Capítulo II

     – “Ele vem vindo! Se prepare!” – sussurrou o vento balançando o pesado véu negro que se fundia na noite escura.

O coração dela galopou, sua respiração acelerou, seu corpo estremeceu. Sua grande jornada estava para começar. A vibração de um novo tempo tomou conta do seu ser por inteiro. Queria rir, chorar, gritar! Virou-se aspirando o ar gelado e tomou o caminho de seu velho arruinado e "assombrado" castelo. Precisava se preparar.

 Não podia correr, sua perna esquerda era mais curta. Mas, ela tinha um pacto com o vento, quando estava agitada, apressada, podia flutuar a centímetros do chão. Esperou seus vinte anos por aquele momento. Sempre soube da chegada daquele homem e o propósito de sua vinda ainda lhe era um mistério. Sabia, porém, da transformação que ocorreria em sua vida reclusa e apagada, na escuridão das sombras, da dor e da angústia.

      Aos três anos de idade, quando descobriu o poder de ouvir o sussurrar do vento com suas premonições, ela soube que um dia ele viria ao seu encontro. Desde então, não fez outra coisa além de esperar e se preparar...

      Entrou no castelo mal iluminado pelas poucas tochas.

      –Olívia...- sua voz era ofegante. − Ajude-me aqui... –ordenou. –Depressa! – ajeitava suas ervas, poções e unguentos numa bolsa de tecido preta.

      –O que é isso? –perguntou a velha mulher olhando-a preocupada. – Está com dores?

      –Eu estaria rindo se estivesse com dores? – perguntou ela num tom vivaz. –Ele vem vindo, Olívia... Escute!

      Ela ficou em silêncio, cerrou os olhos e o vento assoprou o som dos cascos do animal em seus ouvidos. Ela podia vê-los, animal e homem, correndo velozmente pelo prado.

      –Pare com essas charadas e me diga o que está acontecendo? – ordenou a velha, asperamente. – Não esqueça que a bruxa aqui é você! Não tenho dom para adivinhações!

      – Sua velha louca e esclerosada! – disse a bruxa em tom de zombaria. – Minha visão! Ele!

      –Você deve estar delirando, com febre, vou lhe dar suas poções. Anda muito relaxada consigo mesma!

      – Se aquiete! Deixe-me ouvir o vento.

      Olívia ficou com os olhos marejados de lágrimas. A bruxa tinha um dom, mas voltado somente para os outros, jamais para ela. E, sinceramente, não acreditava na vinda do tal "sujeito" que ela comentara durante a sua existência até ali. Receava que essa tal visão jamais se concretizasse, pois ela, a Bruxa de Negro, respirava, vivia para esse dia.

      A velha mulher se arrepiou dos pés a cabeça ao ouvir os cascos do animal subindo a escada da entrada que dava para porta pelo lado de fora. E tudo ficou em silêncio.

      –Eu não disse? – murmurou a bruxa num tom vitorioso. – Prepare-se, vamos fazer uma longa viagem!

      Ela girou nos calcanhares, corpo trêmulo, se dirigiu a porta envelhecida pelo tempo. Respirou fundo por três vezes e abriu-a. Uma lufada de vento entrou e uivou pelo aposento inteiro, e a imagem daquele homem se materializou em frente aos olhos cobertos da Bruxa de Negro.

      Alto, muito alto, ela pensou, como nas minhas visões.

      Os cabelos na cor castanho claro, na altura dos ombros. A barba cerrada, os olhos na cor avelã, frios, impassíveis, mas ela podia ver a dor em sua profundeza. Já, ele, quando a avistou, sentiu nojo, desdém. O pesado véu escondia o rosto que todos diziam ser horrendo. A própria imagem do mal.

      O vestido preto, puído pelo tempo fedia a mato misturado a aromas como ervas. Era simples, já descolorido, a gola ia até o alto do pescoço e ela usava luvas, talvez para esconder a aparência tinhosa das unhas enegrecidas pela sujeira de sua maldade.

       – Entre. – ordenou ela. – Estava a sua espera. – Fez uma reverência que para ele, pareceu deboche.

      Mas espera aí, disse ele a si mesmo, Bruxas falam com voz tão... feminina?

      Ela insistiu com um sinal de mão, e ele entrou. Sua figura era de pura riqueza, as roupas caras, contrastavam com a tamanha pobreza do local.

      O coração daquela criatura era amaldiçoado e cinza, pois nenhum ser humano conseguiria sobreviver num lugar tão miserável quanto aquele, concluiu ele.

      Depois de analisar tudo a sua volta, tentou ver algo dela através daquela roupa negra e imunda, porém, desistiu. Não lhe interessava. Não tinha medo de coisa alguma e um ser repugnante como aquele não lhe causava nada além de asco.

      –Vim buscá-la para salvar a...

      –... sua filha. Eu sei.

Ele escondeu a surpresa. Afinal, ela era uma bruxa e tinha... poderes! Obviamente! Ele precisava acreditar nisso. Era sua última chance.

      –Deve saber também que; caso não faça nada por ela, eu a matarei.

      Ela assentiu em silêncio. Algo o incomodou naquele gesto tão simples e abnegado. E teve certeza quando ela continuou:

      – Sei também que se eu a curar, o senhor deverá se casar comigo.

      – O quê?! Será que eu ouvi bem? Sua bruxa desgraçada! Acha-se no direito de fazer acordos comigo? – ele se aproximou de maneira ameaçadora. Para a surpresa dele, ela levantou ainda mais o rosto numa atitude de afronta.

      –Não é um acordo. É uma troca justa. A vida de sua filha pela sua!

      Ele a pegou pelo braço esquerdo e a sacudiu com tanta força, que ela precisou morder os lábios até sentir o gosto de sangue para não gritar de dor.

      – Largue-me agora! Ou sua filha morre!

      Ele a soltou, bruscamente. Não tinha medo dela, entretanto, era preciso respeitar aquela infeliz que tinha fama por todos os cantos nas redondezas.

      –Preciso de sua proteção... – ela gemeu esfregando o braço.

      Mais uma vez ele se sentiu incomodado. Por quê?

      –E seres como você precisam de proteção?

      –Seres como eu precisam sobreviver, senhor! – ela fez outra reverência, gesto que começava a irritá-lo.

      –Jamais cederei a uma bruxa. A ninguém! E você vai comigo quer queira, quer não, maldita!

      –Ou aceita minha oferta, ou então me mate, agora, e comigo sua filha também!

      Aquele tom não tinha nada de amistoso, amigável ou gentil. Havia ameaça, poder, perigo.

      –Agora sim está falando como uma verdadeira bruxa! Suponhamos que, caso eu aceite sua oferta, é conveniente que saiba desde já, ficará presa no calabouço, e eu evitarei a sua presença horrenda pelo meu castelo. É isso ou nada!

      –Uma vez que minha barganha é essa, senhor, que seja feita a sua vontade.

Era impressão dele ou havia certa humildade nas palavras dela?

      –E eu, por acaso, tenho outra escolha? - rosnou no ouvido dela. Foi até ali num ato de desespero e faria "qualquer" coisa pela sua menina.                               

      Inclusive atender aquele pedido bizarro daquela coisa horrenda.

      –Entretanto, vale ressaltar para que jamais esqueça, se você falhar; morre queimada!

      Ele não poderia ter sido mais cruel. A mulher estremeceu, violentamente, e flutuou alguns metros para trás. Pelo menos foi a impressão que ele teve.

      –É... bruxas têm medo de fogueira. Morre queimada, entendeu bem? – enfatizou num tom maldoso.

      –Preciso levar minha ajudante, Olívia. Ela tem que ir!

      Mateus pensou em dar uns safanões nela, tantas exigências. No entanto, estava exausto demais para isso. E ficou, realmente, surpreso com a certeza de que ela já o esperava, quando viu suas coisas todas arrumadas para a partida. Ela pegou um saco enorme, no qual ele nem se quer se prontificou a ajudar, e foi em frente mancando até o estábulo onde estava seu velho cavalo, enquanto falava baixinho com Olívia, como se confabulassem trocas de maldades uma com a outra.

      Quando ele viu o estado do animal, se impacientou. Era difícil acreditar que aguentaria uma viagem como aquela.

      –Ele mandará buscar você, Olívia. Aguarde com tudo pronto.

      –Você não pode montar. Você sabe, sua teimosa! Seria mais seguro uma viagem numa carruagem! – preveniu a mulher.

      –Ora! – se indignou Mateus que as seguia irritado. – Ela pode ir voando numa vassoura, seria muito melhor e mais rápido. Essa ordinária não merece luxo e sim o que há de pior!

      –Pare de agredi-la! – explodiu Olívia. – Ela não pode andar a...

      –Por favor, Olívia, contenha-se! – sibilou a bruxa entre dentes. –Eu suportarei! Juro que suportarei! Logo você estará comigo, entendeu? Confie em mim!

      Sem entender, e pouco lhe interessava tamanha preocupação por parte da velha, Mateus montou em seu cavalo, obrigando-a a fazer o mesmo, com dificuldade, devido ao peso do corpo e o saco enorme.

      –Eu sou uma bruxa, esqueceu Olívia? Eu tenho poderes! Eu posso qualquer coisa! – sua voz ecoou pela noite num domínio assustador. Para um pobre mortal, não para ele.

                                                  ♥≈♥♥≈♥

      Boa parte do percurso foi feito no mais absoluto silêncio. Ele estava irritado demais para falar com a vagareza do animal dela.

      –O que houve com seus animais? Se é que tinha algum. - ironizou.

      –Foram confiscados. – ela respondeu duramente, tentando esconder suas dores.

      Ele a olhou de soslaio. Sentiu uma pontada estranha em seu peito. Ela emanava uma força assustadora, ao mesmo tempo certa fragilidade.

      –Confiscados por quem? – riu debochado. – No mínimo você devia para alguém.

      – Seu patrão os confiscou!

      Teve a certeza de que algo estava errado com ela, parecia muito rígida em cima do animal.

      –Qual o problema, sua maldita?

      –Nenhum... – ela tinha dificuldade para respirar.

      –No passo que estamos vamos demorar o dobro do tempo! – ele escarneceu. –Minha filha pode estar...

      – Não! Ela estará viva quando chegarmos.

      Mateus não conteve o suspiro de alívio. Precisava acreditar em qualquer coisa que fosse. Até mesmo na palavra daquele ser degradante. Parou irritado ao ter a certeza de que ouviu um soluço. Segurou o cavalo dela, abruptamente.

      –O que há bruxa dos infernos?

      –Me deixe em paz! Dê-me um tempo! – ela ordenou furiosa, e pulou do cavalo entrando na densa floresta. Ela flutuou com a leveza do vento que soprava em seus rostos. Mateus não pôde evitar o arrepio que percorreu suas costas de cima abaixo.

      Passado algum tempo, ela voltou recomposta, andando devagar com a perna manca. Mateus sentiu vontade de zombar, perguntando onde estaria a sua bengala, mas optou pelo silêncio. Algo nela o preveniu a se manter calado. Ela montou o seu animal e eles continuaram a viagem. Não suportando mais a dúvida martelando no seu coração, ele perguntou:

      –Tem certeza de que minha filha ainda...?

      –Sim!

      Ele a estudou abertamente tentando descobrir mais algum indício importante sobre aquele ser estranho. Mesmo tão coberta, a voz que tinha um tom que ia do firme sem perder a suavidade, ela era diferente de tudo que ele esperava ou imaginava encontrar.

      –Por que André mandaria confiscar seus animais?

      Ela riu num tom cínico.

       –O senhor trabalha para ele, deveria saber!

       –Como você sabe tanto sobre mim, sua estúpida?

       –Bruxas têm poder, sabem de tudo. E se vamos continuar convivendo, até o "fim" dos nossos dias, gostaria que me chamasse pelo meu nome ou continue me chamando de bruxa, mas pare de me ofender ou conhecerá minha ira, senhor Mateus! E posso lhe garantir, minha ira é imensa e destrutiva!

      Ele não conteve a gargalhada irônica.

      –Parece confiante demais que eu cumprirei o "seu" trato.

      –Não tenho a menor dúvida!

       Mateus sentiu vontade de saltar do cavalo e estrangular aquela criatura de vez.

      –Uma coisa que eu sei sobre o senhor... – ela sentenciou num tom baixo e perigoso. – é que tem palavra.

      Ele não poderia negar, ela sabia bem mais do que ele gostaria.

       –Por que André confiscaria os animais de uma bruxa? - insistiu.

       –Ele disse que: "Bruxas não precisam comer, já que caçam cobras e sapos, e não precisam de cavalos porque voam em vassouras.”

      Naquele momento, Mateus odiou o patrão, e amigo, por aquela intervenção inoportuna. Se não fosse o confisco, quem sabe ela teria um cavalo melhor do que aquele velho matungo, e com certeza chegariam ao castelo mais cedo.

      Olhou-a novamente em dúvida.

       –E que raio de nome é esse que você tem, além da temida Bruxa de Negro?

      Ela ficou enraivecida com o tom de nojo na voz dele.

       –Para o senhor, continuo sendo a Bruxa de Negro!

       Ela cochichou algo no ouvido do animal, e esse, saiu em disparada o deixando para trás com uma expressão de perplexidade. Ela tinha um nome, e o matungo era uma tremenda enganação.

                               ♥≈♥♥≈♥

      Nos primeiros raios de sol daquela manhã, avistaram o imponente castelo. Ela não pôde evitar uma exclamação, que chamou a atenção dele.

      –Não sabia que bruxas apreciavam coisas belas.

      –O senhor é um total ignorante no que diz respeito às bruxas!

      Mateus gostaria de dar uma boa resposta e acabar com a arrogância daquela maldita, mas estava angustiado demais para ter notícias de sua Ester. Esporeou o cavalo que se pôs a correr veloz.

      A Bruxa de Negro o observou atravessar a ponte e o imenso portão. Dali por diante, começaria a sua missão, escrita há tanto tempo.

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