Ela sentia as costas doerem e o estômago reclamar de fome. O que mais a incomodava, ela não saberia dizer. Havia o calor também... Desde quando São Valentim tinha se tornado uma das províncias do inferno?
Tocou a campainha da casa onde almoçava diariamente às quatro da tarde. Almoço? Aquilo estava mais para uma janta, por isso, esperava que fosse logo atendida, até porque, sentia sede também.
Aquela cadelinha feia veio correndo em sua direção. Por mais que estivesse com pressa, afinal, ainda tinha bastante trabalho pela frente, não resistia a lhe dar atenção. Dificilmente era tão bem recebida daquela forma em algum lugar. Especialmente em sua própria casa.
Na verdade, ali, onde estava naquele exato momento, sentia-se muito mais em casa do que em seu próprio lar.
Assim que achou que o carinho era suficiente, levantou-se e virou-se para sua anfitriã.
— Boa tarde, Ângela. Desculpa vir tão tarde hoje, mas tive muito trabalho. — Enquanto falava, seguia a outra mulher até a mesa. Percebeu que ela estava agitada, o que não era normal. Desde a morte do marido, ela simplesmente existia, sem alegrias. Então, podia-se concluir que não era algo muito bom.
— Não tem problema, menina. Sei o quanto você dá duro. — Ângela fez uma pausa enquanto terminava de servir a comida. — E acho, sinceramente, que foi Deus que fez você não chegar aqui mais cedo.
— Por quê? — indagou assim que o prato foi colocado à sua frente e enquanto prendia os cabelos loiros e lisos.
— Sabe quem esteve aqui? — Dando a primeira garfada na comida, ela balançou a cabeça em negativa. Não podia nem imaginar de quem ela estava falando. — Enzo.
Cristine quase engasgou.
— Seu filho?
— E que outro Enzo poderia ser?
Ela ficou calada por um tempo. Sua opinião a respeito de Enzo Azevedo não era das melhores, mas jamais a compartilhara com Ângela, afinal, ele era seu filho.
— E o que ele queria?
— Pelo visto vai ficar por um tempo em São Valentim. — Cristine viu Ângela suspirar, parecendo bastante decepcionada. Parecia também hesitar antes de dizer o que viria a seguir. — Acho que ele ainda está com aquela ideia fixa de se vingar de você...
Ah, daquela vez Cristine realmente engasgou.
— De mim? Depois de tanto tempo? Quantos anos ele tem? Dez? Sei que não fui nada legal com ele no passado, mas eu era uma criança boba. Não sou mais aquela garota. Nem poderia ser. — Por mais que odiasse demonstrar fragilidade, foi difícil evitar uma expressão triste. Como que é que sua vida pôde ter desandado tanto?
Cristine sentiu a mão fria de Ângela sobre a sua, e seu coração se encheu de ternura. Aquela mulher era como uma mãe para ela. Pena que nem todos sabiam valorizar a sorte que tinham.
— Eu espero que ele não te magoe, querida.
Cristine sorriu.
— Enzo não me conhece mais, Ângela. Ele acha que vai chegar aqui e encontrar a menina fútil e sem coração que conheceu, mas acho que vai ter uma baita surpresa.
Cristine esperava que estivesse certa, que nada no mundo pudesse magoá-la mais do que a vida já vinha fazendo. Esperava que não fosse ela a ser surpreendida.
***
Enzo passou uma boa parte da tarde resolvendo suas pendências burocráticas. Pegou a chave da casa onde moraria e deu uma boa olhada nela. Era grande, embora não fosse nem um pouco luxuosa, principalmente se comparada à cobertura onde morava no Rio de Janeiro, em Ipanema, de frente para a praia. Contudo, foi o melhor que pôde conseguir em São Valentim, ainda mais mobiliada. E também estava limpa, pois ele tinha pago a mais por isso.
A primeira coisa que fez, depois de retirar os lençóis que protegiam alguns móveis, foi sentar-se no sofá e ligar seu notebook. Tinha muitos e-mails para responder.
Realmente tinha conquistado muitas coisas desde que saíra de São Valentim, mas nada veio sem esforço, sem luta. Assim que completou dezoito anos e se mudou para o Rio de Janeiro, com a herança de seu avô, fez faculdade de informática enquanto, ao mesmo tempo, criava seu software de contabilidade.
Foi um trabalho duro que compensou cada segundo. Em pouco tempo conquistou clientes em toda parte do país, e em dois anos o software estava sendo exportado para empresas internacionais. Hoje, ele comandava a empresa de forma tranquila, sem muito estresse, pois tinha funcionários muito competentes, o que facilitara a volta para sua cidade de origem por tempo indeterminado. Podia se dar ao luxo de trabalhar por um tempo por acesso remoto e resolver tudo de casa. Talvez precisasse ir ao Rio uma vez por mês, mas não teria nenhum problema nisso.
Depois de trabalhar um pouco, então, tomou um bom banho de água fria, já que estava um dia quente e seco, vestiu uma roupa confortável e saiu.
Apesar de estar ansioso para colocar seu plano em prática, naquele primeiro dia iria fazer de tudo para não esbarrar em Cristine. Estava cansado da viagem, sem muita paciência e um pouco abalado depois da visita à mãe e o tratamento frio que recebeu. Então, não queria colocar tudo a perder.
Eram oito horas da noite quando passou pela porta de sua casa, decidido a caminhar um pouco. Desceu a rua residencial e em cinco minutos estava no centro comercial de São Valentim. Nada tinha mudado consideravelmente. A igreja tinha recebido uma nova pintura, assim como os murinhos da praça logo em frente, que estavam todos grafitados com desenhos muito bem feitos por algum artista local. Havia algumas lojas novas, principalmente restaurantes e lanchonetes, que pareciam bem movimentadas. Contudo, por melhor que parecesse a aparência da comida e o cheiro, Enzo não estava com fome.
Na verdade, só havia uma coisa que queria fazer naquele momento. Sabia que visitar este lugar que tinha em mente iria lhe fazer sofrer, mas precisava descobrir quem o tinha comprado, quem estava tirando lucro com o trabalho que era a vida de seu pai. Talvez Enzo conseguisse convencer a pessoa a vendê-la para ele. Por mais que não fizesse ideia do que poderia fazer com uma oficina mecânica, já que a única máquina na qual sabia mexer muito bem eram os computadores.
Assim que chegou na oficina, estranhou. A fachada permanecia a mesma, inclusive o nome e a placa: Motores do Zé. Enzo sempre achou aquele nome péssimo, mas o pai ria todas as vezes que ele fazia tal comentário, alegando que não precisava de criatividade, precisava de força no braço e as ferramentas certas.
Com um pouco de cautela, entrou, e a primeira coisa que viu foi um par de pernas femininas, cujo corpo estava todo debaixo do carro, deitado sobre a esteira carrinho. Ela usava uma calça jeans surrada e suja de graxa, mas que aderia lindamente em suas pernas magras e bem feitas. Os pés estavam calçados com um tênis feminino lilás, e os pés eram pequenos e graciosos, e batiam no chão no ritmo de uma música country americana. Ele podia ouvir também uma voz doce, quase afinada, cantarolando bem baixinho.
Enzo chegou a sorrir, mas não podia negar que estava intrigado com aquela mulher. Ela trabalhava ali, na oficina de seu pai, ou a tinha comprado e mantido o mesmo nome?
Ansioso para tirar a dúvida, ele pigarreou para anunciar que havia alguém ali. Imediatamente ela largou a ferramenta que usava no chão e arrastou a esteira para sair de debaixo do carro.
E foi então que o queixo de Enzo caiu.
Já fazia bons doze anos que não a via, mas ela não tinha mudado quase nada. Eram os mesmos olhos azuis claros e desconfiados, a mesma pele alva e perfeita, apesar das manchas de graxa, a mesma postura altiva, embora estivesse sem as roupas de marca de sempre.
Sim, ele a reconheceria em qualquer lugar. E por mais que odiasse admitir, ela estava ainda mais linda do que quando a viu pela última vez. Estava sensual e feminina, mesmo naquelas roupas básicas e sujas.
Ali na sua frente estava exatamente a pessoa que queria evitar encontrar naquela noite: Cristine Moura. A única mulher que amou na vida, mas que agora odiava com todas as forças.
Cristine sabia que era bonita. Por mais que já não se arrumasse tanto quanto antes, e por mais que já não usasse seus atributos físicos para conquistar as coisas que queria e nem para magoar as pessoas, tinha noção de que ainda provocava olhares libidinosos por onde passava. Porém, não esperava deixar um homem sem fala daquele jeito, estando toda suja, descabelada e sem maquiagem. Tudo bem que havia toda a questão do fetiche por ela ser mecânica, mas acreditava que aquele ali estava exagerando um pouco. Ainda mais por se tratar de um homem devastadoramente bonito. E olha que andava cansada demais para prestar atenção nessas coisas. Do alto de seus prováveis um metro e oitenta — pelo que ela podia calcular, já que deveria haver um
Foi como se um furacão de proporções catastróficas o tivesse atingido. Enzo sabia que ainda não estava pronto para se encontrar com Cristine, mas não fazia a menor ideia que talvez não estivesse pronto nunca. Não para aquela mulher que surgiu na sua frente, completamente diferente da que um dia conhecera. A aparência não tinha mudado muito, embora, é claro, não contasse em encontrá-la toda suja de graxa, trabalhando duro na oficina mecânica de seu pai. Era como se o mundo tivesse girado de ponta cabeça. O convite para levá-la para sair surgiu de forma totalmente repentina, como um pequeno momento de fraqueza. O que era extremamente compreensível, afinal, a mulher era uma beldade, porém, depois que ela se afastou par
A vida era uma boa de uma filha da puta. Podia jurar que se havia alguém que ela fazia questão de foder todos os dias, esse alguém era Cristine. Paulo correu o máximo que pôde, chegando a avançar alguns sinais vermelhos, e em poucos minutos chegaram em sua casa. Assim que ele estacionou em frente ao gramado mal cuidado, ela abriu a porta do veículo, com ele praticamente em movimento, e saltou, sem querer perder tempo. Não demorou muito para ouvir Paulo saltando também e aproximando-se, enquanto ela buscava as chaves dentro da bolsa. — Você não precisa entrar comigo — falou, quase choramingando. — E vo
Todo o seu corpo doía na manhã seguinte. Mas isso não podia ser motivo para não ir trabalhar. Tinha muitas coisas a fazer e não podia deixar a oficina fechada. Acordara de madrugada, às três da manhã, caída no chão da sala, quase sem conseguir se mexer. Por sorte sabia que Igor não tinha lhe quebrado uma costela ou teria que ir ao hospital. Já havia acontecido uma vez, então ela sabia muito bem como era a dor. Um hematoma enorme na cintura e outro no rosto foi o que lhe restou como lembrança. Ao menos serviria para que aprendesse a nunca mais se meter com alguém bem maior e mais forte do que ela. Estava trabalhando em um carro, com o capô aberto e verifican
Aquela porra de pensamento iria martelar em sua cabeça por um bom tempo. A imagem dos machucados de Cristine também ainda estava vívida em sua mente. E isso era uma merda. O que realmente precisava era odiá-la e não preocupar-se com seu bem estar. Deveria pensar que era providência divina, que ela merecia tudo aquilo, mas não era assim tão cruel ou covarde. Mas era curioso. Ou talvez essa não fosse a palavra certa. Talvez estivesse extremamente intrigado. Então, levando em consideração o que Marcela tinha dito sobre a lealdade da cidade para com Cristine, Enzo foi procurar a única pessoa que ficaria ao seu lado. Ao menos ele pensava que sim, embora não pudesse colocar mais a mão no fogo depois de uma recepção tão h
O dia tinha sido pesado. Não que tivesse sido muito diferente de qualquer um outro, mas talvez estivesse mais cansada. As costas doíam, os machucados também, e sua cabeça parecia prestes a explodir. Contudo, a última coisa que queria era ir para casa. Nem mesmo a promessa de um colchão macio e quentinho, além de um banho bem mais relaxante do que o que tinha acabado de tomar no quartinho da oficina pareciam capazes de mudar sua opinião. Felizmente tinha uma ótima amiga, que sabia exatamente quando ela precisava de apoio e a chamava para tomar uma cerveja gelada depois do expediente. Claro que os acontecimentos do dia anterior a tinham deixado preocupada, pois com certeza haveria uma retaliação, mas tomara algumas providências para dificultar a vida de Igor
Viver era doloroso. Cristine sabia muito bem disso. Era uma dor diária, emocional, que parecia ferver suas entranhas quando tentava vislumbrar um futuro para aquela sua existência medíocre permeada por pesadelos reais e sonhos cada vez mais distantes. Mas quando a for se manifestava como algo físico também, ela sentia que chegava ao limite. Já tinha sentido dor muitas vezes, mas nada se comparava àquilo.‘ Era como se houvessem cacos de vidro penetrando cada um de seus órgãos, como se pequenas labaredas de fogo queimassem pontos específicos de sua pele. A primeira vez que tentou se movimentar foi suficiente para fazê-la ter vontade de gritar, mas se controlou. Não sabia exa
Enzo costumava se considerar um cara pacífico. Poucas coisas na vida eram capazes de lhe tirar do sério. Uma delas, com certeza, era a injustiça, como tinha falado para Cristine algumas horas antes. Passara o resto da madrugada inteira observando-a, apenas pensando que tinha chegado naquela cidade com o coração coberto pelo gosto amargo da vingança, e não fazia ideia de como tinha chegado naquele estágio de bater à porta da casa de um bandido para negociar pela vida do pai da mulher que ele jurara odiar por toda uma existência. Sim, a vida dava voltas. Era fodidamente imprevisível. O bandido em questão era conhecido como “O Patrão”. Era o chefe do tráfico em