Os dedos corriam firme sobre as teclas brancas e pretas, mesmo que o olhar do Conde a fitasse atentamente, mas Emilie era diferente de Ellen... Não tremeria sob os violetas, não havia motivo para isso. Apenas se concentrava na melodia.
– O conde me parece distante... – interveio, baixo, o Duque. – Algo o preocupa?
– O cacau... e sua filha. – Desviou o olhar de Emilie para o homem ao seu lado, pego de surpresa pelas palavras de Alejandro.
– Emilie? – Não teve como não estranhar. Era a primeira vez que o conde a via, como as coisas corriam tão rápidas nos dias de hoje.
– Ellen. – Arrancou um novo estremecimento do Duque.
– E–Ellen... – o Governador buscou a firmeza que lhe faltava na convicção de que ele apenas se referia aos maus modos da caçula, para prosseguir com cuidado: – Certamente, ela pode ter sido inconveniente há alguns dias... mas é apenas uma menina.
– Meu navio parte amanhã, Governador... – Violetas agora encaravam o castanhos, sérios, sem dar, de fato, atenção ao que lhe fora dito. – Entretanto, soube que a moça se interessa por piano...
– Piano... – repetiu mais para si mesmo, como uma afirmação, do que por falta de compreensão da palavra. – Permita-me...
– Em vista de que não acertamos todos os entrementes sobre o negócio do cacau... – antecipou-se ao Duque. – Ponho–me à disposição de ensiná–la durante o tempo de minha estadia em sua cidade. Não parto sem antes aliviá-lo de uma boa quantidade desse fruto maravilhoso... – Sorriu-lhe sedutor.
– Aqui... – balbuciou o Duque ainda apurando as palavras do Conde e concentrando-se no "aliviá-lo de uma boa quantidade". – Permita-me oferecer minha residência, se já não estiver acomodado em alguma locação.
Agora, a pressa do Conde passara, e ele apreciava o vinho com os olhos novamente voltados à Emilie. Só minutos depois, agraciou o Duque com uma resposta:
– Gracias... Não irei me demorar, tão somente esperarei Rámon retornar com o Allera para que possa transportar o vosso cacau.
O sorriso não teve como ficar escondido nos lábios do Governador, que voltou a apreciar Bach, sem perceber, como o Conde, que Ellen escorregara para dentro da sala de música havia alguns quartos de hora, e escutara boa parte da conversa deles. Ao menos, a que interessava ao Conde que ouvisse.
– Amanhã – pausou antes de deixar a residência do Duque. A mão alva entre a sua. – Começamos suas aulas, mi señora. – Os lábios deixados no dorso de rosas, pelos cravos que partiam.
...xxx...
– Uma vez mais... – disse com a voz baixa, sentado ao lado dela ao retornar à partitura inicial. – Voltemos ao dó-ré-mi-fá-sol-lá-si.
– Há três horas eu dedilho as mesmas notas, na mesma ordem... – Correu o dedo por todas as teclas de marfim, na direção das mãos dele, que recolheu-as num único movimento.
– Sustenidos... – murmurou.
E voltou pelas de ébano até parar a sua frente.
– E bemóis... – completou.
Os dedos alvos pulando entre as brancas e pretas, num caminho desafinado. A tampa que desceu quase que imediatamente sobre eles, quando Alejandro já estava de pé. O metrônomo no seu tic tac.
– Por hoje, acho que basta..
– Espere... – Deteve-o, retendo seus dedos nos dela. – Pardon, não tive a intenção de tirar-lhe do sério.
– Não o fez, mi señora. – Retirou delicadamente sua mão debaixo da dela. – Acho que o erro foi meu.
A expressão dela não podia ser de maior espanto e incompreensão, substituída logo pelo rubor ao ser confrontada com as palavras seguintes:
– Creio que esqueci como eram os arroubos de minha juventude... – Sorriu-lhe pouco antes de uma longa mesura. – É certo que também não ficaria satisfeito em estar trancado horas a fio numa sala sem qualquer outra diversão... Pido disculpas a usted, mi senõra. Não voltará a acontecer.
Chocolates não podiam brilhar mais sobre violetas do que naquele momento, mas nada foi dito antes da porta separá–los.
...xxx...
Os cabelos escuros puxados firmes até um coque no alto da cabeça, dispensavam apenas alguns fios para emoldurar a lateral do rosto em um desleixo milimetricamente pensado. A noite fora sorvida novamente por pensamentos sobre o Conde, nos longos dez dias em que nada além da culpa de mais uma vez ter sido descortês com ele, assolava sua mente. Como lhe pedir desculpas? Como dizer-lhe que sua ideia fora uma precipitação equivocada de momento? Nunca seria como Emilie, mesmo que ele tentasse vê-la assim, com seu recato feminino tão bem moldado no melhor estilo francês. Dedilhou o dó.
Sempre fugira de tudo, do italiano, do latim... das aulas de etiqueta e das provas de vestidos. Escondia-se debaixo da mesa sólida de carvalho da biblioteca, e ficava lá por horas, em meio aos romances que consumia com avidez. Desistira de álgebra, mas era uma exímia esgrimista. Devia ter fugido dele também, maldita era sua curiosidade... E a dele. Dedilhou o lá.
A cabeça inclinada nos chocolates que fitavam atentos a partitura. Ainda não entendera a regra do compasso, das claves, meias notas. Em um mês quase não fizera progressos... Salvo, afastá-lo de si. Da menina que era... Que subia em cacueiros, arranhava as pernas nos campos, se vestia de menino. Entretanto, não procurara mais a companhia de Joaquim; agiria erroneamente com o amigo? Talvez, mas queria ser uma lady... uma señora, como ele a chamava. Por que ele queria ensiná-la?
Fechou os olhos e deixou o fá, o mi... o sol no ar. Não era hora da aula, queria apenas sentir as teclas sob seus dedos. Ainda lembrava do ritmo da música, a cadência da melodia que a envolveu no navio. E a sonata preencheu seu pensamento, com se a tocasse por suas próprias mãos. Trazendo cravos para brincar em seus sentidos. Os violetas nos seus chocolates.
A brisa no seu rosto, entre as cortinas das janelas, e as mãos que pousaram ao lado das suas, dedilhando as mesmas notas... em cravos e rosas. Os toques gentis no piano, os acordes em sincronia... Os cabelos pretos dele sobre o rosto enquanto murmurava-lhe:
– Um dueto é ainda mais difícil quando se toca apenas de ouvido... – Violetas nos chocolates dela. – Eu deveria saber que me surpreenderia... Em algum momento, mi señora.
– Por que perde seu tempo comigo?
Últimos acordes e um meio sorriso no rosto dele.
– Não me parece que o tempo seja um juízo de valor que possa ser perdido...
– Falas sob metáforas, my lorde.
– Certamente... – Cravos misturados às rosas. – Mas poderias tocá-lo? Alterá-lo?
Ela sorriu.
– Non... Gostaria de poder?
– Algumas vezes, sim.
Ele se pôs de pé e caminhou até uma das janelas. Vestia preto, como a maioria das vezes, ou tão somente havia uma peça castanha escura a cortar-lhe a escuridão que o envolvia. Os raios pálidos de sol refletiam na madeira clara da pequena saleta, clareando, aos poucos, sua figura esguia.
– O sol saiu, enfim... – interveio no silêncio dele. – Sei que a tarde se dedica à leitura...
– É sempre tão observadora assim, mi señora? – retrucou sem fitá-la.
– Na maioria das vezes, entretanto... – Mordeu o lábio inferior ao se erguer, mas a falta de hábito em usar vestidos absurdamente longos, a fez tropeçar em sua barra.
O desequilíbrio, o corpo projetado à frente e os braços que a capturaram ainda no ar. Seu rosto contra o colete dele, sorvendo cravos por segundos no abrigo dos braços a sua volta. As mãos que a retinham junto a si, num abraço medido, que não saberia dizer se fora proposital ou simplesmente um reflexo de proteção, mas que amoleceram suas pernas.
– Por que não usas um vestido seu? – a pergunta certeira que partiu de seus lábios, sem o intuito de ofender, ao devolvê-la à posição inicial: em pé a sua frente. – Tens tanta vontade assim de ser igual à Emilie?
– Sou inconveniente – ela terminou a resposta a sua pergunta anterior, antevendo o desconforto que causaria diante dessa nova investida.
– Desculpe-me – ele recuou, retirando as mãos que ainda a seguravam pelos ombros.
– Não trouxe muitos da França...– tentou não ser descortês.
– Seu pai não deixaria lhe faltar nada – arriscou arrancar uma sentença mais conveniente aos seus desejos, já que ela não se determinara em impedi-lo. – Ainda não explicou por que insiste em se parecer com Emilie, ou ser tão contrastante com ela, para que a atenção caia sobre si mesma.
– Isso se chama impertinencia... – confronto–o finalmente. Não podiam ter apenas uma conversa amigável?
– Ao meu entendimento, diria ser inveja e egoísmo. – Ele quase pode rir do semblante adotado por ela enquanto levava para longe o cheiro de rosas que tanto o enebriava. Os nós dos dedos esbranquiçados pela birra de menina que retesava seu corpo de mulher conforme se afastava do Conde. – Quando pretende ser somente Ellen? Quando vai deixar que a vejam como é realmente?
– Acha que um vestido mudaria isso? – Ela também teve vontade de sorrir, cínica.
– Talvez, se tivesse o tamanho certo e contasse com a boa vontade da dama que o veste... – Ele não movera um músculo de sua face, não se podia dizer o que pensava, mas violetas ainda brilhavam numa satisfação velada.
– Conheceu muitas damas, Conté? – contrapôs maliciosa.
Ele a analisou por segundos, antes de responder–lhe a pergunta. Os cabelos escuros caídos sobre os ombros num coque deliberadamente mal feito; um vestido que não era, seu escondendo a mulher que gritava para sair daquela prisão na qual os seus receios de menina a prendiam... Poderia culpá-la por sua inocência e falta de tato? Entretanto, lhe atiçava a mente saber o que, de uma hora para outra, causara–lhe tal reação. Deveria ir só um pouco mais fundo...
– De certo todas eram menos impertinentes. – Chocolates nos violetas, ferozes.
Alejandro, entretanto, não se moveu, mesmo que fosse o centro da fúria do olhar ameaçador dela e dos passos precipitados que corriam em sua direção, fazendo-a novamente desequilibrar. Cravos e suas pernas uma vez mais bambeavam, sustentada nos braços dele.
– Devia deixar-me falando sozinha... – murmurou envergonhada. – Sem dar atenção as minhas tolices.
– E perder a visão da dama que escolheste a dedo só para me agradar? – Ele agora sorria do rubor dela. – Seria uma desfeita e uma total falta de educação de minha parte. – Curvou-se numa mesura, beijando-lhe o dorso da mão entre a sua.
– Presunçoso... – Amarrou o cenho, retirando sua mão da dele.
– Uma dama saberia a medida de adulação necessária para obter atenção de um cavalheiro... – rebateu firme, sabendo que mesmo parecendo insatisfeita, ela prestava-lhe atenção. – No entanto, eu apreciaria um vestido mais simples e um passeio pelos jardins, se me desse essa honra e esquecesse meu atrevimento de confrontá-la a pouco.
– Uma dama faria isso? – indagou duvidosa, com a sobrancelha erguida ao máximo.
– Não sei... – Violetas nos chocolates. – Não convidei a dama, queria que a Ellen me acompanhasse.
Ela sorriu-lhe, amassando a saia do vestido sob os dedos ao colocá-lo numa altura que não a fizesse cair, e sumiu pela porta. Alejandro deixou-se fitar a madeira escura, coçando o queixo levemente com o indicador e sentando-se na poltrona de frente para ela. Fechou os violetas, sorvendo rosas ainda no ar. As pernas cruzadas e os lábios crispados, vinte minutos deveriam bastar para vê-la surgir radiante naquela saleta.
...xxx...
– Demorei–me tanto assim?
Ele riscou um sorriso perfeito antes de abrir os violetas e encará-la no vestido verde-água sem adornos, ostentando apenas um arremate de renda da mesma cor sobre o colo. Ainda se perguntava se ela precisava de mais do que aquelas poucas cores para ser mais bela, mas a voz dela o fez sair de suas considerações num estalo:
– Não gostas? – Chocolates brilharam nos violetas. – Eu lhe disse que não tinha nada apropriado... – Emburrou em seguida, sem lhe dar chance de defesa.
– Está perfeito – emendou mesmo assim. – Vamos? – Ofereceu-lhe o braço.
– Se insiste... – Ellen ruborizou ao aceitá-lo.
– Nada me daria mais prazer, mi señora.
Ambos passaram ao jardim pelas portas duplas da saleta, mas ao contrário da biblioteca, essas davam para os fundos da propriedade. Onde somente a vista de um ou dois quartos alcançava. Eles se afastaram um pouco da casa, na direção do chafariz, e sentaram-se à sombra do caramanchão. No entanto, dentro da sala, envoltos em cravo e rosas, parecia ser mais fácil entabular qualquer conversa. Ali, em meio ás flores, se perdiam de si mesmo.
– Deve estar ansioso por voltar à Espanha... – ela comentou sem realmente querer uma resposta séria.
– Não como imagina... – respondeu–lhe calmamente, ainda que as lembranças de sua casa não lhe fossem particularmente saudosas. – Garanto-lhe que seu apreço por Limoges supera o meu por Égara.
– Égara? – Chocolates brilharam ao repetir o nome. – Então, essa é a casa de Alejandro de Aramoyana.
– Se tinha curiosidade sobre minha casa, bastava ter me questionado a respeito – interveio malicioso, num tom de violeta escuro. – Teria prazer em satisfazer sua curiosidade.
– Teria mesmo? – Estreitou o olhar sobre ele. – Parece–me que não tem boas recordações sobre sua casa, pois comparou sua saudade a minha por Limoges, e sabe que possuo um desejo ardente de voltar ao meu país.
– Égara é um lugar lindo, digno do nome. – Deixou os olhos se perderem no infinito. – Certamente a fascinaria, assim como sua terra natal. Mas estás certas quando afirma que não tenho motivos para querer voltar tão cedo à Espanha...
– Seus pais não gostariam de ouvir isso... Tenho certeza – retrucou inesperadamente.
Alejandro se manteve em silêncio por longos momentos até que murmurou:
– Agradeço sua preocupação, mas não há mais como alcançá-los... Infelizmente.
Ela piscou algumas vezes, considerando as palavras dele.
– E-eu sinto muito... – balbuciou nervosa. – Não tive a intenção de magoá-lo... – Os olhos nublaram por lembranças que não eram as dele.
– Não me magoou. – Tomou a mão dela entre as suas e depositou ali, um lenço branco. – Acredite-me, minha dor não é tão latente quanto a sua...
– Não gostava deles? – Ela enxugou delicadamente as lágrimas enquanto tentava conter em vão um soluço.
– Não sei dizer... – Violetas vagaram na superfície do espelho d'água formado pelo chafariz. – Eu era muito pequeno...
– Eu não conheci minha mãe. – Ellen amassou o lenço nervosamente nas mãos, sem fitá-lo. – No entanto, sinto muita falta dela.
Mesmo que não visse, violetas a fitavam curiosos. Não podia dizer que sentia saudades dos pais, que lamentava sua morte... Quase não havia lembranças em sua mente de um convívio em família. Com a sua família. Tinha apenas lembranças dos momentos bons com os pais de Rámon, aquela fora a família que conhecera e aprendera a amar. Sofrera com o irmão quando os pais dele morreram; pais que ele tomou por seus... Mas aqueles que eram os seus de sangue, apenas lhe legaram sede de vingança, jamais o pesar. Trazia em seu sangue a maldição concebida por eles, por ser seu herdeiro... Por isso os outros também morreram, os pais que amava... Os de Rámon.
– Amaria sua mãe se lembrasse dela. – Sorriu-lhe ao colocar a pequena mão pálida sobre a dele. – E ela o ama, onde quer que esteja, e o perdoa... pois sabe que sofre com a ausência de memórias dela.
Violetas nos chocolates borrados de lágrimas. Será que ela acreditava mesmo nisso? Será que permaneceria ao lado dele se soubesse o quanto poderia feri-la se quisesse... Se perdesse o controle sobre o que era? Eram palavras tão inocentes e doces para uma pessoa como ele... Palavras de um mundo que não era o seu. Entretanto, ditas por ela, eram quase um perdão por seus atos, fossem ou não pecaminosos aos olhos dela.
– Saber disso, por você, me conforta... – Levou a mão dela aos lábios, deixando-os sobre a pele clara, num carinho demorado. Sentindo ela arrepiar e se deliciando com isso... Com algo tão puro.
– Está tarde – declarou se colocando de pé num pulo, o rosto rubro desviado do olhar dele. – Devem estar no procurando para o almoço.
– Joaquim não viria lhe avisar se assim fosse?
– Joaquim... – Ela levou ambas as mãos fechadas ao colo.
– O menino, seu amigo...
– Ele está de mal comigo – explicou sem saber se deveria mesmo fazê-lo.
– Será passageiro, acredite. – Uma vez mais naquela manhã, ofereceu-lhe o braço.
– Não tenho tanta certeza disso – confidenciou ao aceitar o braço oferecido.
– Seria imperdoável, se a mantivesse longe por muito tempo...
– Olha quem fala... – Envergonhou-se ao mesmo tempo que sorria. – Tratou-me por quase um mês à distância, monsieur le Conté.
– Exatamente. – Interrompeu os passos de ambos, fazendo-a fitá-lo atentamente enquanto corria os dedos por seu rosto. – Por isso, sei muito bem como é difícil manter–se longe de algo tão adorável.
A respiração suspensa, as pernas bambas e a boca sobre a sua quase a fizeram desmaiar. E rubra, murmurou ao baixar o rosto, evitando que a tentação de beijá-lo corresse ainda mais rápido por suas veias. Ainda não sabia se isso era o certo a fazer, deixar-se beijar por ele.
– Estás sendo gentil – pausou, tentando controlar o coração que queria fugir do peito. – Fui tão cruel com o senhor quanto com Joaquim, sabe disso melhor do que eu.
– Então, por mais que me doa dizer isso, deve dar-lhe o mesmo tratamento que dispensou a mim... – Voltou a colocá-los em movimento, indo na direção da casa.
– Aceitaria que eu dividisse meu sentimento pelo dois?
Aquilo era música para seus ouvidos, pureza para sua alma... Como dizer não?
– Admito ter um rival a minha altura. – Sorriu-lhe, fechando os dedos dela sobre seu braço.
Aquela tarde, seu coração descansaria pleno.
Pingos grossos de chuva, o chão sob seus pés afundava a cada passo, encharcando–lhe a barra da roupa. Chocolates se estreitavam na escuridão e seu corpo tremia a cada novo disparo do céu sobre sua cabeça, porém, já chegara até ali e não voltaria, mesmo que seus ossos estivessem banhados pela chuva. As pequenas mãos afastavam os galhos de árvores que surgiam pelo caminho enquanto penetrava ainda mais na floresta ao redor da casa. Seus pés negros pela lama. O barulho incômodo das gotas nas folhas e o ranger do vento frio entre as copas das árvores... Talvez devesse voltar, estreitou o corpo entre os braços. Os dentes tremeram quando avançou mais um pouco e a tempestade desabou de vez sobre el
O vento soprava forte por entre as velas pretas do Allera quando Alejandro pisou na proa do navio. O cheiro de maresia, que há muito havia abandonado seus sentidos, invadindo sua alma. As mãos crisparam sobre a amurada enquanto fechava os olhos e sorvia aquele aroma acre. Era bom estar de volta... Mesmo que parte de seu coração estivesse em terra.– Capitão, estamos prontos para partir... – anunciou Rámon ao seu lado. – Basta apenas ordenar.Os cabelos pretos ricocheteavam em seu rosto conforme tomava a direção do castelo da popa. Os violetas que foram à terra sem encontrar os cho
Não havia nada num raio de muitas milhas, nada que lhe trouxesse paz ao coração. Deitada sobre os lençóis bem cuidados, ela fitava o céu estrelado, que vira surgir aos poucos, por trás da cortina de lágrimas que não deixava seus olhos. Então, as notas flutuaram até seu ouvido, fazendo tremer cada célula de seu corpo, mas de um modo muito dissonante do que era antes... Os lábios tremeram, embebidos num gosto acridoce. O gosto da desilusão.O barulho da porta se abrindo, mesmo que levemente, não a tirou de seu torpor. Não tencionava ter contato com o mundo a sua volta, não naquele momento, mas seu visitante parecia não querer passar
– A febre já cedeu? – disse ao entrar na cabine com uma nova terrina de água fresca.– Apenas um pouco... – Os violetas se voltaram para o rosto suado. – Ela delira o tempo todo – explicou ao mergulhar o tecido de algodão na terrina e torcê-lo, restirando o excesso, levando-o à testa de Ellen em troca do outro.– Faremos uma nova sangria, se não baixar... – sugeriu Rámon.– Não pense que gosto disso... – Encarou o irmão em violetas brilhantes.–
– Ela já foi? – Sorriu-lhe malicioso, o imediato, ao entrar a segunda vez na cabine aquela manhã. – Sim, você a assustou – rebateu Alejandro enquanto ajeitava o lenço sobre o pescoço. – Duvido muito – contrapôs firme Rámon. – É mais fácil você ter feito isso... – Impossível, ela está apaixonada, meu caro. – Vestiu o casaco com um sorriso ainda sob seus lábios. – E você... – deixou no ar, sabendo que os olhos violetas do irmão parariam sobre ele. – A noite tendia para seu fim quando a porta da cabine se abriu e o vulto se esgueirou para dentro, em passos firmes. – O que quer aqui? – indagou após minutos em que só o silêncio entre eles reinou absoluto.– O que fez ao corpo dela? – a voz melodiosa e envolta em rosas, perguntou.– Você não quer saber sobre isso... – rebateu sério. – Acredite em mim.– Por que deveria? – ela despeCapítulo 10
A noite caía rapidamente sobre a carruagem que cortava a escuridão da estrada como um raio numa noite chuvosa. As curvas eram feitas em velocidade duplicada para aquele tipo de transporte. Seus ocupantes iam envoltos em grossas capas de lã pretas, como manchas escuras sobre o assento roto. A aba dos chapéus de feltro impediam, até mesmo, que se visse sua fisionomia. O vento frio uivava correndo pelas copas das árvores, assim como as rodas riscando as folhas secas, únicos sons que inundavam a horas profundas da madrugada. – Estamos há apenas dois dias de Limoges – ponderou o mais corpulento dos três. – Devia pensar em dar um pouco de conforto à milady. Essa estadia na e
Ellen sacolejou as barras, mas não houve um movimento por parte dos guardas, ou do ferro entre seus dedos. Eram maciças.Suspirou fundo, aninhando-se no chão exausta.– Sabe onde estamos? – a voz feminina chegou até seu ouvido, surpreendendo-a.– Sim. – Ellen esfregou os braços, olhando a sua volta. – Estamos abaixo do solo uns dez metros... Sem luz, nem água. – A moça loura ao seu lado riu dentro das roupas caras rasgadas em muitos lugares.
Último capítulo