EmilyEstou na cozinha, tomando meu café da manhã sozinha. A cadeira ao meu lado ainda está empurrada para trás, a lembrança silenciosa de Kayra, que até minutos atrás me fazia companhia. Ela foi ver o pai assim que o médico chegou, deixando no ar o rastro pesado de nossa conversa.Falávamos sobre a cultura turca e sobre os homens de lá. Palavras que soaram quase como advertências, mas que, de alguma forma, ecoaram dentro de mim com um sabor amargo.“Na Turquia, o sexo é tabu. As mulheres se cobrem da cabeça aos pés. Os homens olham para estrangeiras como diversão passageira, mas para casar, escolhem uma turca.”As frases ainda ressoam, como uma flecha cravada onde mais dói. Kayra falava com naturalidade, mas o peso das palavras me atingiu. Não é para você, Emily, ecoava uma voz fria na minha mente. Você sabia disso desde o início.Mas isso me fez bem? Não. Eu me sinto miserável, e não sei por quê. Meu coração o escolheu mesmo quando a lógica dizia não. Escolheu alguém que carrega um
EmilyAbaixo a cabeça, sentindo o peso de uma verdade que me golpeia o coração. Meus pensamentos giram, e a única coisa que consigo digerir é: Okan é turco.As imagens dele surgem na minha mente como um filme impossível de parar. Ele ao piano, tocando com uma intensidade que transbordava pela música. Suas mãos deslizando pelas teclas com uma paixão que só alguém como ele poderia ter. Okan é um homem apaixonante, mas também perigoso... porque quanto mais eu tento escapar de suas teias, mais enredada fico.Eu preciso ir embora. Urgentemente. Hoje mesmo.Sem fome, afasto a cadeira, o som do arrasto ecoando como um aviso. Pego meu casaco no hall de entrada. Ele está no mesmo lugar desde o dia em que cheguei aqui, sem saber que sairia dessa casa tão diferente. Agora, uma mulher — mas com um vazio no peito que parece insuportável. Algo falta. E talvez o único que possa preencher esse espaço seja ele.Respiro fundo, tentando buscar uma força otimista. O tempo será meu aliado, sussurro para m
Ômer está na sala de jantar, supervisionando a arrumação da mesa com o bolo. Há uma calma superficial ao redor, mas o ambiente vibra com expectativa e carinho, como se a casa também quisesse homenagear alguém querido.A surpresa para Odila é um gesto lindo, carregado de afeto. Uma década de serviço, lealdade e amor que se refletem em pequenos detalhes da preparação.—Ah, esqueci de te falar. Estamos preparando uma festinha surpresa para Odila, nossa cozinheira. Ela está há mais de dez anos conosco e merece todo nosso amor e reconhecimento.Eu acho lindo isso.—Okan me disse. —Digo com um sorriso.O olhar de Kayra se estreita, afiado, como se quisesse sondar cada palavra.—Já vi que conversaram bastante.O calor me sobe ao rosto. Um rubor ardido toma conta de mim, como se tivesse sido pega em flagrante.Deus! A última coisa que acontece entre mim e Okan são conversas. E, agora, ele está mais distante, mais fechado em si mesmo. Uma tristeza que ele tenta disfarçar pesa em seus ombros. S
Os minutos seguintes passam como um borrão. Almoçamos juntos, e depois Kayra e eu assistimos a um filme, enquanto Ômer e Okan saem para combater a neve com pás, espalhando sal grosso pelo chão para acelerar o derretimento. À tarde, o pai de Okan já estava conosco na mesa, saboreando o café digno de um rei. Odila se superou, com uma variedade de quitutes e salgados que fariam qualquer um se sentir acolhido. Fico feliz ao ver o senhorzinho mais corado, com a aparência de quem está se recuperando, e ele come com gosto, como se algum tipo de boa notícia o tivesse revitalizado. Ele sorri para todos, espalhando uma energia leve e alegre.Guardo essa impressão para mim, embora a curiosidade me consuma. Preciso perguntar a Kayra o que trouxe tanta animação ao senhor, mas, por respeito aos costumes, mantenho o silêncio. Levanto os olhos e encontro Okan, que desvia o olhar, mais cauteloso do que nunca. Acredito que seja por causa da presença do pai. Observo seu gesto distraído, passando a língu
—Kayra, a neve baixou. Estou indo embora.Digo, caminhando com passos firmes em direção à casa, tentando não demonstrar a torrente de emoções que me consome.—Agora? Mas você disse que ia ficar.Entramos na sala, onde Okan está sentado ao lado do pai. Eles conversam em turco, as palavras fluindo entre eles como um laço ancestral que me exclui por completo.—Sim, como viu, o gelo se foi. Não há perigo algum de eu ir. — Digo para ela, a voz soando resoluta, ainda que dentro de mim tudo esteja em frangalhos.Okan interrompe a conversa, levantando os olhos em minha direção. Seu olhar desliza por meu rosto, avaliando-o com uma expressão indecifrável.—Você não ficará até amanhã? — pergunta ele.—Não. — Respondo, a garganta apertada. Tento soar indiferente, mas minha voz trai um pouco da mágoa que transborda em mim. — Ah, e parabéns pelo seu noivado. Kayra me contou. Disse que Sila é uma pessoa maravilhosa e será uma ótima esposa.Seus olhos brilham com um entendimento que confirma minhas s
Kayra meneia a cabeça e ri com deboche.—Outra cultura? Nunca! Meu pai não permitiria. Já teve mesclas e não deu certo. Acabou em separação. Por isso ele nos fez prometer que nos casaremos com pessoas que seguem nossos costumes.Ela fala com tanto orgulho que chega a me enojar. A doce garota se transforma diante de mim, uma defensora feroz das tradições familiares.—E você acha que ele está feliz com essa situação? — Pergunto, a voz mais baixa, como se tentasse arrancar a verdade.Kayra dá de ombros, indiferente.—Não! Realmente ele parece desconfortável com isso. Ele estava acostumado a vida regrada de mulheres. Saídas clandestinas, casos. É por isso que ele está infeliz. Acabou isso! Ele vai criar raízes e agora a comidinha será caseira. Mas isso passa. Já estava na hora de ele tomar jeito.As palavras dela me atingem como uma facada. Sinto-me uma idiota, uma peça descartável na vida de Okan. Claro que sou mais uma. Claro que o que tivemos não significou nada para ele. Não me engano
EmilySaio do quarto puxando minha mala de rodinhas, com o coração pesado. Por fora, meu rosto está tranquilo, mas por dentro estou despedaçada. Na sala, dou de cara com Okan, sentado em frente à lareira, um copo de uísque na mão.— E papai? — Kayra pergunta a ele.— Foi se deitar.— Não é cedo para beber?— É cedo, mas me deu vontade.Os olhos de Okan encontram os meus. Há algo neles, uma mistura de angústia e cansaço, mas tudo que consigo sentir é minha própria raiva, ardente e sufocante. É maior que a dor, maior que a decepção. Ele me traiu de todas as formas possíveis, e eu preciso me proteger. Ergo o queixo, alimentando meu orgulho ferido.— Bem, vou indo. — Minha voz soa firme, mas por dentro estou desesperada para ir embora, fechar esse capítulo da minha vida e nunca mais olhar para trás.Abraço Kayra com força.— Obrigada por tudo, pela sua amizade, sua hospitalidade.Ela sorri levemente, sem perceber o turbilhão em mim.— Foi um prazer tê-la conosco.Quando nos afastamos, olh
EmilyMais tarde, na sala com Kayra, consigo rir de um programa humorístico, mas sei que meu riso é mais nervoso do que genuíno. As cenas na tela parecem distantes, desconectadas do peso que carrego no peito. Minha mente está presa à ideia da conversa que preciso ter com Okan. O que ele ainda quer comigo? Por que se importa em esclarecer algo, sabendo que está comprometido? Agora que entendi a verdadeira natureza de seu noivado, minha apreensão é ainda maior. Cada minuto que passa torna o confronto inevitável.Quando o programa acaba, lanço um olhar discreto ao relógio. Dez horas.— Vou me deitar. — Digo, sentindo o coração martelar desordenado no peito.Kayra boceja e se alonga preguiçosamente.— Então vamos. A cama quentinha está me chamando também.Caminhamos juntas pelo corredor, e noto que a porta aberta que vira antes está agora fechada. Um desconforto cresce em mim, como se algo me alertasse. Respiro fundo, afastando o pensamento. Entro no meu quarto, acendo a luz e fecho a por