, mas mesmo assim segui para a sala e me aproximei da

porta que estava aberta, perguntando ao professor que escrevia no quadro:

_Posso entrar?

_Claro, entre! _respondeu ele sem olhar na minha direção.

Quando me sentei logo na primeira fileira de carteiras ele se virou, então

pude vê-lo melhor e fiquei admirado. Um homem que aparentava muita elegância,

maturidade e jovialidade em simultâneo, dono de uma aparência incomum. Alto,

esbelto, peitoral saliente, mãos másculas e queixo alongado, nele havia uma pequena

cova; olhos amendoados bastante expressivos, envoltos por sobrancelhas largas e

bem desenhados. A pele branca permitia que seus cabelos castanhos, levemente

acobreados e lisos, mas do tipo que permanecem fixos quando partidos de lado, se

destacassem. Sua vestimenta era impecável, com camisa branca de manga longa

dobrada, colocada na calça social de tom grafite, o que deixava o cinto a mostra.

Trazia um respeitável relógio no pulso e os sapatos perfeitamente engraxados; foi

inevitável não o medir de cima a baixo, o que certamente ele percebeu, me deixando

ruborescido.

_Pessoal muita atenção, temos um aluno novo na classe! _falou o professor

para todos _Qual o seu nome? _perguntou-me em seguida.

_Fábio Ferrarese! _respondi.

_Pois bem Sr. Fábio, sou Marks Scuro e serei seu professor de história! _disse

ele. _Gosta de história?

_Sim, muito! _falei motivado.

_Seja bem-vindo ao Liceu Cuiabano! _desejou ele com um discreto sorriso no

rosto.

Notei que todos os integrantes da sala me observavam naquele momento,

cerca de uns vinte alunos e em especial um rapaz moreno claro de estatura mais de

mediana para baixa, corpo parrudo, queixo quadrado, cabelos curtos e olhar escuro

penetrante, cingido por sobrancelhas grossas; definitivamente mal-encarado. Fiquei

na minha e busquei não desviar à atenção dos estudos.

Falava o professor sobre os Cátaros, um povo do sul da França que

acreditava em um deus para o bem que governava o espírito e outro para o mal que

governava a matéria; que as boas almas iriam para o céu e as más, e materialistas

reencarnariam em formas animais; devido a essa crença foram julgados e

condenados por heresia nos tribunais da santa inquisição.

Esclarecia que os tribunais do santo ofício eram compostos por eclesiásticos

e foram criados pela “Igreja Católica Apostólica Romana” no período medieval ou

idade das trevas como bem é conhecida. O propósito era investigar, apurar e

condenar os culpados por crimes de blasfêmia, heresia e práticas como a bruxaria e

o homossexualismo. Os suspeitos sempre denunciados por vizinhos, amigos ou um

ambicioso qualquer, eram encarcerados, tinham todos os seus bens confiscados e

divididos entre a igreja. Submetidos a abomináveis sessões de tortura e suplícios sem

fim, deviam confessar suas culpas que sequer sabiam quais eram. Aqueles que

fossem julgados culpados eram entregues ao Estado (governo) para que lhe fosse

aplicada a sentença, quase sempre a morte e na maioria das vezes eram queimados

vivos.

Nunca havia assistido a uma aula de história apresentada com tanta

propriedade.

Em meio à explanação do professor, alguns alunos menos interessados

ficavam de brincadeiras e piadinhas, dizendo quem tinha reencarnado em qual

animal e coisas do tipo.

_Vejam o Ricardo, por exemplo, reencarnou num veado e a Virgínia numa

galinha! _falou Sérgio zoando os colegas de sala.

_E você em um troglodita! _respondeu Virgínia bastante irritada.

_Ai amapô, não abra a boca se não tiver certeza daquilo que fala, pois,

troglodita não era um animal, mas sim um homem das cavernas! _disse Ricardo com

um olhar malicioso, cheio de trejeitos e voz afeminada. _Serginho com certeza está

mais para um cachorrão!

A galera foi à loucura com aqueles dizeres de Ricardo e começaram a

gritar.

_Aí cachorrão. Uhu!!!!

O professor com toda firmeza e autoridade censurou os alunos mais

engraçadinhos.

_Está bem pessoal, já chega! _disse ele com o semblante fechado.

A conversa entre os alunos corria solta, num determinado momento, não

sei ao certo por quanto tempo me desliguei, sentindo como se estivesse fora da

realidade presente, vivendo naqueles dias de perseguição, julgamento e morte.

Numa sala de tortura, havia inquisidores e um prisioneiro, ele tinha as

mãos acorrentadas, e estava em completo silêncio, frente a um sacerdote que

segurava a imagem do Cristo crucificado.

Aquele rapaz havia sido retirado de sua casa acusado da prática

homossexual pelo próprio primo, com a ajuda de sua melhor amiga e de um fiel

lacaio. Descendia de família nobre e era filho único de pais já falecidos. Herdou

grande fortuna, a qual despertou a cobiça e inveja de muitos ao seu redor.

Existia certo hábito praticado pela comissão inquiridora, oferecer uma cruz

para o réu a fim de que a beijasse. Se pedisse perdão pelo que fez beijando a cruz,

morreria queimado mesmo assim, mas ao menos sua alma estaria salva.

_Arrependa-se pela violação que cometeste as leis de Deus e todos os seus

pecados serão perdoados! _disse um dos inquisidores segurando a cruz. _Peça perdão

beijando a cruz e o Senhor todo-poderoso terá misericórdia da sua alma!

O jovem calado se curvou aos prantos diante da cruz a beijando, o mais

estranho é que senti como se fosse eu ali naquele momento. Podia sentir aquilo que

ele sentia e ouvir cada um dos seus pensamentos como se fossem os meus.

_Que jamais tenham paz os animais que me acusaram e me entregaram a

esses demônios que se dizem servos de Deus! _pensou o rapaz com o coração cheio de

rancor e mágoa. Na sua mente visualizou os três traidores que o deixaram naquela

situação envoltos em uma energia densa e matéria escura.

_Podem levá-lo! _disse o inquisidor.

O jovem foi arrastado ao “Pátio do Colégio”, até um palanque montado em

frente a “Igreja de São José de Anchieta”, onde foi amarrado e queimado vivo horas

depois, sem qualquer piedade.

No momento em que lhe era sentenciada a pena, seus algozes longe dali

riam em voz alta e brindavam com o vinho da safra mais cara pertencente a adega

da família da vítima, que agora agonizava entre as chamas.

Um sentimento de dor e sofrimento me tomava conta, mas fui arrebatado

ao ouvir uma voz ao longe, a qual logo percebi se tratar da voz do professor de

história me perguntando algo sobre o conteúdo que estava sendo dado. Foi quando

me vi novamente em sala de aula.

_Fábio, em qual século se deu início a inquisição? Ela realmente aconteceu

no Brasil? _perguntou Marks.

_O quê? _perguntei. _Acho que acabei cochilando!

Alguns alunos acharam graça na minha resposta e soltaram gargalhadas.

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo