Depois que Ana saiu, decidi que precisava deixar o quarto com um pouco mais da minha cara. Comecei a organizar minhas coisas com calma: dobrei as roupas e acomodei nas gavetas, pendurei algumas peças no pequeno armário de madeira clara e coloquei meu nécessaire no banheiro. Tirei um pequeno porta-retratos da mala, com uma foto antiga de mim, Sofia e Leandro em uma viagem, e deixei sobre a mesinha de cabeceira. Ver aquele sorriso congelado no tempo me deu uma pontada no peito, mas também me trouxe um conforto estranho. Era uma lembrança de que eu não estava completamente sozinha no mundo.
Depois de arrumar tudo, fui até o banheiro e tomei um banho demorado. A água quente relaxava meus músculos depois das muitas horas de estrada. Quando saí, vesti uma calça jeans escura, uma blusa de manga azul clara e prendi o cabelo em um coque baixo. Nada demais, mas o suficiente para me sentir mais... eu mesma.
Resolvi explorar um pouco o espaço dos funcionários, como Ana havia sugerido. Os corredores ali eram mais discretos, com menos decoração, mais práticos e funcionais. Um contraste com as áreas comuns, que pareciam preparadas para acolher memórias.
Foi quando vi um homem alto, de pele morena e cabelos raspados, encostado em uma das paredes ao lado de uma porta lateral. Vestia o uniforme da segurança e mexia no celular com uma expressão de tédio. Assim que me aproximei, ele levantou os olhos e abriu um sorriso simpático.
— Nova por aqui? — ele perguntou, erguendo uma sobrancelha.
— Sou sim. Cheguei hoje — respondi, parando ao lado dele. — Marina.
— Ricardo — ele apertou minha mão com firmeza. — Sou o segurança do asilo. Cuido da portaria, das câmeras e, às vezes, espanto uns gambás que gostam de visitar o jardim à noite.
Soltei uma risada curta, já gostando do jeito leve dele.
— Bom saber que temos alguém para proteger a gente até dos gambás.
— Pois é — ele deu um meio sorriso. — E você, vai trabalhar na enfermagem?
— Vou. Começo amanhã. Hoje é só reconhecimento mesmo.
— Boa sorte — ele disse, simpático.
Houve um pequeno silêncio confortável entre nós. Então, decidi perguntar:
— E o dono daqui? Ou o chefe? Como ele é?
Ricardo olhou em volta antes de responder. Seu sorriso diminuiu um pouco, mas o tom ainda era amigável.
— O senhor Ramires? Ele é... reservado. Quase não aparece durante o dia. Tem os próprios horários, bem imprevisíveis, mas cuida de tudo com bastante rigor. Às vezes, parece até que ele sente o que está acontecendo sem precisar estar presente.
— Misterioso assim?
— Você vai ver por si mesma. Muita gente aqui prefere não se meter muito. Mas ele mantém tudo funcionando — ele deu de ombros. — E até hoje, ninguém teve do que reclamar.
Fiquei em silêncio por um momento, digerindo aquelas palavras. Não sabia o que esperava encontrar ali, mas a ideia de ter um chefe misterioso não estava exatamente nos meus planos. Ainda assim, aquilo apenas aumentava a curiosidade que eu já sentia desde o instante em que entrei no asilo.
— Bom — sorri, tentando manter o tom leve — espero não causar nenhum problema, então.
— Só não invada o escritório dele sem bater — Ricardo piscou, rindo. — O resto você tira de letra.
— E como você conseguiu esse emprego aqui? — Ricardo perguntou, com um tom genuinamente curioso.
— Na verdade, foi meio inesperado — respondi, encostando levemente na parede ao lado dele. — Eu recebi um e-mail sobre a vaga. Dizia que o asilo estava buscando alguém com meu perfil. Achei estranho, porque eu nem estava procurando ativamente... mas aceitei. Acho que o cansaço da cidade acabou me convencendo.
— E como eles conseguiram seu contato? — ele franziu levemente a testa.
— Imagino que tenham acesso ao meu registro profissional. Tenho formação em enfermagem, e mesmo depois de ter me afastado por um tempo, meu nome ainda deve constar nos bancos de dados de conselhos, clínicas… sei lá. Talvez tenha sido sorte.
— Ou destino — ele disse, com um sorriso curioso.
— Ou isso — sorri de volta, mas algo dentro de mim se revirou. Aquela palavra sempre me deixava desconfortável. Destino implicava que havia um caminho certo, traçado, e ultimamente minha vida parecia mais uma estrada esburacada e confusa.
— Bom, se foi sorte ou destino, você veio parar num lugar... peculiar — ele disse, olhando para o final do corredor, como se visse algo que eu não conseguia enxergar. — Mas é tranquilo, na maior parte do tempo. Só... esteja preparada. Nem tudo aqui é o que parece.
— Como assim?
— Ah, você vai ver — ele piscou, voltando a sorrir. — Nada demais. Só aquele ar de mistério que ronda todo lugar antigo.
Ricardo então se despediu com um aceno casual e seguiu seu caminho pelos corredores. Eu fiquei ali por alguns segundos, absorvendo aquelas palavras. Peculiar. Misterioso. Um lugar tranquilo… mas com segredos.
Olhei ao redor, sentindo o ar um pouco mais denso, como se o asilo estivesse guardando histórias entre suas paredes antigas. E, de repente, percebi: alguma parte de mim não estava apenas ali para recomeçar — estava ali para descobrir. Mesmo sem saber o quê exatamente.
Com a conversa ainda fresca na mente, deixei a ala dos funcionários para trás e comecei a caminhar lentamente pelos corredores principais do asilo. A iluminação era suave, amarelada, vinda de abajures de parede e luminárias baixas que lançavam sombras alongadas no chão de madeira polida. O silêncio ali era quase absoluto, interrompido apenas pelo som distante de uma televisão e o ocasional rangido de móveis antigos.
As paredes eram decoradas com quadros emoldurados — pinturas de flores, retratos antigos, paisagens em tons pastel. Havia algo nostálgico em cada detalhe, como se tudo ali tivesse sido pensado para evocar lembranças adormecidas.
Ao dobrar um corredor, avistei uma sala de estar ampla, com poltronas estofadas em tecidos florais, mesinhas de centro com revistas organizadas em pilhas pequenas, e uma lareira desativada, mas cercada por livros e xales dobrados com cuidado. Um rádio antigo tocava uma música instrumental suave, preenchendo o espaço com uma melodia acolhedora.
Continuei andando, sentindo que o ambiente parecia me convidar a desacelerar. Cada cômodo tinha sua própria alma — uma essência sutil, quase imperceptível, mas que vibrava no ar como um eco antigo. Passei por uma pequena biblioteca com estantes abarrotadas de livros de capa dura, muitos já amarelados pelo tempo. Um relógio de pêndulo marcava as horas com um tic-tac ritmado e constante, como o batimento cardíaco da casa.
Segui adiante até chegar a um corredor com portas numeradas, provavelmente os quartos dos residentes. Evitei fazer barulho, respeitando o descanso de quem já estivesse dormindo. Havia também uma pequena capela com bancos de madeira e um vitral colorido, onde a luz da lua filtrava em tons suaves de azul e púrpura. Senti uma calma diferente ali dentro, quase solene, e parei por alguns segundos para respirar.
Em seguida, cheguei a uma das saídas laterais que levava ao jardim dos fundos. O vidro da porta revelava o pátio iluminado por postes baixos e lâmpadas amareladas, com bancos de ferro e canteiros bem cuidados. As árvores balançavam suavemente, e o som dos grilos tomava conta do ar fresco da noite.
Ainda não tinha conhecido nenhum residente, nem o restante da equipe. Mas mesmo sem rostos, o asilo já parecia ter histórias me observando pelas frestas. E eu... eu queria escutar cada uma delas.
Dei um último olhar ao jardim e voltei para dentro. Amanhã o trabalho começaria de verdade. Mas, por ora, eu era apenas uma visitante, vagando entre lembranças de outras vidas.
O tempo passou rápido. O céu do lado de fora já estava completamente escuro quando escutei duas batidas leves na porta do meu quarto.— Marina? — era a voz de Ana, do outro lado.Abri a porta e a encontrei com a expressão calma de sempre, mas havia um certo peso no olhar, como se ela tivesse algo importante para dizer.— Boa noite — disse ela com um sorriso leve. — Espero que esteja se adaptando bem. Ricardo me disse que te conheceu, ele gostou de você!— Estou, sim. Dei uma volta pelo asilo. O lugar é lindo. Eu também gostei bastante do Ricardo. — sorri, sincera.Ana assentiu com um pequeno movimento de cabeça.— Fico feliz. Mas agora... — ela respirou fundo, voltando a me encarar. — O senhor Ramires quer falar com você. Ele pediu para que eu a levasse até o escritório dele.Fiquei surpresa com o convite repentino. Meu corpo se enrijeceu por instinto, embora eu não soubesse exatamente o motivo. Talvez fosse o mistério em torno desse homem que ninguém parecia conhecer muito bem, ou a
— Sente-se — disse, enfim, sua voz grave, firme, aveludada com um certo arranhado que parecia natural.Minha postura se encolheu um pouco. Por mais que eu estivesse arrumada, limpa, apresentável, uma insegurança surgiu do nada. Me senti feia. Não sabia por quê. Talvez fosse o contraste entre sua imponência e o modo como ele me avaliava, como se... algo estivesse fora do lugar.— Obrigado por vir — ele disse, por fim, cruzando os braços. — Pedi que viesse esta noite porque queria conhecê-la pessoalmente antes do início do trabalho.Tentei encontrar minha voz.— Claro. Ana me explicou que eu começo amanhã. Estou pronta.Ele assentiu com lentidão, como se cada gesto dele fosse calculado.— Sei do seu histórico, sua formação, seu registro como enfermeira. Mas quero deixar claro que este asilo funciona de maneira diferente. Tudo aqui é mantido com muita ordem. E essa ordem é... inegociável.Sua voz era baixa, mas havia uma firmeza fria em suas palavras.— Entendo — respondi, tentando não d
MarinaTem gente que começa uma nova vida com um recomeço bonito. Eu comecei com cinco caixas de papelão amassadas e duas malas quase explodindo.— Essa aqui fecha se eu sentar em cima, né? — resmunguei, empurrando com o joelho a tampa da caixa onde enfiei metade da minha vida. A outra metade tava espalhada entre roupas que não me serviam mais, livros que eu jurava reler um dia e um monte de cacareco sentimental que eu não tive coragem de jogar fora.Meu apartamento cheirava a café velho e desespero. A luz da manhã entrava pela persiana torta e iluminava o caos que era minha sala-cozinha-quarto — tudo junto, tudo apertadinho. E mesmo assim, era difícil dizer adeus.A campainha tocou. Claro que era ela. Só podia ser.— Já vai! — gritei, amarrando o cabelo num coque frouxo.Gabriela entrou antes mesmo que eu abrisse tudo. Irmã mais nova, cara de certinha, mas com aquele olhar que me julgava até quando eu respirava.— Você tem certeza disso, Marina? Sair assim... largar tudo pra trabalha
Com a ajuda da Gabi — e de muitas reclamações dela, claro — consegui enfiar todas as minhas cinco caixas e as duas malas no porta-malas do meu carro. A cada item que ela empurrava, fazia uma careta como se estivesse carregando pedras.— Isso aqui tá mais pesado que minha consciência depois de comer brigadeiro escondido — ela resmungou, tentando encaixar a última caixa.— Cuidado com essa, Gabi — avisei. — Tem livros de romance e meu vibrador. Ambos sagrados.Ela revirou os olhos, mas deu uma risada. Aquele som me lembrava que, apesar de tudo, ainda tínhamos algum tipo de normalidade.Entramos no carro e, no instante em que nos afastamos da rua, senti aquele nó no estômago. Não era o fim da minha vida, mas parecia o começo de algo que me faria repensar todas as minhas escolhas. O caminho até a casa dos nossos pais era curto, mas o peso dele parecia me engolir a cada quilômetro.— Vai contar agora? — Gabi perguntou, olhando para mim enquanto dirigia, seu tom mais sério do que o habitua
Quando chegou o momento de me despedir, o ar na casa ficou pesado. Meu pai, que sempre foi o mais calmo, estava parado na porta da sala, com os olhos marejados, mas sem coragem de se aproximar. Minha mãe, Helena, estava ao meu lado, com as mãos trêmulas e a expressão fechada, como se estivesse se esforçando para engolir algo muito amargo.— Então você vai mesmo? — Ela perguntou, a voz baixa, mas carregada de incredulidade. — Vai deixar tudo pra trás assim? Você tem certeza disso?Eu olhei para ela, sem saber o que responder. Já tinha me preparado para essa pergunta, mas ainda assim era difícil lidar com a maneira como ela me olhava. Como se estivesse se perguntando onde tinha falhado. A verdade era que ela não conseguia entender, e talvez nunca fosse entender.— Eu não estou fugindo, mãe — a minha voz falhou por um instante, mas eu me segurei. — Eu só... preciso de algo diferente. De um novo começo. Não consigo mais viver aqui. Não depois do que aconteceu.Ela me olhou com os olhos ch
Depois de mais de dez horas de viagem, o cansaço começou a pesar. A estrada estava vazia, cortando a escuridão da noite. O farol do carro iluminava as linhas intermináveis da pista, e o único som era o ronco do motor e o som monótono da borracha deslizando sobre o asfalto.Meu corpo estava exausto, mas minha mente ainda estava acelerada. Eu tentava não pensar, não sentir, apenas seguir em frente. Mas não importava quanto tempo passasse, as imagens do que eu deixava para trás ainda estavam nítidas na minha cabeça. A voz de minha mãe, cheia de incredulidade. O olhar de meu pai, cheio de preocupação. E Gabi, com aquele abraço apertado, tentando me manter ali, mesmo sabendo que não podia.Eu olhei para o relógio do carro. Já era tarde, bem tarde. Mais de dez horas de estrada, e ainda faltavam pelo menos sete para chegar ao meu destino final. Eu sabia que não ia conseguir continuar dirigindo por tanto tempo sem parar, sem cair de sono.Foi quando vi um pequeno letreiro à beira da estrada,
A viagem até o asilo foi longa e cansativa, mas finalmente, ao chegar, uma sensação de alívio tomou conta de mim. O lugar era mais isolado do que eu imaginava. Ao longe, uma grande casa de dois andares, com jardins bem cuidados, parecia um refúgio tranquilo, algo que eu, até então, não tinha certeza de que merecia.O prédio em si tinha uma fachada antiga, com janelas grandes e cortinas de renda que balançavam suavemente com o vento. Havia uma aura de seriedade, mas também um certo charme desgastado, como se o tempo tivesse feito do asilo não só um abrigo para os idosos, mas também uma cápsula de memórias. Quando o carro parou em frente ao portão, pude sentir o cheiro da terra molhada, o que me fez relaxar um pouco. Um lugar silencioso, longe do barulho da cidade. Talvez fosse o começo de algo que eu precisava — um espaço onde pudesse, ao menos por um tempo, esquecer o caos.Fui recebida logo de cara por Ana, a enfermeira do local. Ela estava de uniforme azul, com o cabelo preso em um