Capítulo 3

Eu aguardava em pé a chegada de Sara.

Apesar de todas as foto que tinha visto, jamais havia chegado perto dela.

Não sabia se era alta, baixa, gorda ou magra.

Se estava loura ou morena, se tinha tatuagem ou marcas de nascênça.

 A verdade é que não sabia absolutamente nada sobre a mulher com quem passaria os próximos meses.

A cela silenciosa, me deixava inquieta.

Eu não tinha a mínima ideia de como seria nosso primeiro encontro, embora no momento, a sensação que me tomava fosse semelhante ao episódio vivido anos atrás, quando desmascarei um escândalo envolvendo o ex- presidente da Casa da Moeda, que desviava dinheiro da instituição para paraísos fiscais.

Na época, a investigação se transformou em um dossiê, do qual expus contas nas Ilhas Virgens Britânicas, onde foram parar cerca de US$ 25 milhões de “comissões” por fraudes em contratos com empresas de diversos países.

Evidentemente tive a ajuda de um dos "sócios" insatisfeitos do esquema, portanto, quando os veículos de informações caíram em cima do que estava sendo denunciado, precisei sair de circulação e fiquei escondida dentro de uma casa do mesmo tamanho da cela em que aguardava por Sara.

De repente, meus devaneios foram interrompidos quando o barulho de portas sendo abertas indicava que minha entrevistada estava próximo.

Virei para trás onde escutei passos pesados se aproximando, provocando imenso frio na barriga.

A essa altura, foquei em contar até dez, para manter a concentração - um, dois, três, quatro, cinco ... - quando repentinamente, avistei uma mulher com o cabelo preso, unhas laranjas, calça bege e blusa branca.

A pele marcada pelo tempo ou talvez pelo encarceramente, não sabia dizer ainda, assim como os ombros e olhos voltados para o chão, mostravam a submissão de uma adulta supervisionada.

A agente não perdeu tempo e empurrou a dententa 682, número descrito do lado direito de sua blusa, na cadeira a minha frente, praticamente obrigando-lhe a sentar.

Logo em seguida, a oficial se retirou com um sorriso irônico no canto da boca.

Sara estava com um corte recente no queixo e tinha os dedos das mãos machucados.

Os hematomanas na testa poderiam ser resultados de diversas coisas, desde briga com colegas de cela ou até mesmo provocações das próprias policiais de plantão.

- Boa tarde, Sara. -Disse sentando-me na outra cadeira.

Ela então, me olhou, deixando-me totalmente desconcertada.

Poquíssimas vezes na vida, vi olhos como os dela ou fui olhada como era encarada, no entanto, a presa permaneceu calada e percebi que entrava em um mundo incógnito, afinal era impossível saber o que acontecia dentro de sua cabeça.

...

Pigarreei, tentando chamar-lhe a atenção, quebrando o silêncio que pairava na cela, porém não surtiu efeito e tentei novamente. 

- Me chamo Carla Garcia, sou jornalista, - Não estendi minha mão para cumprimentá-la, pois Sara estava devidamente algemada. - escritora e fui informada que você esta ciente da minha vinda hoje. Inclusive...

- Você tem cigarro? - ela me interrompeu abruptamente.

Olhei para aquela mulher, tentando imaginar os motivos pelos quais era indagada daquela maneira.

- Não tenho, desculpe... - ela arfou com minha resposta, disfarçando a irritação ao olhar para o teto cheio de infiltrações..

- Sara... - Chamei novamente, fazendo com que me encarasse. Dessa vez, recebi olhares com muita má vontade. - eu só estou aqui porque você concordou em fazer as entrevistas.

- Por acaso sabe quantas entrevistas vai precisar até terminar o livro?

Fui pega de surpresa, ao constatar que Sara estava bem informada sobre nossos encontros e mesmo que tenha aceitado por livre e espontânea vontade estar comigo duas horas por dia, ainda assim era surpreendente a forma como suas palavras soavam diretas e objetivas. 

E então continuou:

- Você é jornalista? - perguntou friamente.

- Sou, mas atuo hoje em dia, muito mais como escritora.

- Huum... - Ela desdenhou. - Eu sei quem é você. - Suas convicções não me surpreenderam. - é a viúva do jornalista que teve os membros decepados e depois queimado por traficantes, né?

A falta de emoção em sua pergunta, me inquietou na cadeira e mexi ansiosamente as pernas por debaixo da mesa.

Relembrar detalhes do crime de meu marido, provavelmente divulgados na época do crime, me adoecia, por isso jamais permiti que alguém falasse comigo sobre sua morte.

- Sim, sou eu mesma. - respondi com a garganta seca e com o corpo trêmulo sem deixar que ela percebesse.

Ela então sorriu para mim, como se tivesse feliz em saber com quem conversava.

....

Abri a pasta e vários papéis se espalharam sob a mesa, atraindo sua atenção. 

Peguei a caneta azul, uma folha em branco, abri meu laptop convicta de que estava em terreno hostil.

- Sara... - Aguardei alguma reação. - você tem irmãos?

- Dois homens.

- Tem contato com eles? 

- Não.

-  Tem pai? - Perguntava a esmo.

- Não.

- Como assim? Ele tá morto? 

Ela sorriu sarcasticamente.

- Espero que sim. 

Parei de fazer as primeiras anotações e passei a observar atentamente cada expressão em seu rosto.

- Isso é uma garrafa dágua? - Perguntou curiosa.

- Sim.

- Você vai beber?

Tirei a garrafa de dentro da bolsa e lhe entreguei, sabendo que não a teria de volta.

Estava começando a entender, que para ter algumas coisas, teria que fornecer outras.

- A água daqui tem cheiro e gosto de esgoto. É provável que bebamos cocô sem saber.

- E sempre foi assim? - Puxei assunto.

- Bem... - Ela parou para pensar antes de responder. - Estou aqui há quatorze anos... Então sim.  Sempre foi assim.

- E a comida também é ruim?

- A gente acaba acostumando. - Respondeu indiferente. 

....

Por alguns minutos esperei que Sara terminasse de beber os quinhentos mls de água potável de uma só vez.

A impressão que tive, foi que seu corpo magro voltava à vida gradativamente.

- E então...- Disse deformando o plástico da garrafa. - Nossos encontros vão ser mesmo diários? - Assenti com a cabeça. - Por duas horas? - Novamente respondi de modo afirmativo.

- Se você quiser, podemos parar a hora que quiser. - fingindo ser amigável.

- Ah não... - disse ela, se recostando na cadeira. - Parar não vai ser bom para mim. Acredito que tenho muito para dizer e você para fazer.

Imediatamente um arrepio passou por minha nunca.

Sabia que iríamos jogar algum tipo de jogo, no entanto, aguardei avidamente para saber quando Sara começaria a me envolver em seus desenfados.

- É importante que saiba, que a construção desse livro depende de você. Não quero saber qual foi o seu crime. - A encarei modestamente me infiltrando em sua mente através de mentiras. - Quero saber quem é você. Quem é a Sara.

Um silêncio pairou no ar.

Ela parecia pensar cautelosamente no que tinha ouvido e era esse meu principal objetivo, afinal psciopatas não dispensam um tabuleiro de manipulações.

Na minha mente, a única certeza que tinha até então, era que estava frente a frente com um ser humano aparentemente sem nenhum tipo de emoção.

- Muito bem! - Ela exclamou. - Já está na hora de falar sobre o que aconteceu. Não tem como você saber quem eu sou, se não souber o que fiz. Há quatorze anos, tenho escondido algumas coisas dentro do meu peito e fico feliz de certo modo, saber que alguém tem interesse na minha história.

Ela só podia estar brincando, pensei comigo.

Todo mundo queria saber os motivos que a levaram a cometer aquele crime hediondo em dois mil e seis e por mais que ela dissesse que estava feliz por poder contar, mal sabia que a felizarda na verdade, era eu.

- Carla... - A olhei atentamente. Era primeira vez que Sara pronunciava meu nome. - Se você quiser seu livro, terá que trazer coisas para mim. - Houve uma pausa. - Eu não recebo visitas desde que fui condenada. Meus irmãos querem me matar, minha família desapareceu do mapa e meus amigos, meus falsos amigos nunca me mandaram uma carta para saber como estou. Preciso de coisas aqui dentro.

Respirei fundo e imediatamente entendi o porquê de Sara aceitar falar comigo.

Ela não queria explicar porque matou a mãe, ou dar detalhes sobre sua personalidade cruel.

A detenta 682, viu em mim uma grande oportunidade de viver um pouco melhor, dentro do inferno que é uma cadeia federal feminina.

- Tá bom... - Disse por fim, vencida. O que mais poderia fazer? - O que você quer?

Ela sorriu, sabendo que me usaria até o último minuto para realizar seus desejos. 

- Para começar, um pacote de cigarro e um sabonete líquido... Com cheiro de maçã verde.

Soltei um sorriso involuntário. O que Sara me pedia era tão banal quanto o fato dela pensar que conseguiria me manipular.

- OK. Amanhã terá um maço de cigarro e um sabonete líquido com cheiro de maçã verde. Mas agora...

Tentei fazer com que ela entendesse que uma mão lava a outra e as duas lavam a louça.

- Carla... Shi... - Ela sinalizou com o indicador, para que não terminasse minha frase. - Agora, você vai embora e amanhã - ela se aproximou de mim, apenas com a mesa nos separando - e vai voltar com as coisas que te pedi. Se puder confiar em você, poderá confiar em mim.

Dito isso ela levantou, chamando a agente que estava de prontidão na porta da cela, virou as costas e sem dizer mais nada foi embora.

Quanto a mim, continuei sentada, pasma, tendo assimilar o que tinha acabado de acontecer.

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