Com a ajuda da Gabi — e de muitas reclamações dela, claro — consegui enfiar todas as minhas cinco caixas e as duas malas no porta-malas do meu carro. A cada item que ela empurrava, fazia uma careta como se estivesse carregando pedras.
— Isso aqui tá mais pesado que minha consciência depois de comer brigadeiro escondido — ela resmungou, tentando encaixar a última caixa.
— Cuidado com essa, Gabi — avisei. — Tem livros de romance e meu vibrador. Ambos sagrados.
Ela revirou os olhos, mas deu uma risada. Aquele som me lembrava que, apesar de tudo, ainda tínhamos algum tipo de normalidade.
Entramos no carro e, no instante em que nos afastamos da rua, senti aquele nó no estômago. Não era o fim da minha vida, mas parecia o começo de algo que me faria repensar todas as minhas escolhas. O caminho até a casa dos nossos pais era curto, mas o peso dele parecia me engolir a cada quilômetro.
— Vai contar agora? — Gabi perguntou, olhando para mim enquanto dirigia, seu tom mais sério do que o habitual.
— Uhum — respondi, com um suspiro profundo. — Antes que o drama comece. Não quero perder tempo com lágrimas ou conselhos não pedidos.
— Boa sorte — ela disse, sem muito otimismo.
Eu sabia que minha mãe não ia reagir bem. Helena era dessas: protetora, controladora, mas sempre com aquele amor sufocante. Me preparei mentalmente para o momento em que ela tentaria me convencer de que estava cometendo o maior erro da minha vida. Não ia funcionar. Eu já estava decidida.
Chegamos à casa. O ar dentro parecia o mesmo de sempre — aquele cheiro de bolo de milho e sabão em pedra, uma lembrança da infância que eu nunca conseguiria apagar, mesmo que quisesse.
— Está pronta para o drama? — Gabi perguntou enquanto estacionava.
— Claro. A vida já é um drama. Não custa encarar mais um — respondi, tentando esconder o nervosismo.
Ela saiu do carro primeiro, e eu a segui, com o coração batendo forte. Subimos a escada da casa, e por mais que tudo ali ainda parecesse o mesmo, eu sabia que eu estava diferente. Não era mais a Marina que ficava ali, tentando encontrar conforto e segurança. Agora eu precisava de algo diferente.
A porta estava entreaberta, como sempre. Helena nunca gostava de deixar nada fechado, como se isso fosse impedir que os problemas entrassem. Era uma mania dela, essa sensação de querer controlar tudo, até o ar da casa. Eu sabia o que vinha a seguir, e talvez fosse isso que me deixava mais nervosa.
Gabi abriu a porta sem nem bater. A casa ainda tinha o cheiro de bolo de milho e sabão em pedra — uma lembrança da infância que eu nunca conseguiria apagar, não importa o quanto tentasse. Aquilo me fazia sentir que eu ainda estava na mesma, mas ao mesmo tempo sabia que não estava mais.
— Mãe, pai — Gabi gritou enquanto entrava, como sempre fazia, sem cerimônias.
A resposta veio rápido. Meu pai apareceu primeiro, com seu semblante tranquilo, mas com um olhar cansado que me fez sentir ainda mais pesada. Ele me deu um abraço rápido, como se soubesse que não ia demorar muito antes de me ver indo embora.
— Oi, filha. Vai dar tudo certo — ele disse, sempre tentando amenizar a tensão, mesmo sem saber direito do que estava acontecendo.
Foi minha mãe, Helena, quem fez o ar parecer apertado. Ela apareceu na porta da cozinha, enxugando as mãos no pano de prato, como sempre fazia, e me olhou de cima a baixo com aquela expressão dela, uma mistura de preocupação e controle.
— O que você está fazendo aqui? — Ela franziu as sobrancelhas, como se o simples fato de eu estar ali fosse um erro. E talvez fosse, para ela.
Suspirei, sabendo que o momento de falar havia chegado. Não adiantava tentar fugir.
— Eu... — Respirei fundo, tentando não deixar a ansiedade me dominar. — Eu vou embora, mãe. Vou trabalhar em um asilo, em outro estado.
Helena parou no meio da sala, parecendo que o chão tinha sumido sob seus pés. Gabi, ao meu lado, deu um passo para trás, como se estivesse me deixando à mercê da tempestade que estava prestes a começar.
— O quê? — Helena exclamou, o tom de choque mais claro do que qualquer palavra. — Você vai embora? E por que? Por que isso, Marina?
Era como se ela já soubesse a resposta, mas não quisesse acreditar.
Eu não queria entrar em detalhes, não queria ouvir os conselhos clichês que ela me daria sobre não tomar decisões impulsivas ou sobre a segurança de ficar onde é confortável. Eu estava decidida, e ela precisava entender.
— Não tem mais o que fazer aqui — falei, tentando manter a calma. — Eu não aguento mais essa cidade, esse... lugar. Não depois do que aconteceu.
Ela me olhou, os olhos se estreitando, como se estivesse tentando entender algo que não se encaixava. Eu sabia que ela sabia do que eu estava falando, mas preferia nunca tocar naquele assunto.
— Não me diga que é por causa daquele homem, Marina — ela disse, a voz falhando um pouco, como se estivesse tentando segurar a própria dor.
A menção de Eduardo fez o meu estômago se revirar. Não queria falar dele, não agora, não nunca mais.
— É sim, mãe — respondi, meu tom mais firme do que eu esperava. — É por causa dele. E é por causa de mim também. Eu... preciso mudar. Eu preciso me afastar, de tudo. De todos.
Ela me olhou, como se tentasse medir se eu estava realmente falando sério. E, em algum lugar lá no fundo, eu sabia que ela estava, de alguma forma, torcendo para que isso fosse uma fase. Algo passageiro. Mas não era.
— Eu vou dar a volta por cima, mãe — completei, minha voz mais baixa, quase como uma promessa que só eu podia entender.
A reação de Helena foi um silêncio pesado. Ela nunca soube lidar muito bem com mudanças. Não na minha vida, pelo menos.
Helena deu um passo atrás, como se o peso das minhas palavras tivesse sido demais para ela. Seu olhar estava cheio de confusão e frustração, mas, mais do que isso, ela parecia irritada. Como se aquilo fosse algum tipo de traição pessoal, como se eu estivesse virando as costas para tudo o que ela sempre quis para mim.
— Você não entende, Marina — ela murmurou, e sua voz estava mais tensa do que nunca. — Sempre foi assim, você e suas ideias malucas. Vai embora, então. Fique aí nesse... asilo, longe de tudo o que nós construímos. Eu vou ver no que isso vai dar.
Ela virou-se abruptamente, batendo a porta da cozinha com mais força do que o necessário. O som reverberou pela casa e ficou ecoando no meu peito.
Eu fiquei parada ali, sentindo uma mistura de alívio e culpa. Gabi não disse nada, apenas observou a mãe sair, sabendo que não haveria muito a fazer para acalmar a tempestade. Ela sempre foi assim, guardando para si sua dor, suas preocupações, enquanto eu... eu já estava cansada de tentar corresponder ao que ela esperava de mim.
Meu pai, por outro lado, se aproximou com aquele sorriso gentil, tentando suavizar o impacto de tudo aquilo. Ele me envolveu em um abraço apertado, sem palavras, apenas o calor do seu afeto me envolvendo. Ele sempre foi o mais compreensivo, o mais paciente. Mesmo sem saber muito bem o que fazer ou dizer, ele sempre soubera ser um refúgio em meio ao caos.
— Vai dar tudo certo, filha. Eu sei que você vai encontrar seu caminho — ele disse, a voz baixa e calma, como se suas palavras fossem um balsamo para a ferida que acabara de abrir.
Eu o abracei de volta com força, agradecida por essa única certeza que eu tinha: a dele.
Quando nos afastamos, com um suspiro, olhei para o lugar onde minha mãe havia desaparecido. Fiquei pensando em como eles eram tão diferentes, os dois. Meu pai, sempre tranquilo, sempre com palavras de conforto, e minha mãe, cheia de expectativas e pressões que nunca pareciam se alinhar com o que eu realmente queria. Ela queria que eu fosse perfeita, sem falhas, sem erros. Ele, por outro lado, sempre acreditou que eu poderia seguir o meu caminho, mesmo que isso significasse tomar decisões que a deixariam inconformada.
E no final das contas, era isso que me separava deles: a forma como eu via a vida. Eles queriam segurança, estabilidade, controle. Eu queria... liberdade. Liberdade para errar, para tentar, para recomeçar. E eu sabia que esse recomeço não seria fácil, mas era o único que eu tinha. E eu não podia mais esperar que fosse chegar sozinha.
— Vou precisar de você, pai — murmurei, com os olhos marejados. — Vou sentir falta de tudo isso aqui.
Ele me olhou com um sorriso triste, como se soubesse que eu não estava apenas falando da casa, mas da vida que eu deixava para trás.
— E você vai ter tudo o que precisar, filha. Pode contar comigo sempre.
Olhei para Gabi, que estava ali ao meu lado, e um leve sorriso se formou nos meus lábios. Pelo menos, eu sabia que ela estaria comigo em tudo isso. Mesmo que a mãe tivesse se afastado, eu não estava sozinha.
Quando chegou o momento de me despedir, o ar na casa ficou pesado. Meu pai, que sempre foi o mais calmo, estava parado na porta da sala, com os olhos marejados, mas sem coragem de se aproximar. Minha mãe, Helena, estava ao meu lado, com as mãos trêmulas e a expressão fechada, como se estivesse se esforçando para engolir algo muito amargo.— Então você vai mesmo? — Ela perguntou, a voz baixa, mas carregada de incredulidade. — Vai deixar tudo pra trás assim? Você tem certeza disso?Eu olhei para ela, sem saber o que responder. Já tinha me preparado para essa pergunta, mas ainda assim era difícil lidar com a maneira como ela me olhava. Como se estivesse se perguntando onde tinha falhado. A verdade era que ela não conseguia entender, e talvez nunca fosse entender.— Eu não estou fugindo, mãe — a minha voz falhou por um instante, mas eu me segurei. — Eu só... preciso de algo diferente. De um novo começo. Não consigo mais viver aqui. Não depois do que aconteceu.Ela me olhou com os olhos ch
Depois de mais de dez horas de viagem, o cansaço começou a pesar. A estrada estava vazia, cortando a escuridão da noite. O farol do carro iluminava as linhas intermináveis da pista, e o único som era o ronco do motor e o som monótono da borracha deslizando sobre o asfalto.Meu corpo estava exausto, mas minha mente ainda estava acelerada. Eu tentava não pensar, não sentir, apenas seguir em frente. Mas não importava quanto tempo passasse, as imagens do que eu deixava para trás ainda estavam nítidas na minha cabeça. A voz de minha mãe, cheia de incredulidade. O olhar de meu pai, cheio de preocupação. E Gabi, com aquele abraço apertado, tentando me manter ali, mesmo sabendo que não podia.Eu olhei para o relógio do carro. Já era tarde, bem tarde. Mais de dez horas de estrada, e ainda faltavam pelo menos sete para chegar ao meu destino final. Eu sabia que não ia conseguir continuar dirigindo por tanto tempo sem parar, sem cair de sono.Foi quando vi um pequeno letreiro à beira da estrada,
A viagem até o asilo foi longa e cansativa, mas finalmente, ao chegar, uma sensação de alívio tomou conta de mim. O lugar era mais isolado do que eu imaginava. Ao longe, uma grande casa de dois andares, com jardins bem cuidados, parecia um refúgio tranquilo, algo que eu, até então, não tinha certeza de que merecia.O prédio em si tinha uma fachada antiga, com janelas grandes e cortinas de renda que balançavam suavemente com o vento. Havia uma aura de seriedade, mas também um certo charme desgastado, como se o tempo tivesse feito do asilo não só um abrigo para os idosos, mas também uma cápsula de memórias. Quando o carro parou em frente ao portão, pude sentir o cheiro da terra molhada, o que me fez relaxar um pouco. Um lugar silencioso, longe do barulho da cidade. Talvez fosse o começo de algo que eu precisava — um espaço onde pudesse, ao menos por um tempo, esquecer o caos.Fui recebida logo de cara por Ana, a enfermeira do local. Ela estava de uniforme azul, com o cabelo preso em um
Depois que Ana saiu, decidi que precisava deixar o quarto com um pouco mais da minha cara. Comecei a organizar minhas coisas com calma: dobrei as roupas e acomodei nas gavetas, pendurei algumas peças no pequeno armário de madeira clara e coloquei meu nécessaire no banheiro. Tirei um pequeno porta-retratos da mala, com uma foto antiga de mim, Sofia e Leandro em uma viagem, e deixei sobre a mesinha de cabeceira. Ver aquele sorriso congelado no tempo me deu uma pontada no peito, mas também me trouxe um conforto estranho. Era uma lembrança de que eu não estava completamente sozinha no mundo.Depois de arrumar tudo, fui até o banheiro e tomei um banho demorado. A água quente relaxava meus músculos depois das muitas horas de estrada. Quando saí, vesti uma calça jeans escura, uma blusa de manga azul clara e prendi o cabelo em um coque baixo. Nada demais, mas o suficiente para me sentir mais... eu mesma.Resolvi explorar um pouco o espaço dos funcionários, como Ana havia sugerido. Os corredor
O tempo passou rápido. O céu do lado de fora já estava completamente escuro quando escutei duas batidas leves na porta do meu quarto.— Marina? — era a voz de Ana, do outro lado.Abri a porta e a encontrei com a expressão calma de sempre, mas havia um certo peso no olhar, como se ela tivesse algo importante para dizer.— Boa noite — disse ela com um sorriso leve. — Espero que esteja se adaptando bem. Ricardo me disse que te conheceu, ele gostou de você!— Estou, sim. Dei uma volta pelo asilo. O lugar é lindo. Eu também gostei bastante do Ricardo. — sorri, sincera.Ana assentiu com um pequeno movimento de cabeça.— Fico feliz. Mas agora... — ela respirou fundo, voltando a me encarar. — O senhor Ramires quer falar com você. Ele pediu para que eu a levasse até o escritório dele.Fiquei surpresa com o convite repentino. Meu corpo se enrijeceu por instinto, embora eu não soubesse exatamente o motivo. Talvez fosse o mistério em torno desse homem que ninguém parecia conhecer muito bem, ou a
— Sente-se — disse, enfim, sua voz grave, firme, aveludada com um certo arranhado que parecia natural.Minha postura se encolheu um pouco. Por mais que eu estivesse arrumada, limpa, apresentável, uma insegurança surgiu do nada. Me senti feia. Não sabia por quê. Talvez fosse o contraste entre sua imponência e o modo como ele me avaliava, como se... algo estivesse fora do lugar.— Obrigado por vir — ele disse, por fim, cruzando os braços. — Pedi que viesse esta noite porque queria conhecê-la pessoalmente antes do início do trabalho.Tentei encontrar minha voz.— Claro. Ana me explicou que eu começo amanhã. Estou pronta.Ele assentiu com lentidão, como se cada gesto dele fosse calculado.— Sei do seu histórico, sua formação, seu registro como enfermeira. Mas quero deixar claro que este asilo funciona de maneira diferente. Tudo aqui é mantido com muita ordem. E essa ordem é... inegociável.Sua voz era baixa, mas havia uma firmeza fria em suas palavras.— Entendo — respondi, tentando não d
MarinaTem gente que começa uma nova vida com um recomeço bonito. Eu comecei com cinco caixas de papelão amassadas e duas malas quase explodindo.— Essa aqui fecha se eu sentar em cima, né? — resmunguei, empurrando com o joelho a tampa da caixa onde enfiei metade da minha vida. A outra metade tava espalhada entre roupas que não me serviam mais, livros que eu jurava reler um dia e um monte de cacareco sentimental que eu não tive coragem de jogar fora.Meu apartamento cheirava a café velho e desespero. A luz da manhã entrava pela persiana torta e iluminava o caos que era minha sala-cozinha-quarto — tudo junto, tudo apertadinho. E mesmo assim, era difícil dizer adeus.A campainha tocou. Claro que era ela. Só podia ser.— Já vai! — gritei, amarrando o cabelo num coque frouxo.Gabriela entrou antes mesmo que eu abrisse tudo. Irmã mais nova, cara de certinha, mas com aquele olhar que me julgava até quando eu respirava.— Você tem certeza disso, Marina? Sair assim... largar tudo pra trabalha