Capítulo 2

Sentada no sofá aconchegada em meu fiel escudeiro, o gato Athus de doze anos e pêlo branco, eu estudava o caso de Sara Castro.

Havia milhões de fotos suas espalhadas por diversos sites na internet, inclusive em sites dos quais o objetivo principal era retratar o sadismo, a crueldade e a malevolência das pessoas.

A dificuldade em ver as fotografias do crime que Sara havia cometido, era imensa, embora estivesse acostumada com inúmeros casos de maldade.

No entanto Abílio tinha razão.

Eu tinha passado por muitas coisas, perdido meu marido, e por algum tempo, minha cabeça estava à venda por cem mil reais no submundo da corrupção, da pedolfia e do tráfico de drogas.

Contudo, perder Joaquim há dois anos foi a parte mais difícil.

Precisei de um ano sabático, assim como necessitava me afastar de tudo e de todos a minha volta, o que incluía pessoas do trabalho e consequentemente da família.

...

Meu marido também era jornalista.

Nos conhecemos durante o doutorado e a aproximação foi instantânea.

Namoramos durante um ano e meio, e depois resolvemos morar juntos.

A experiência de dividir a vida deu tão certo que decidimos nos casar. 

Joaquim Garcia como era conhecido no ramo, era repórter investigativo.

Foi sequestrado e assassinado quando através de denúncias anônimas, desmantelou uma rede de prostituição infantil em bailes funks cariocas. 

Ele era corajoso, destemido e respeitado entre os profissionais que atuavam no ramo e apesar do modo covarde em que foi morto, sobraram apenas os ossos para enterrar, livros publicados sobre narcotráfico e muita saudade.

...

Portanto, a crueldade existente desde que o mundo é mundo não me assusta.

Pessoas ruins não me assustam, assim como morrer também não me abala.

O problema é quando há envolvimento de pessoas que amamos.

O trabalho de Joaquim era como o meu.

Investigar, denunciar, escrever e encarar de frente o ódio e a ira dos inimigos.

Infelizmente, o homem que amei pagou com a própria vida.

....

Olhando as fotos do crime de Sara percebi, que ela não era diferente das pessoas que mataram meu marido.

A mulher com perfil psicopata, personalidade fria e calculista foi condenada a mais de cem anos de prisão pela maneira como arquitetou a morte da mãe. 

Toda a pesquisa indicava que eu teria pela frente uma longa e árdua jornada, tanto física quanto emocional.

Diante de quase quinze livros publicados ao longo da minha carreira, tive o privilégio de escrever sobre pessoas e acontecimentos reais, temas que sempre foram do meu maior interesse.

Entre eles estava a incrível experiência de uma italiana que entediada com sua vida, largou o marido e o filho pequeno convertendo-se ao Islã.

Após alguns meses arrependida e desejando voltar para casa, a mulher foi mantida em cárcere privado pelos membros radicais da religião.

Foram dois anos tentando retornar ao país de origem até que por fim, foi ajudada por um policial infiltrado entre os radicais.

O livro me proporcionou viajar até o Oriente Médio e aprofundar-me nos costumes muçulmanos dos quais conhecia apenas na teoria.

Outro livro que me trouxe reconhecimento no mundo editorial, foi a história do jovem playboy morador do Leblon, um dos bairros mais caros do Rio de Janeiro, que por causa da paixão avassaladora por uma mulher perdeu absolutamente tudo para a cocaína.

O livro foi um dos mais vendidos no primeiro semestre do ano de lançamento, devido à exposição do precário sistema prisional do Brasil. 

Quando olho para os frutos do meu trabalho nas estantes do escritório, sei que tracei um caminho bem sucedido e que não tenho do que reclamar. 

As oportunidades que me fizeram viajar o mundo, ouvir histórias, ir à lugares desconhecidos e conhecer pessoas fantásticas me transformaram na profissão que sou atualmente.

Com o tempo percebi que cada vez que publicava uma obra, ela não ficava apenas marcada em minha vida, mas também me definia dentro da profissão, onde ganhar dinheiro com tragédia era muito mais interessante do que narrar um final feliz.  

....

Entretanto, com o passar dos anos o ritmo foi diminuindo. 

Não precisava usar nomes e sobrenomes falsos, me esconder em mala de carro ou fingir ser uma prostituta para conseguir matéria de capa.

Entre vários disfarces por furo de reportagem, a época de ouro da minha vida havia trazido resultados benéficos que agora, no auge dos meus cinquenta e cinco anos poderia desfrutar com mais calma.

Vivia das vendas dos livros, de palestras no país inteiro, do programa de rádio semanal e como colunista diária no jornal de Abílio.

Além disso, Joaquim havia aplicado bastante dinheiro quando estava vivo, o que rendeu uma boa quantia mensal durante os últimos anos. 

A vida estava mais tranquila até o caso de Sara Castro cair em minhas mãos.

....

Sara ficou conhecida nacionalmente quando assumiu ter assassinado a própria mãe.

O problema é que o caso teve muita repercussão, pelo modo em que premeditou o crime, embora sem motivo aparente.

A mulher de trinta e seis anos não era viciada em drogas.

Ao que tudo indicava não tinha problemas com a mãe, a ponto de matá-la violentamente.

Ao levantar o seu histórico, viram que tinha ensino superior, falava três idiomas e levava uma vida social tranquila.

Na época, alegaram surto psicótio, doenças psiquiátricas, ou qualquer coisa do tipo, porém nada foi confirmado

Sara Castro era uma pessoa comum que vivia em sociedade, e que tinha inclusive um namorado. 

Durante o julgamento, ela apenas assumia a culpa dando detalhes mórbidos de como havia matado a mãe. 

Quando questionada sobre os motivos reais que a levaram a cometer o crime, mantinha-se calada, ou seja, ninguém nunca soube porque Sara esquartejou a mãe, triturarando algumas partes do corpo da idosa de setenta e um anos no liquidificador e usou os restos mortais para alimentar dois cachorros de raça violenta.

 ....

Abílio havia me mandado relatórios periciais detalhados sobre o crime e o estado mental da assassina, mas nada indicava que ela era mentalmente incapaz, por isso quando foi condenada a levaram imediatamente para a prisão federal feminina de segurança máxima, obrigando assim a me mudar para outro Estado por tempo indeterminado.

Para minha sorte, como um excelente empresário, que investe em um projeto a longo prazo, Abílio alugou um flat totalmente mobiliado e com carro na garagem à disposição, para os meses dos quais me instalaria confortavelmente no sul do país.

Certamente, ele queria como todas as outras vezes, que eu produzisse de maneira promissora um livro que estourasse em vendas e que levasse o nome de sua editora vinculada ao jornal na contracapa. 

Abílio acreditava que publicidade em cima de publicidade significava retorno financeiro e que marketing bem direcionado proporcionava glória e fama para todos os envolvidos no projeto.

Esses casos que sempre aguçavam a curiosidade do público, mesmo sendo de material sórdido e cruel, eram os que mais rendiam financeiramente.

No entanto, o desafio estava dado e assinei os contratos do livro e evidentemente de todos as acessos que a documentação me permitia ter com Sara Castro.

Tomei mais um gole de vinho e adormeci no sofá junto com Athus que me serviu de travesseiro macio.

....

Na manhã seguinte, despertei com Cida abrindo a porta de minha casa. Ela trabalhava para mim há pelo menos cinco anos.

Como dormi profundamente devido ao cansaço mental da noite anterior, mal ouvi quando ela chegou pelo elevador privativo.

- Bom dia dona Carla - Cumprimentou-me retirando a taça e a garrafa de vinho português de cima da mesinha ao lado do sofá.

- Bom dia, Cida. - respondi, espreguiçando-me, enquanto via Athus correr para se aliviar.

Contudo o vôo das dez e quinze me aguardava e por não precisar arrumar mala ou levar móveis para a nova residência, cabia a mim, pegar a bolsa de mão e encarar três horas de viagem aérea até meu destino final.

A primeira entrevista com Sara estava marcada para depois do almoço do mesmo dia, porém uma dúvida estarrecedora me assolva.

Que roupa usaria para entrar em uma cadeia federal?

Parei em frente ao espelho, ouvindo o celular tocar e ao pegá-lo vi na tela o nome de Abílio.

- Carla? - Houve uma pausa. - Sua entrada está devidamente autorizada nos dias e horas que precisar. Estou indo à Nova York hoje à tarde para uma reunião e ficarei sem celular. Me mande um e-mail para informar como foi o primeiro encontro e qualquer coisa, avise as minhas secretárias. Elas estão aptas a atender suas solicitações, principalmente em relação ao novo livro. Boa sorte e nos vemos em breve.

Sem esperar por uma resposta, Abílio desligou o telefone e novamente me vi diante da dúvida do que exatamente vestir.

...............

No aeroporto, o voo atrasou e precisei aguarda ao menos meia hora até seguir para o portão de embarque.

Sendo assim, aproveitei para atualizar as notícias, enviar e responder e-mails e arrumar minha agenda de trabalho.

Permaneceria com todas as minhas atividades, porém agora, trabalharia a distância sem qualquer interferência que pudesse prejudicar o rendimento diario na rádio, que não por coincidência também era de Abílio.

...................

Quando finalmente desembarquei no sul do país, a temperatura era diferente, assim como a umidade e apesar das pessoas serem mais educadas e mais bonitas, procurava motivos para  não me arrepender da escolha que havia feito ao pegar esse intenso projeto.

No entanto, o taxista me levou até o endereço solicitado, um bairro nobre da cidade, onde moraria.

Abílio sabia que por menos disso, voltaria no primeiro avião e rasgaria o contrato.

Em mãos, apenas uma bolsa e uma mala pequena com roupas emergencias, e mesmo sabendo que precisaria de um shopping mais rápido possível, decidi primeiro me instalar calmamente.

O flat de tamanho médio, ficava dentro de um hotel cinco estrelas. Eu teria a meu dispor, lavanderia, emprega doméstica, motorista, cozinheira e muito mais.

Seria fácil escrever no vigésimo segundo andar do prédio mais alto da cidade onde a vista não era tão bonita quando a de minha sala, mas que serveria para inspirar-me para o novo livro.

....

Depois do almoço, quando cheguei no portão principal da peniteciária, um policial armado com colete a prova de balas e parecendo o hulk de tão forte, veio em minha direção.

- Boa tarde, senhora.

- Boa tarde. - Respondi tirando de dentro da bolsa o documento que permitia minha entrada no presídio.

- Só um minuto, por favor.

Ele me encarou alguns segundos, após ver o que estava escrito no papel e voltou para a guarita, onde telefonou para alguém.

O tempo estava fresco, uma brisa de ar que vinha do céu quase nublado indicava que era possível que chovesse até o final do dia.

Algumas nuvens carregadas se formavam com espaçamento.

De repente, vi aquele policial novamente se aproximar.

- Tudo bem... A senhora pode passar. Ali na frente - Ele apontou. - Há um pátio para visitantes. Pode estacionar em qualquer vaga.

Assenti com a cabeça e vagarosamente dei a partida no carro.

Um imenso pátio se abriu a minha frente.

Nele apenas dois ou três automóveis se encontravam estacionados.

Olhei ao redor e parei próximo a uma porta de ferro, onde um cadeado estava preso a tranca.

Ao saltar do carro, o chão de terra sujava gradativamente a barra da minha calça preta social.

Parecia que tinha acabado de fazer um rally à pé.

Torcia para que a blusa branca de manga e o colar de pérolas em volta do pescoço, não chamasse tanta a atenção.

Meu salto alto não se dava bem com todas aquelas pedrinhas repugnantes do chão e a cada passo dado, mais poeira se levantava ao meu redor.

Nas mãos, segurava firme pastas, bolsa com laptop, garrafa dágua, estojo com diversas canetas, celular e claro, um gravador.

Na única porta visíveil, tentei puxar o cadeado, porém sem sucesso e me vi sozinha e impossibilitada de entrar na cadeia.

Decidi bater e o barulho ecoou por todos os lados.

Aguardei alguns minutos começando a ficar impacente, até que de repente, alguém do outro lado começou a destrancar o que parecia ser mais cadeados.

A corrente grossa e bruta girou duas vezes e como um passe de mágica, deparei-me com uma mulher com sobrancelhas franzidas e corpo robusto.

- Carla Garcia? - Sua voz era quase masculina.

- Sim, sou eu. 

- Entre, por favor.

Olhando para trás desconfiada, obedeci aquela agente penitenciária e tão logo me vi em um imenso corredor. 

A passagem era extensa como um retangulo sem fim.

No teto, luzes piscavam por causa de mal contato na fiação elétrica.

As paredes eram de cor cinza, transformando o ambiente enclausurador.

Respirei fundo, me concentrando em cada detalhe por onde passava.

Minha pesquisa havia começado desde o saguão.

O toc toc do meu salto alto, podia ser ouvido há quilometros de distância e parecia incomodar a agente que me guiava.

- Para onde estamos indo? - Perguntei, porém não houve resposta.

Andamos por mais duzentos metros e a agente abriu uma porta de metal imensa que dava para uma cela.

Dentro da cela, havia uma mesa, duas cadeiras, presas ao chão, uma janela pequena com três barras de ferro, próximo ao teto e bancos de cimento perpendiculares.

Olhei para a agente mal humorada e de poucas palavras, querendo entender o que fazíamos ali.

- O diretor reservou essa sala para que você se encontre com a dententa número 682. Vocês terão duas horas disponíveis e as regras são claras. Nada de encostar na detenta. Se for lhe entregar alguma coisa, precisa passar pelo agente de plantão, ou seja, é obrigatório que informe qualquer coisa que venha de fora para ela. Será revistada quando entrar e sair. Sempre terá um agente na porta da cela. Não é permitido celular. A detenta ficará algemada o tempo inteiro. 

A agente durona citava as regras como um robô enquanto em cima da mesa vasculhava todo o meu material.

Certamente entendi que não estava no meu ambiente, ou com pessoas conhecidas.

Ali, eu era mais uma que seguiria as regras independentes da influência que Abílio tivesse para fornecer tudo isso.

- Suas visitas estão marcadas por tempo indeterminado no horário das quatorze horas. Se por acaso houver mudança, o diretor precisa ser informado e consultado.

Quando finalmente, ela se certificou que dentro de minha bolsa e de minha pasta não havia nada de errado ou fora do comum, a agente me encarou com olhos de pantera.

- Por enquanto isso é tudo. Vou m****r trazer a detenta 682. Divirta-se!

Dito isso, saiu da sala chamando outra funcionária quem rapidamente veio ocupar seu posto na entrada da cela.

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