Capítulo 2

Ela sentia as costas doerem e o estômago reclamar de fome. O que  mais a incomodava, ela não saberia dizer. Havia o calor também... Desde quando São Valentim tinha se tornado uma das províncias do inferno?

            Tocou a campainha da casa onde almoçava diariamente às quatro da tarde. Almoço? Aquilo estava mais para uma janta, por isso, esperava que fosse logo atendida, até porque, sentia sede também.

            Aquela cadelinha feia veio correndo em sua direção. Por mais que estivesse com pressa, afinal, ainda tinha bastante trabalho pela frente, não resistia a lhe dar atenção. Dificilmente era tão bem recebida daquela forma em algum lugar. Especialmente em sua própria casa.

            Na verdade, ali, onde estava naquele exato momento, sentia-se muito mais em casa do que em seu próprio lar.

            Assim que achou que o carinho era suficiente, levantou-se e virou-se para sua anfitriã.

            — Boa tarde, Ângela. Desculpa vir tão tarde hoje, mas tive muito trabalho. — Enquanto falava, seguia a outra mulher até a mesa. Percebeu que ela estava agitada, o que não era normal. Desde a morte do marido, ela simplesmente existia, sem alegrias. Então, podia-se concluir que não era algo muito bom.

            — Não tem problema, menina. Sei o quanto você dá duro. — Ângela fez uma pausa enquanto terminava de servir a comida. — E acho, sinceramente, que foi Deus que fez você não chegar aqui mais cedo.

            — Por quê? — indagou assim que o prato foi colocado à sua frente e enquanto prendia os cabelos loiros e lisos.

            — Sabe quem esteve aqui? — Dando a primeira garfada na comida, ela balançou a cabeça em negativa. Não podia nem imaginar de quem ela estava falando. — Enzo.

            Cristine quase engasgou.

            — Seu filho?

            — E que outro Enzo poderia ser?

            Ela ficou calada por um tempo. Sua opinião a respeito de Enzo Azevedo não era das melhores, mas jamais a compartilhara com Ângela, afinal, ele era seu filho.

            — E o que ele queria?

            — Pelo visto vai ficar por um tempo em São Valentim. — Cristine viu Ângela suspirar, parecendo bastante decepcionada. Parecia também hesitar antes de dizer o que viria a seguir. — Acho que ele ainda está com aquela ideia fixa de se vingar de você...

            Ah, daquela vez Cristine realmente engasgou.

            — De mim? Depois de tanto tempo? Quantos anos ele tem? Dez? Sei que não fui nada legal com ele no passado, mas eu era uma criança boba. Não sou mais aquela garota. Nem poderia ser. — Por mais que odiasse demonstrar fragilidade, foi difícil evitar uma expressão triste. Como que é que sua vida pôde ter desandado tanto?

            Cristine sentiu a mão fria de Ângela sobre a sua, e seu coração se encheu de ternura. Aquela mulher era como uma mãe para ela. Pena que nem todos sabiam valorizar a sorte que tinham.

            — Eu espero que ele não te magoe, querida.

            Cristine sorriu.

            — Enzo não me conhece mais, Ângela. Ele acha que vai chegar aqui e encontrar a menina fútil e sem coração que conheceu, mas acho que vai ter uma baita surpresa.

            Cristine esperava que estivesse certa, que nada no mundo pudesse magoá-la mais do que a vida já vinha fazendo. Esperava que não fosse ela a ser surpreendida.

***

            Enzo passou uma boa parte da tarde resolvendo suas pendências burocráticas. Pegou a chave da casa onde moraria e deu uma boa olhada nela. Era grande, embora não fosse nem um pouco luxuosa, principalmente se comparada à cobertura onde morava no Rio de Janeiro, em Ipanema, de frente para a praia. Contudo, foi o melhor que pôde conseguir em São Valentim, ainda mais  mobiliada. E também estava limpa, pois ele tinha pago a mais por isso.

            A primeira coisa que fez, depois de retirar os lençóis que protegiam alguns móveis, foi sentar-se no sofá e ligar seu notebook. Tinha muitos e-mails para responder.

            Realmente tinha conquistado muitas coisas desde que saíra de São Valentim, mas nada veio sem esforço, sem luta. Assim que completou dezoito anos e se mudou para o Rio de Janeiro, com a herança de seu avô, fez faculdade de informática enquanto, ao mesmo tempo, criava seu software de contabilidade.

            Foi um trabalho duro que compensou cada segundo. Em pouco tempo conquistou clientes em toda parte do país, e em dois anos o software estava sendo exportado para empresas internacionais. Hoje, ele comandava a empresa de forma tranquila, sem muito estresse, pois tinha funcionários muito competentes, o que facilitara a volta para sua cidade de origem por tempo indeterminado. Podia se dar ao luxo de trabalhar por um tempo por acesso remoto e resolver tudo de casa. Talvez precisasse ir ao Rio uma vez por mês, mas não teria nenhum problema nisso.

            Depois de trabalhar um pouco, então, tomou um bom banho de água fria, já que estava um dia quente e seco, vestiu uma roupa confortável e saiu.

            Apesar de estar ansioso para colocar seu plano em prática, naquele primeiro dia iria fazer de tudo para não esbarrar em Cristine. Estava cansado da viagem, sem muita paciência e um pouco abalado depois da visita à mãe e o tratamento frio que recebeu. Então, não queria colocar tudo a perder.

            Eram oito horas da noite quando passou pela porta de sua casa, decidido a caminhar um pouco. Desceu a rua residencial e em cinco minutos estava no centro comercial de São Valentim. Nada tinha mudado consideravelmente. A igreja tinha recebido uma nova pintura, assim como os murinhos da praça logo em frente, que estavam todos grafitados com desenhos muito bem feitos por algum artista local. Havia algumas lojas novas, principalmente restaurantes e lanchonetes, que pareciam bem movimentadas. Contudo, por melhor que parecesse a aparência da comida e o cheiro, Enzo não estava com fome.

            Na verdade, só havia uma coisa que queria fazer naquele momento. Sabia que visitar este lugar que tinha em mente iria lhe fazer sofrer, mas precisava descobrir quem o tinha comprado, quem estava tirando lucro com o trabalho que era a vida de seu pai. Talvez Enzo conseguisse convencer a pessoa a vendê-la para ele. Por mais que não fizesse ideia do que poderia fazer com uma oficina mecânica, já que a única máquina na qual sabia mexer muito bem eram os computadores.

            Assim que chegou na oficina, estranhou. A fachada permanecia a mesma, inclusive o nome e a placa: Motores do Zé. Enzo sempre achou aquele nome péssimo, mas o pai ria todas as vezes que ele fazia tal comentário, alegando que não precisava de criatividade, precisava de força no braço e as ferramentas certas.

            Com um pouco de cautela, entrou, e a primeira coisa que viu foi um par de pernas femininas, cujo corpo estava todo debaixo do carro, deitado sobre a esteira carrinho. Ela usava uma calça jeans surrada e suja de graxa, mas que aderia lindamente em suas pernas magras e bem feitas. Os pés estavam calçados com um tênis feminino lilás, e os pés eram pequenos e graciosos, e batiam no chão no ritmo de uma música country americana. Ele podia ouvir também uma voz doce, quase afinada, cantarolando bem baixinho.

            Enzo chegou a sorrir, mas não podia negar que estava intrigado com aquela mulher. Ela trabalhava ali, na oficina de seu pai, ou a tinha comprado e mantido o mesmo nome?

            Ansioso para tirar a dúvida, ele pigarreou para anunciar que havia alguém ali. Imediatamente ela largou a ferramenta que usava no chão e arrastou a esteira para sair de debaixo do carro.

            E foi então que o queixo de Enzo caiu.

            Já fazia bons doze anos que não a via, mas ela não tinha mudado quase nada. Eram os mesmos olhos azuis claros e desconfiados, a mesma pele alva e perfeita, apesar das manchas de graxa, a mesma postura altiva, embora estivesse sem as roupas de marca de sempre.

            Sim, ele a reconheceria em qualquer lugar. E por mais que odiasse admitir, ela estava ainda mais linda do que quando a viu pela última vez. Estava sensual e feminina, mesmo naquelas roupas básicas e sujas.

            Ali na sua frente estava exatamente a pessoa que queria evitar encontrar naquela noite: Cristine Moura. A única mulher que amou na vida, mas que agora odiava com todas as forças.

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