O ar estava fresco quando o Mister Pontudo lambeu os meus dedos repletos de creme de banana. Levantei-me sonolento, tropeçando e derrubando as coisas ao meu redor. Uma fina camada de poeira e serragem levantou me fazendo tossir e espirrar.
Minha cabana sempre foi uma bagunça, e isso porque era apenas um grande cômodo com um banheiro externo. O fogo da lareira estava baixo e o ar com cheiro de banana e lenha.
Na porta de entrada havia um aviso na soleira, o papel pardo tinha sido rasgado às pressas de algum bloco de notas e escrito com força.
"Cadê, meus bonecos de madeira!? Eu os quero para amanhã, se não, não quero mais. - S.M"
— Vê isso Mister Pontudo? — Balancei o recado na frente do meu totem que me olhava com curiosidade com seus olhões brilhosos. — Coma essa merda.
O unicórnio mastigou o papel com vontade derrubando baba no chão e balindo de satisfação. Lavei os meus dedos e o rosto na pia cheia de pratos, panelas e potes de doces de banana vazios. tentando desaparecer com o sono e aliviar a irritação da cobrança logo de manhã.
- Esses políticos sempre mimando seus filhos, - Reclamei, passando o espanador nas minhas criações de madeira, eram objetos sagrados para mim. - Eles esquecem que tenho que cortar a árvore certa, trazê-la para minha oficina, picá-la com cuidado, trabalhá-la com amor e depois dar molde a minha arte.
Mister Pontudo eriçou os pelos arroxeados quando a poeira caiu sobre sua a cabeça, bateu seu chifre azul-pérola e seus cascos rosa na minha perna grossa e peluda em reprovação, e começou a morder um pedaço de acrílico jogado no chão. Eu havia tentado migrar para essa nova tecnologia, mas confesso que não consegui, mexer com madeira era a minha essência.
Passei pela minha obra prima, que ocupava a maior parte da cabana, fazendo uma pequena reverencia com lágrimas caindo pelo meu rosto redondo e barbudo. Era minha perfeição, todo o talento que tinha estava nessa escultura. Acredito que os primeiros magos de Teran sentiram o mesmo que eu quando aprenderam a dobrar a vontade e a energia; completude e o êxtase.
Me senti muito mal desenterrando-a, mas era algo que eu tinha que fazer, ou iria enlouquecer. Ela estava em minha mente todos Mesmo depois de dois anos ainda era demais para eu suportar a perda dEla. Gastei dias olhando para o corpo da garota para conseguir de forma rude e falha captar um pouco da beleza e perfeição dEla. Arrependo-me de ter violado tão celestial deusa. Usei a própria árvore que havia sido usada como arma para Seu suicídio para esculpi-la, e ainda depois fiz com o resto a minha segunda melhor criação de todas; um braço mágico para o irmão da minha adorada.
Como me doía e me inspirava olhar para ela, parecia viva. Ah, se eu soubesse usar magia de inanimação, mas não possuía dom para isso.
Afiei o meu machado mágico do jeito antigo - usando pedras de diamantes, e coloquei meu monóculo, já fazia algum tempo que não enxergava direito e era a única coisa que conseguia comprar com as baixas vendas das artes em madeira. Melhor ter um olho do que nenhum.
Não havia perigo em andar pelas belas e mágicas florestas de Ligência, mas eu e o meu totem olhávamos com atenção para as árvores, pois em Teran a magia estava em todo canto. Mister Pontudo tinha o olfato impecável pra essas coisas e me ajudava a evitar cortar uma casa sagrada ou um altar familiar por acidente. Eu não queria ser devorado por um clã de fadas ou ter alguma maldição familiar.
Caminhamos por mais de duas horas até que o meu unicórnio encontrou uma boa árvore. Ele estava meio estranho naquele dia, se assustando com qualquer barulho e com as patinhas tremendo mais que o habitual. Ainda lembro-me do dia que ganhei meu totem de felicidade e fofura, eu havia acabado de fazer uma escultura de madeira da minha falecida mãe tão boa que meu pai disse que se orgulhava de mim e foi quando conheci a Valentina. Eu tinha dez anos, muito precoce dizia meu pai para todos da nossa fabrica.
Eu encarei a grande, larga e jovem árvore. Daria para fazer muito bons bonecos e talvez alguns móveis novos. Estiquei o corpo e balancei o machado de um lado para o outro o encaixando perfeitamente nos calos das mãos.
— Afiar, Picar e Desmembrar. — Recitei olhando fixamente para o fio do machado que tomou uma coloração rosada. — Veloz e Cortante.
Levantei o machado segurando a respiração, desci-o acertando o primeiro golpe e "crack" fez o machado beijando a árvore. Sorri puxando-o e levantando-o novamente.
Um arrepio correu pela minha espinha e um suor gelado desceu em minhas costas me fazendo parar o movimento. Eu não havia percebido o quanto a floresta estava silenciosa, o que era anormal em Teran; a natureza era viva, fluida e intensa.
Olhei para o Mister Pontudo que estava com os olhos de íris-multicoloridas arregalados olhando em todas as direções e com o rabinho entre as pernas, isso começava a me assustar. Os unicórnios não são conhecidos por serem os totens mais corajosos, mas Mister Pontudo estava tremendo e choramingando, o que me fazia querer ir embora.
— Pare com isso seu covarde. — Ralhei, não sei se para ele ou para mim mesmo, preparando o outro golpe. — Não há nada de mal aqui.
Concentrei-me e golpeei a árvore mais cinco vezes.
Quando levantei os olhos percebi que a floresta estava escura; o que era estranho, pois estávamos no meio do dia e era o momento em que os sóis se uniam e deixava o mundo em tonalidades roxas claras.
Senti olhos em minhas costas, mas quando me virei não tinha ninguém. Não só isso, não havia cantos de pássaros e nem tilintar de fadas. Engoli o medo em seco.
Um desejo me veio sussurrado à mente. Eu queria sair correndo com o Mister Pontudo no colo e cair sobre ele para que o seu chifre perfurasse meu peito. Aproximei-me do meu totem pronto para fazer isso, mas me contive, me dando um tapa no rosto.
Olhei para os lados tendo a sensação de que as árvores estavam mais próximas de mim, mais distorcidas, mais vivas e mais malignas. Isso não era possível, árvores não faziam mal para magruxeiros. Em Teran nada fazia o mal.
— Mister Pontudo, vamos embora. — Sussurrei perto das orelhas felpudas do meu totem.
Guardei meu machado mágico na proteção presa no meu cinto e sai correndo. Ouvi um murmúrio e fiz a burrada de olhar para trás. Uma árvore surgiu em minha frente, eu dei de cara derrubando meu machado e meu monóculo, senti o gosto de ferro na boca e sangue escorrer do nariz, mas não iria gastar tempo procurando coisas ou me preocupando com machucados, eu precisava correr.
Eu ouvia um choramingo por perto, mas não iria cometer o erro de olhar para trás novamente. Corri descontroladamente mesmo aos tropeços, ora de pé e ora de quatro. Galhos surgiam e cortavam meu rosto. Parecia que as raízes estavam tentando me derrubar, era loucura, a natureza não fazia mal aos magruxeiros.
Nada fazia mal em Teran.
Uma névoa tomava a floresta ficando cada vez mais espessa e rígida. Isso não era possível, na verdade era, mas não era natural ou fácil de fazer.
Mister Pontudo baliu agoniado, saiu em disparada e desapareceu. Eu estava tão amedrontado que minha voz não saía e sentia algo quente escorrer pelas minhas pernas. Isso não era possível negava minha mente.
O ar faltava em meus pulmões, correr não era para pessoas gordas e grandes como eu. Parei pra descansar com meu coração batendo em meus ouvidos. Sentia vontade chorar, mas engoli o choro quando ouvi um choramingo muito perto de mim. Era um sussurro triste e melancólico, um lamento.
— Qu... — Comecei.
Não terminei a pergunta, pois minha voz falhou quando ouvi o som de madeira rangendo, era um barulho conhecido quando se era lenhador, uma árvore se quebrando aos poucos. O som estava bem perto de mim, assim como o choramingo que aumentava a cada passo.
Se eu tivesse com meu machado poderia recitar algum feitiço, mas sem ele não conseguia fazer nada. Um magruxeiro precisa do seu canalizador.
Meu coração batia cada vez mais forte e minhas pernas não funcionavam mais.
O ranger aumentava e a neblina estava subindo pelo meu corpo parrudo. Um galho apareceu em minha frente e o meu mundo congelou. De alguma forma aquele galho me parecia familiar, era mais que um simples galho, era uma mão jovem e pálida.
Ao fundo eu ouvia o choramingo aumentar. Uma voz fina de criança com um tom de velho sussurrou.
— Meu senhor vais fazer isso? — Choramingava. — O senhor não precisa.
A ponta do galho se contorceu como dedos se aproximando do meu rosto. Eu não tinha reação, mas eu conhecia aquela mão. O galho seco foi para trás e cravou em meus olhos, gritei alto e uma árvore tombou e... Senti um frio intenso e depois nada.
Acordei em um pulo. O coração batendo tão forte contra minha caixa torácica que pensei que estava tendo um infarto no miocárdio. Assim que não percebi outros sintomas, me livrei dos lençóis de pelos de unicórnio-ovelha que estava grudado ao corpo, e concluí precipitadamente que havia sido apenas uma forma do meu cérebro me acordar, ativando hormônios de adrenalina e não um sonho profético. No meu sonho uma sombra tomava toda Teran e perfurava as pessoas, não se importando entre culpados e inocentes, e eu só olhava inútil e sem valor. Da mesma forma que me senti quando os meus seis irmãos me amarraram e me jogaram na floresta para morrer; eu era só um pueril de 12 anos. Sacudi a cabeça e ignorei o pesadelo junto com as lembranças, da mesma forma que ignorava todos abaixo de mim. A minha bola de cristal tocava em algum lugar do meu suntuoso e circular quarto. As paredes eram feitas em quartzo e o telhado abobado banhado em ouro. Um capricho que rece
Eu estava limpa, eu juro pelos Doze, não havia usado nenhuma erva de amplificação de clarividência ou aplicado algum espinho de expansão de consciência em minhas veias, não me tomem por louca, eu sabia o que tinha visto. Eu não era louca, pelo menos não antes de tudo isso. Hoje nem sei mais. Eu estava no bosque buscando raízes amargas junto com minha caipora, Kiki. Queríamos fazer um chá para minha avó que tinha veias grossas e não podia andar. Isso não importa, eu sei, mas quero explicar o que eu estava fazendo lá, a galera entortava o nariz para gente como eu. Não tenho culpa não ter as Coisa bem ajustadas na cachola, demorou muito mais anos, mas eu tinha Kiki e juntas eramos incríveis.Ela era a minha melhor amiga. Caminhamos por horas sentindo o ar fresco do bosque e admirando as árvores multicoloridas de Teran, até que vimos quatro jovens e seus totens. Eram encrenqueiros que viviam judiando dos novatos no colégio e batendo nos mais fracos. Uma vez eles ten
A pessoa mais psicologicamente vulnerável se torna o alvo específico de uma força externa.Essa opressão debilita e destrói aos poucos a vontade dessa pessoa, fazendo-a se questionar se ela está bem.Com o passar do tempo a pessoa exibe sintomas anormais; como repulsa a itens sagrados, mudança de humor, conhecimentos desconhecidos, força sobre-humana, ataques constantes a si mesmo ou a outras pessoas e medo de si próprio. Tendo oscilações entre os sonhos e a realidade.Nessa fase a pessoa ainda tem controle de si, tem sua própria consciência e pode subjugar a força externa com a ajuda de alguém
As xícaras de chá estavam tão sujas que me davam repulsa. É até engraçado lembrar disso. Eram peças de cristais raros com detalhes em diamantes e florins de ouro, mas olhar para elas só me causavam tristeza e raiva. Lembravam-me de tempos mais gloriosos e que tudo estava em seu devido lugar. Esses tempos ruíram quando Avill surgiu tão especial com seu dragão cobra de mil cabeças. Dores insuportáveis se alojaram em minhas pernas, meu decote antes robusto e atrevido, se tornou flácido e propenso a se dobrar sobre minhas roupas, sem se falar dos olhares que não pousavam mais em mim, só naquela criatura que me chamava de mãe. Aquela criaturazinha que de dentro de mim sugou toda a minha beleza e jovialidade, e até minha magia. Como eu a odiava com todas as minhas forças. Só me forcei a fazê-la, pois os malditos pais do Cristóvão iriam desfazer nosso casamento se eu não gerasse descendência, e eu não podia perder a glória que tinha de ser uma Noar.
Já fazia algum tempo que não via Shenraj, por isso combinamos de nos encontrar no parque dos Cogumelos Brilhantes, o lugar que pegamos pela primeira vez nas mãos. Tinha sido um dia lindo e ensolarado, Avill falava por nós dois, enquanto dávamos várias voltas de mãos dadas rindo e aproveitando o tempo juntos. Que lembrança feliz e triste. Ver o Shen de agora me dava tristeza, o garoto estava mais magro e com os olhos profundos. Seu totem seguia-o poucos centímetros atrás fungando o nariz e coçando com frequência as orelhas pontudas. — Você está bem Shen?— Perguntei, sabendo que não, mas ele não era de falar se não fosse perguntado.— Já faz algumas semanas que não nos vemos. — Estou. — Disse rispidamente soltando meus dedos. —E como está a vida de estagiária do grande detetive Conrado.— Sua voz estava mais fina e mais áspera. — Ele é um investigador na verdade.— Corrigi, ba
Eu trabalhava na Espiral desde meus cinco anos. Meu pai era faxineiro, e eu herdei a mesma profissão. Era um serviço digno e invisível, as pessoas não me viam ou fingiam não ver, principalmente na Espiral aonde se encontravam as pessoas mais importantes de Ligencia. Eu gostava muito disso, já que sempre fui muito vergonhoso. Eu estava no penúltimo andar, limpando o banheiro do Alto Magistrado, quando ouvi a risada alta e alegre do Alto Policial seguido do próprio Alto Magistrado. — Eu pensava que esse dia nunca chegaria.— Gritou o Alto Magistrado chutando seu kappa que caiu de cara no chão de pedra, eu me encolhi de medo, já senti a bota dele nas minhas costas.— Conseguimos prender aquele merda do Cristóvão e de quebra resolvemos o mistério sem aquele arrogante do Conrado. Eu olhei pela fresta da porta do banheiro para se havia alguma saída. Mas o Alto Policial bloqueava a porta. Lesmir estava tão pomposo que não fez esforço em f
Quando a pessoa oprima perde todo o senso de realidade, ela é possuída por uma força externa. Ela perde o controle de seu corpo ficando inerte em alguma parte de sua mente vendo, ouvindo e sentindo tudo, mas sem poder interagir com os outros, enquanto a entidade humana ou não-humana se apossa totalmente de suas funções fazendo o que quiser e matando aos poucos o possesso.Nos estágios iniciais as pessoas ao redor podem tentar forçar o animo e a vontade do possesso, tenta-lo fazer lutar contra a força externa, pois esse é o único meio de isso acabar. Se o possesso desistir de lutar, a entidade humana ou não humana toma sua existência.
Eu não podia suportar toda aquela violação e dor, mas as palavras de Madame Noar estavam talhadas em minha cabeça. — Espero que não envergonhe o nome dos Noar. — Ela era tão linda, eu desejava um dia ter a metade da beleza e graça que ela possuía. — Escute bem, você fará TUDO que eles pedirem. Entendeu? Essa foi a última vez que vi minha ma... Quer dizer... Foi à última vez que vi madame Noar. O treino com os Doze era incrível, mas doloroso. Eu passava horas recitando conjurações e esconjurações. Invocava tulpas de sonhos esquecidos e dava animações a esculturas. Dobrava e manipulava a entropia, e fazia e refazia o tempo. Não havia ninguém da minha idade no monastério dos Doze, mas fiz amizade com uma serviçal cega que me ajudava com os afazeres diários. Muitos deles temiam que eu fosse a profecia e por isso criaram feitiços que reduziam meus poderes e pactos que me permitiam usar no máximo trinta por cento do meu poder, antes