- O capitão marujo -

O misterioso capitão daquele exuberante navio era um homem que usava botas e camisa igualmente marrons. Da mesma cor era o colete de couro todo coberto por fivelas. Na cabeça um enorme chapéu de aba larga. Tal vestimenta trouxe suspeitas a Ônix de quem seria o adversário. O pirata Pedra-Negra, no entanto, preferiu não cogitar aquela possibilidade. Mas os braceletes, também cobertos de fivelas, eram bem característicos.

O homem, que insistia em ocultar seu rosto sob o chapéu de aba larga, trazia uma lamparina acesa em pleno dia ensolarado.

Ao sinal do capitão, um de seus marujos amarrou a lamparina no parapeito. Só depois o homem no comando finalmente retirou o chapéu e olhou para Ônix.

O capitão era um homem careca. A barba era rala e não tinha sobrancelhas. Seus olhos negros lembravam os de um tubarão. Tinha uma cicatriz que vinha do alto do olho direito e terminava quase na altura da linha dos lábios.

Ônix não podia deixar de reconhecer aquele rosto. Um rosto que ainda o assombrava. O rosto do homem que ele havia cortado a garganta dois meses antes.

– Pedra, papel ou tesoura? – Viúva perguntou, olhando a expressão pálida do capitão.

Ônix havia ensinado aqueles códigos para seus marujos como forma de classificar o perigo de uma situação. Sendo pedra um pouco perigosa; papel um perigo considerável e tesoura uma situação extremamente perigosa.

– Ele responderia tesoura, com certeza – a voz do capitão respondeu a mulher pendurada abaixo dele. Ela não podia vê-lo dali, mas o tinha visto antes de ser amarrada e podia imaginar aquele olhar estreito e desprezível do homem, que continuou falando: – Ônix, porém, ainda deve ensinar que essas classificações são apenas para indicar o quão difícil será sua escapada. Por isso, provavelmente, ele não pode responder. Devia ter criado um quarto código. Um fatal. E fica aqui a minha sugestão: pólvora.

O capitão daquele navio sacou uma pistola, assim como três de seus marujos. Quatro pistolas. Quatro prisioneiros. Ônix não gostou daquilo.

  

O pirata Ônix Pedra-Negra esforçou-se para parecer inabalável. Mas, mesmo que não estivesse acorrentado pelo tornozelo àquele mastro, diante de suas três marujas penduradas pelos pulsos, num navio inimigo, lotado pela escória dos piratas mais sangrentos, ele não poderia encarar o rosto daquele homem, agora capitão, sem sentir o estômago embrulhar.  

O capitão daquele navio já havia sido um de seus marujos. O que os separou foi muito sangue e uma morte.

Ônix Pedra-Negra já havia matado muitos homens dos quais não conseguia sequer lembrar os rostos. No entanto, aquele era uma exceção e o atormentava em pesadelos constantes. Gostaria muito de nunca precisar olhá-lo novamente, tanto quanto gostaria muito de ter evitado aquela morte.  

Ao comando do capitão, no alto do castelo da popa, os quatro marujos armados com pistolas desceram ao convés principal.

O capitão colocou sua mão sobre a lamparina acesa, amarrada pouco antes ao parapeito. Só era possível enxergar a pequena chama lá dentro por haver, na parte de trás, uma placa de metal enegrecido, acoplada para fazer da lamparina uma lanterna. No escuro da noite, isso ajudava a iluminar um único lado do navio, evitando tornar a nau um alvo visível para inimigos do lado oposto. Durante o dia, porém, apenas ajudava a chama a ser visível.

Os quatro marujos não demoraram a descer, mas foi tempo suficiente para Ônix relembrar o fatídico dia em que matou seu próprio marujo e gravou na própria alma aquele rosto que passaria a assombrá-lo.

*

Era uma tarde nublada. Tudo parecia cinza e negro. Até a madeira das centenas de barris a cercá-los estava enegrecida. Era um labirinto por onde Ônix era guiado pelo seu marujo. Tal marujo usava camisa e botas marrons, quase no mesmo tom do colete coberto de fivelas. E todo aquele couro parecia mais escuro naquela tarde sem muita luz. Pedra-Negra também usava um colete de couro marrom, mas o restante da indumentária era preta. O colete, aliás, quase não aparecia debaixo do sobretudo.

Ônix mirava a cabeça careca de seu marujo, de costas para ele. Pensando em como haviam se divertido até aquele dia e o quanto gostava de papear com aquele camarada.

– É por aqui, capitão – falou o marujo, ao se virar por um instante, sorrindo. Mas o sorriso não foi longo. Ônix percebeu que seu marujo percebeu um certo pesar nos olhos de seu capitão e, antes de virar a cabeça para frente novamente, desviou o olhar para baixo; por algum motivo, aquele gesto acentuou a cicatriz na cara dele.

Naquele momento Ônix teve certeza e lamentou profundamente.   

– Eles nos encontrarão aqui e trarão as chaves dos portões leste – o marujo falou quando pararam num espaço mais aberto entre os barris empilhados.

– Não. Não trarão – Ônix falou.

– Eu fiz o acordo, capitão. Acredite – o marujo insistiu.

– Sei que fez. Não sobre chaves, porém. Você vai me entregar a eles.

– Então você sabe? – O marujo tentou mirar os olhos claros nos olhos do capitão; mais de uma vez, por não conseguir mantê-los firmes ali. 

– Sei.

– E veio assim mesmo – o marujo falou, como se fosse ele o traído.

– Se não viesse, não saberia até onde você estaria disposto a ir nesta traição.

– Então o resto da tripulação está cercando a doca. A armadilha que fiz pra você se tornou uma armadilha para mim – o marujo concluiu.

– Não. Fiz questão de não envolvê-los – Ônix falou, virando-se de costas para avaliar o espaço. – Vamos esperar os soldados e ver no que dá. Você não vai querer sacar essa espada agora. Terá mais chances quando os soldados estiverem aqui. Relaxe. Temos algum tempo.

O marujo atrás do capitão embainhou novamente a metade da espada que tirava lenta e silenciosamente da cintura.

– Vai me matar, caso nos derrote?

– Só se você sacar sua espada contra mim – Ônix falou, virando-se para o marujo. – Assim como os soldados. Nunca quero matar. Coloco-me, porém, à disposição da vida, para despachar aqueles que não se entendem bem com ela, insistindo em morrer. Só isso. E sou bom nisso, verdade seja dita.

O marujo não sabia o que dizer e Ônix preencheu o silêncio filosofando, como sempre fazia:

 – O mais interessante é que nunca se sentem tão vivos quanto sentem quando estão morrendo. É um momento de profunda compreensão silenciosa. Não deixa de ter sua beleza. Dramática, mas, ainda assim...

– Seus planos são loucura! – o marujo finalmente explodiu, tentando se justificar. – Não há como derrotar os reis! Principalmente o rei Valdrick!

– Você não sabe o que fala, marujo.

– E você não fala o que sabe, capitão!

– Como sei sobre coisas do Passado Esquecido do velho tempo? – Ônix perguntou, sem esperar resposta. – Isso não importa. Sabe que escondem as nossas raízes e usam isso para nos dominar. Sabe o suficiente para escolher um lado.

– Escolhi o lado que não pode ser derrubado.

– É uma aposta – Ônix disse, forçando um riso ao abrir os braços para recepcionar os soldados.

Os homens da lei se aproximavam silenciosamente como serpentes, cercando as possíveis rotas de fuga.

– Seis soldados? – Ônix perguntou, espantado. – Chego a me sentir ofendido.

– São os melhores. Isso é o que importa – O marujo falou, nervoso. Parecia tentar se convencer de suas próprias palavras.

– Vocês tem certeza? – Ônix perguntou.

A resposta por parte dos soldados foram os novos passos da aproximação. A resposta de seu marujo foi sacar a espada. Ônix já estava acostumado com aquela resposta. Não com a traição. Lamentou.

– Parece que sim – Pedra-Negra falou, sacando as duas espadas. – Vou honrar a escolha de vocês. É o que posso fazer, não é mesmo?

Um soldado atacou. Depois outro e então um terceiro. O plano era o terceiro achar uma brecha entre os dois golpes que ocupariam as lâminas de Ônix. O pirata Pedra-Negra, no entanto, defendeu-se da lâmina da primeira espada, que vinha para atingir seu lado esquerdo, usando a ponta do punho de sua espada direita. Mas, enquanto a empunhadura aparava o ataque, a lâmina cortou o pescoço do soldado. E não apenas, pois, enquanto girou o quadril com a defesa, a espada esquerda, invertida, se projetou para trás num círculo e afundou no peito do segundo soldado. O terceiro foi aniquilado de forma similar ao primeiro, embora ele tenha estocado e Ônix tenha batido forte em inimigo, redirecionando a estocada para dentro, enquanto descia a lâmina na nuca do soldado.

A segunda investida, agora dos soldados restantes, não demorou. Dessa vez, Ônix largou uma das espadas e sacou a pistola. Com precisão milimétrica, o pirata bloqueou um ataque com a lâmina e disparou um tiro certeiro. Repetiu a ação do outro lado e matou o quinto homem. Sua eficiência foi assustadora. 

O último soldado sequer entendeu como a morte o abraçou.

O capitão largou a pistola de dois tiros, já gastos, e inverteu a espada em sua destra, posicionando-a no lado esquerdo do corpo com a lâmina para cima.

O marujo suava muito, mesmo naquela nublada tarde fria. Ônix esperou que ele desistisse, porém o marujo acreditava não poder mais voltar atrás e atacou.

Ônix se defendeu e atacou com se dançasse ao som de uma música mortal. Sua lâmina cortou profundamente o marujo, uma, duas, três vezes e sua ponta perfurou a lateral do corpo já bastante ferido, prometendo ser um ponto final naquela luta. Não foi. Mais um corte foi feito e só então a lâmina pousou na garganta do condenado marujo, para o derradeiro movimento.

O marujo olhava nos olhos de Ônix. Sua expressão era de uma aterradora certeza inevitável. Uma expressão que Ônix guardaria por muito tempo. Uma expressão que o assombraria por muito tempo. Sem nada dizer, porém, colocou um fim naquilo. Apertou a lâmina na carne, enquanto voltava com a espada por onde ela veio, e a garganta do homem foi cortada.

Ônix ajudou seu marujo a deitar e segurou firme sua mão, até não haver mais vida ali.

Quando o marujo morreu, Ônix largou a espada e se pôs a socar um barril, enquanto urrava de fúria. Só parou quando ouviu passos correndo em sua direção. Virou a tempo de ver dois de seus marujos. Um deles, Mulambo, perguntou:

– O que aconteceu capitão?

– O que estão fazendo aqui? – Ônix perguntou, ainda puto.

– Achamos perigoso apenas vocês dois vindo pra cá e viemos também – falou o outro marujo, conhecido como Chapuleta. – Mas nos perdemos neste labirinto. Viemos assim que escutamos os tiros.

Mulambo olhava os corpos caídos, incluindo o de seu camarada, e Ônix explicou:

– Eles nos enganaram. Tentaram nos capturar. Fui rendido – Chapuleta arregalou os olhos ao ouvir as palavras do capitão. Não conseguia imaginar alguém que pudesse rendê-lo. Não sem ele estar bêbado e não estava. Ônix não se importou e continuou mentindo: – Nosso amigo ficou transtornado, se sentindo culpado, provavelmente, por ter confiado nos soldados. Salvou minha vida e derrubou um por um, mas tombou.

Mulambo parou perto do corpo do camarada morto e retirou o chapéu. Lágrimas brotavam em seus olhos. Chapuleta parou do seu lado e colocou a mão no seu ombro, enquanto tirava, também, seu chapéu de palha, parecido com o de Mulambo.

– Entendo sua dor – Chapuleta falou para Mulambo.

– Ele também te devia algumas moedas? – Mulambo perguntou, ainda mirando o defunto.

– Sim – Chapuleta respondeu, sem poder mais conter uma lágrima.

– Ele sempre foi audacioso – Mulambo agachou e colocou o chapéu no rosto do homem morto.

– Sim, era – Ônix afirmou. – Três semanas atrás também apostei com ele. Apostei que não duraria mais dois pares de meses se continuasse com aquela audácia toda.

– É; você ganhou a aposta, capitão – Chapuleta falou. – Mas, assim como nós, não vai receber. A sua aposta, porém, estava condenada desde o início.

– Sim. Esse é o tipo de aposta que se perde quando se ganha, de qualquer forma – Ônix lamentou. – Mas, não vamos julgá-lo. Afinal, não se trata de como você morre e sim de como você vive. Sejamos sinceros: nosso camarada viveu muitos momentos alegres e nos garantiu tantos quanto. E é disso que vamos nos lembrar. Hoje, beberemos a ele e por ele.

Enquanto Ônix recuperava sua pistola e espadas, Mulambo se enveredou pelo caminho de saída. Chapuleta não podia deixar de reparar, porém, no capitão limpando o sangue de suas espadas antes de guardá-las.

– Vamos, marujo – Ônix falou, já de pé. – Mais soldados podem aparecer.

– Tá certo – o marujo concordou. – O que não me parece certo, capitão, é você ter dito que foi capturado e que não derrubou nenhum deles, quando sua espada está suja de sangue. Seria sangue do nosso chapa?

– Não é sangue dele – Ônix falou. – São lágrimas minhas. De muita dor.

– O safado nos traiu não foi? – Chapuleta ousou perguntar.

– Isso não importa. Todos temos nossas fraquezas. Ele pode ter sido péssimo como inimigo, mas foi um ótimo amigo. Ele escolheu um fim e contou comigo para ajudá-lo nisso. E eu conto com você para que a memória dele não seja maculada por um ato de traição pelo qual ele já pagou com a própria vida.

– Tá certo. Não tinha como ser diferente.

– É no que quero, sinceramente, acreditar...

– Bom, por falar em acreditar, capitão, sabe que o irmão dele não vai acreditar nessa história, não é? Ele conhecia o irmão como ninguém e, essa coisa de gêmeos... parece que existe uma ligação. Sei lá.

Ônix ponderou por um instante. Sabia de tudo aquilo. Fisicamente os dois irmãos eram idênticos, exceto pelo lado das cicatrizes. O irmão que ainda vivia havia feito a própria por amar o que agora estava morto. Fez o corte para alegrar o irmão. O fez do lado direito, no entanto, enquanto o outro a tinha no lado esquerdo, pois discordavam em alguns aspectos. O irmão morto era o gente boa. O vivo era o outro lado da moeda, e fazia questão de deixar isso claro.   

– Não devo satisfação a ele. Abandonou minha tripulação para juntar a própria. Se eu tiver de lidar com ele, um dia, o farei. Mas espero, sinceramente, não ver aquele rosto novamente.

*

A vontade de Ônix não prevaleceu. O rosto o perseguia em pesadelos e, bom tempo depois, estava no alto do castelo da popa do próprio navio a mirá-lo depois de tê-lo aprisionado. Não pertenciam ao mesmo homem. Eram idênticos, porém. E Pedra-Negra não saberia dizer qual dos dois poderia gerar maior lamento. O do morto, em seus pesadelos, enquanto dormia; ou do irmão vivo, enquanto estava acordado ali.

Os quatro marujos com as quatro pistolas alcançaram o piso do deck principal. Ônix engoliu em seco. Pólvora lhe pareceu um código realmente adequado.