Eu estava limpa, eu juro pelos Doze, não havia usado nenhuma erva de amplificação de clarividência ou aplicado algum espinho de expansão de consciência em minhas veias, não me tomem por louca, eu sabia o que tinha visto. Eu não era louca, pelo menos não antes de tudo isso. Hoje nem sei mais.
Eu estava no bosque buscando raízes amargas junto com minha caipora, Kiki. Queríamos fazer um chá para minha avó que tinha veias grossas e não podia andar. Isso não importa, eu sei, mas quero explicar o que eu estava fazendo lá, a galera entortava o nariz para gente como eu. Não tenho culpa não ter as Coisa bem ajustadas na cachola, demorou muito mais anos, mas eu tinha Kiki e juntas eramos incríveis. Ela era a minha melhor amiga.
Caminhamos por horas sentindo o ar fresco do bosque e admirando as árvores multicoloridas de Teran, até que vimos quatro jovens e seus totens. Eram encrenqueiros que viviam judiando dos novatos no colégio e batendo nos mais fracos. Uma vez eles tentaram roubar minhas ervas medicinais, mas minha caipora deu seu grito de fúria e eles foram embora. Mas já havia apanhado deles algumas vezes, antes da Kiki, eu tinha os roxos para provar.
Eu os segui para ver o que iam aprontar, não sei bem por que fiz isso, mas eu sentia que era o que tinha que fazer e que isso era importante se eu quisesse continuar viva. Então fiz, mesmo sabendo que se contasse para os guardas nada aconteceria, mas essa vontade estranha e externa foi maior que o meu bom senso.
— Pare de ser uma medrosa Loly. — Comentou Walder, um menino magro e ossudo, que junto com seu grifo azulado Lor guiavam o grupo, ele arrancou meu dente de ouro uma vez. — Fantasmas são só pessoas que ainda não entenderam que morreram e não podem fazer nada contra o vivos, — O menino deu um leve tapa na poupança da menina, que azedou o rosto. — todos nós sabemos que o lenhador devia dinheiro para um monte de gente e um resolveu cobrar a dívida. Simples.
Eles falavam sobre a morte misteriosa do lenhador desconhecido. Deviam estar indo acampar, pois estavam com mochilas e cestas. A última vez que fizeram isso deixaram um monte de lixo na floresta, eu pequei, pois as quimérinhas comem de tudo e depois morrem se não conseguem digerir.
— Eu não sou medrosa. — Rebateu Loly, uma moçoila de cintura larga e com uma robusta comitiva de frente, entregando uma fruta doce a harpia rosa chamada Cris. Ela era mais boazinha do grupo, ela sempre fazia eles pararem de bater em mim. — Mas todos estão dizendo que tem um totem amaldiçoado que vagueia pelo bosque choramingando.
— Qualé Loly, cê tá muito bitolada com isso, fica sussa, que dá bom. — Zombou Jorge, um meninão gordo e de cabelo porco-espinho, ele beijou Dadiva, uma moçoila espevitada, enquanto suas fadas giravam no ar. — É tudo falso, só vai.
— É isso ai, Jorge e Walder tem razão, e mais, eu ouvi dizer que ele foi queimado por um dragão, são só os poderosos que têm dragões. — Dádiva tirou uma folha do cabelo e jogou para cima fazendo as fadas pegarem. — Com toda certeza o burro do lenhador mexeu com alguém que não devia.
O grupo caminhava pela floresta rindo e brincando sobre a morte do lenhador. Não percebiam a mudança do clima e o leve escurecer quanto mais aprofundavam no bosque. Eu fiquei em alerta, saquei com minha chave tecnomagica de dentro dos meus calções e a segurei firme na mão. Não sabia muitos feitiços por não conseguir guardar as Coisa no cocuruto, mas o de se esconder eu era boa.
— Se eu não me engano, — Comentou Jorge, percebendo o medo dos seus amigos aumentarem a cada passo que davam. — Uma moça dá nossa escola se enforcou em um carvalho velho aqui por perto, acho que já faz uns dois anos.
— É verdade. — Completou Dádiva esfregando os braços na lateral do corpo. — Eu não consigo me lembrar direito dos detalhes, pois foi no mesmo ano do eclipse das duas luas. — Ela fez uma cara triste.
Walder passou o braço sobre a cintura da garota aconchegando-a. Senti arrepios só de lembrar-me daqueles braços me erguendo no ar e me jogando de cara no chão.
— É estranho, sempre que a gente tenta lembrar-se do que aconteceu naquele ano dá uma baita dor de cabeça. — Loly olhava assustada pra Walder enquanto ele falava.
Os totens pararam de andar e começaram a tremer. O grifo soltou um grito triste, as fadas ficaram com o brilho opaco e a harpia escondeu a cabeça nas asas. O grupo parou formando um círculo.
— Que droga é essa? — Gritou Jorge segurando sua tesoura tecnomágica com força.
— Cala a boca. — Repreendeu Loly esticando suas linhas de crochê mágicas — Ouçam!
Um choramingo era ouvido de longe e um raspar de madeira se aproximava de todas as direções. Eu queria fugir, mas minhas pernas travaram, Kiki puxava a barra da minha calça com força e em vão. Meu corpo não obedecia e eu só conseguia ficar parada de longe olhando.
O bosque escureceu e a neblina subiu até a metade da cintura. Eu os ouvia invocarem feitiços de revelação e explosão, mas não conseguia me aproximar para ver melhor.
— Quem está aeh? — Gritou um menino. — É melhor você parar de brincadeira, meu pai é um homem muito poderoso. — Ameaçou.
O choramingo ficava mais alto e o ranger de madeira começava a cobrir os gritos e as ameaças.
O mundo congelou parecendo que não havia mais nada em Teran. O silêncio foi quebrado por gritos ensurdecedores e sons de madeira batendo contra o aço.
Eram gritos de dor e agonia, e o cheiro de sangue tomou o lugar. Nunca tinha sentido tanto medo como naquele momento.
— Você?! — Uma das meninas gritou.
O silêncio voltou e a névoa foi se dissipando.
Eu desejei não poder enxergar e nenhuma poção de esquecimento ou magia de memória poderia apagar o que vi.
Os braços de Jorge e Walder foram arrancados e fincados em galhos, os seus olhos foram arrancados e seus buchos estavam todos picotados com as tripas caindo para fora. Dádiva estava com um cipó envolto no pescoço balançando de um lado para o outro, seus olhos também haviam sido arrancados e sua boca tinha sido rasgada de orelha a orelha fazendo a queixada se abrir de forma bizarra como se estivesse sorrindo.
Tentei segurar a ânsia, mas o cheiro de morte foi forte e vomitei na minha roupa, pois ainda estava paralisada.
Loly era a única que estava com os olhos, ela olhava para os amigos com um furo no meio do peito do tamanho de um punho. Parecia quase em paz.
Eu ouvi o choramingo começar novamente e já aceitava minha morte, mas Kiki mordeu fundo minha perna, o que me fez acordar e sair correndo. Corri não sei por quanto tempo até que cheguei ao vilarejo. Procurei a polícia, mas não quiseram me ouvir até que finalmente foram para a floresta confirmar o que eu tinha dito.
— Eu acredito em você. — Respondeu o Investigador Conrado, o que me surpreendeu. — E agora eu tenho certeza de quem são os culpados.
A pessoa mais psicologicamente vulnerável se torna o alvo específico de uma força externa.Essa opressão debilita e destrói aos poucos a vontade dessa pessoa, fazendo-a se questionar se ela está bem.Com o passar do tempo a pessoa exibe sintomas anormais; como repulsa a itens sagrados, mudança de humor, conhecimentos desconhecidos, força sobre-humana, ataques constantes a si mesmo ou a outras pessoas e medo de si próprio. Tendo oscilações entre os sonhos e a realidade.Nessa fase a pessoa ainda tem controle de si, tem sua própria consciência e pode subjugar a força externa com a ajuda de alguém
As xícaras de chá estavam tão sujas que me davam repulsa. É até engraçado lembrar disso. Eram peças de cristais raros com detalhes em diamantes e florins de ouro, mas olhar para elas só me causavam tristeza e raiva. Lembravam-me de tempos mais gloriosos e que tudo estava em seu devido lugar. Esses tempos ruíram quando Avill surgiu tão especial com seu dragão cobra de mil cabeças. Dores insuportáveis se alojaram em minhas pernas, meu decote antes robusto e atrevido, se tornou flácido e propenso a se dobrar sobre minhas roupas, sem se falar dos olhares que não pousavam mais em mim, só naquela criatura que me chamava de mãe. Aquela criaturazinha que de dentro de mim sugou toda a minha beleza e jovialidade, e até minha magia. Como eu a odiava com todas as minhas forças. Só me forcei a fazê-la, pois os malditos pais do Cristóvão iriam desfazer nosso casamento se eu não gerasse descendência, e eu não podia perder a glória que tinha de ser uma Noar.
Já fazia algum tempo que não via Shenraj, por isso combinamos de nos encontrar no parque dos Cogumelos Brilhantes, o lugar que pegamos pela primeira vez nas mãos. Tinha sido um dia lindo e ensolarado, Avill falava por nós dois, enquanto dávamos várias voltas de mãos dadas rindo e aproveitando o tempo juntos. Que lembrança feliz e triste. Ver o Shen de agora me dava tristeza, o garoto estava mais magro e com os olhos profundos. Seu totem seguia-o poucos centímetros atrás fungando o nariz e coçando com frequência as orelhas pontudas. — Você está bem Shen?— Perguntei, sabendo que não, mas ele não era de falar se não fosse perguntado.— Já faz algumas semanas que não nos vemos. — Estou. — Disse rispidamente soltando meus dedos. —E como está a vida de estagiária do grande detetive Conrado.— Sua voz estava mais fina e mais áspera. — Ele é um investigador na verdade.— Corrigi, ba
Eu trabalhava na Espiral desde meus cinco anos. Meu pai era faxineiro, e eu herdei a mesma profissão. Era um serviço digno e invisível, as pessoas não me viam ou fingiam não ver, principalmente na Espiral aonde se encontravam as pessoas mais importantes de Ligencia. Eu gostava muito disso, já que sempre fui muito vergonhoso. Eu estava no penúltimo andar, limpando o banheiro do Alto Magistrado, quando ouvi a risada alta e alegre do Alto Policial seguido do próprio Alto Magistrado. — Eu pensava que esse dia nunca chegaria.— Gritou o Alto Magistrado chutando seu kappa que caiu de cara no chão de pedra, eu me encolhi de medo, já senti a bota dele nas minhas costas.— Conseguimos prender aquele merda do Cristóvão e de quebra resolvemos o mistério sem aquele arrogante do Conrado. Eu olhei pela fresta da porta do banheiro para se havia alguma saída. Mas o Alto Policial bloqueava a porta. Lesmir estava tão pomposo que não fez esforço em f
Quando a pessoa oprima perde todo o senso de realidade, ela é possuída por uma força externa. Ela perde o controle de seu corpo ficando inerte em alguma parte de sua mente vendo, ouvindo e sentindo tudo, mas sem poder interagir com os outros, enquanto a entidade humana ou não-humana se apossa totalmente de suas funções fazendo o que quiser e matando aos poucos o possesso.Nos estágios iniciais as pessoas ao redor podem tentar forçar o animo e a vontade do possesso, tenta-lo fazer lutar contra a força externa, pois esse é o único meio de isso acabar. Se o possesso desistir de lutar, a entidade humana ou não humana toma sua existência.
Eu não podia suportar toda aquela violação e dor, mas as palavras de Madame Noar estavam talhadas em minha cabeça. — Espero que não envergonhe o nome dos Noar. — Ela era tão linda, eu desejava um dia ter a metade da beleza e graça que ela possuía. — Escute bem, você fará TUDO que eles pedirem. Entendeu? Essa foi a última vez que vi minha ma... Quer dizer... Foi à última vez que vi madame Noar. O treino com os Doze era incrível, mas doloroso. Eu passava horas recitando conjurações e esconjurações. Invocava tulpas de sonhos esquecidos e dava animações a esculturas. Dobrava e manipulava a entropia, e fazia e refazia o tempo. Não havia ninguém da minha idade no monastério dos Doze, mas fiz amizade com uma serviçal cega que me ajudava com os afazeres diários. Muitos deles temiam que eu fosse a profecia e por isso criaram feitiços que reduziam meus poderes e pactos que me permitiam usar no máximo trinta por cento do meu poder, antes
Era uma manhã calma quando abri as portas da escola infantil para crianças da elite de Teran. Mas algo estava deixando meus pelos da nuca arrepiados. Era um pressagio, eu sabia. Abri todas as janelas como fazia nos últimos cento e cinquenta anos. Aguei às plantas, algumas extintas atualmente, e recitei alguns feitiços para ampliar a aprendizagem e o bom comportamento. Tudo feito soou o sino e as crianças chegaram. Elas se sentaram em seus lugares colocando seus canalizadores mágicos sobre as mesas e me esperaram. Encarei-os por um longo tempo recitando agouros de boa fortuna e de sucesso, era um desejo real e verdadeiro. Seus rostos estavam cheios de medos e apreensão sobre o futuro. Isso era bom, enquanto se questionassem eu podia invisivelmente manipular suas mentes e fazê-los perderem o sono e a fome, pois todo o futuro deles dependia das minhas avaliações. —Bem, — Comecei. —Futuros membros da elite de Ter
Eu me lembro de que estava dormindo, havia passado horas na Espiral tentando entender como o lugar mais seguro do mundo ardia em chamas, quando do nada fui lançada da minha cama para o chão. Levantei correndo, mesmo que desnorteada pela pancada, e abri a janela, o que vi nunca, nunca mesmo saiu da minha memória. Ligência estava pegando fogo, não era um fogo normal, era um fogo multicolorido. Cada labareda trazia uma tragédia e uma peste. O fogo verde fazia vermes saírem das pessoas, o fogo azul congelava, o fogo negro queimava a alma das pessoas deixando seus totens, o fogo rosa explodia os corpos membro a membro, e fora as cores que não eu conseguia distinguir. Além do fogo havia monstros horríveis e totens espectrais voando e correndo pela vila. Era uma visão que não poderia existir em Teran. Vesti rapidamente um vestido azul, o último presente que Shen me deu. Glacy apareceu voando sobre minha cabeça lançando penas de gelo em um monstro que surgiu em