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CAPÍTULO 1 - A HORA MAIS ESCURA

Fogo consumia o carro em meio a rodovia, duas silhuetas dançavam desesperadas envoltas das labaredas de chamas. Urros rodeavam o carro e os barrancos que beiravam a rodovia. Naquela cena, um garoto loiro de seus onze anos, de olhos claros e cabelos pelos ombros, segurava um bebê no colo. Ele sangrava bastante pelo ombro, onde um pedaço de lataria do veículo havia atravessado. Parado em meio a estrada diante a escuridão, ouvia os urros se aproximarem. Corpos carbonizados se arrastavam pelo asfalto, não dois ou três. Mas dezenas, uma infinidade deles brotava do abismo que contornava o lugar onde ele permanecia.

Tais urros eram substituídos por sussurros confusos, que a maneira que os segundos se passavam formava um coro: Você foi o culpado, ela vai te odiar, culpa sua, egoísta.

Os corpos iam se devorando, como canibais, comiam seus semelhantes para ficarem mais próximos de Fred. Corvos sobrevoavam o animalesco espetáculo. Vem em outra, mergulhavam para bicar alguns corpos.

O frio intenso foi sentido pelo jovem, os pelos de seu braço se eriçaram. Assim como surgiram, os sussurros desapareceram. Lentamente, como uma onda retornando ao oceano. O garoto olhou para os lados, não havia mais nada além da escuridão. Com o bebê em seu colo, tentou se mover, mas suas pernas estavam cobertas até os joelhos em um denso líquido negro. Como se borbulhasse e de vida própria, ia subindo vagarosamente por sua coxa. Pequenos olhos surgiam do líquido, alguns pareciam de aves, outros de mamíferos. Mas, todos possuíam um único traço em comum, eram olhos naturais de predadores.

Ia sendo engolido aos poucos, erguia o bebê na tentativa desesperada de salva-la. Então, uma trombeta foi tocada e entre a escuridão, olhos dilatados com veias sanguíneas destacas apareceram. E tudo escureceu.

Fred acordou do terrível pesadelo de solavanco, ofegante passou as mãos em seu rosto. Mais um pesadelo sobre o acidente de trezes anos atrás. Abaixando a cabeça, seus cabelos loiros mel caíram para o lado de sua cabeça. Ouvia sirenes aos montes, levantou-se da cama sem pressa. Indo até o banheiro, lavou o rosto e parou por alguns instantes na frente do espelho. Frederico sempre foi vaidoso de maneira desleixada, o cabelo sempre mantinha na altura dos ombros. A barba, que não costumava deixar crescer pois servira durante quatro anos no exército, sendo membro da infantaria chegou até a posição de cabo antes de pedir desligamento. Mas, agora usava a barba curta onde o bigode e o cavanhaque completo se encontravam.

Seu porte físico era considerável, magro e forte com boa definição tinha como brinde algumas cicatrizes. A do ombro era a mais chamativa, a ganhou no acidente que ceifou a vida de seus pais. Por muito pouco, não perdera o movimento do braço direito. Na barriga um pequeno corte que sofreu em um exercício de campo. No braço esquerdo, várias pequenas cicatrizes que cobriu com uma tatuagem, o dragão oriental envolvendo todo seu antebraço. Ganhou estas ao cair sobre estilhaços de uma janela quebrada em uma briga de bar. A última, era em suas costas. Ainda quando servia, o exército auxiliava a fragilizada polícia militar nas barreiras noturnas. Em uma dessas, ao ir checar a identidade do condutor e status do veículo, foi alvejado duas vezes pelas costas. Uma das balas foi segurada pelo colete, a outra atravesso e o acertou.  Ele encarava com seus olhos claros, cada marca, todos os dias. Um ritual diário para lembrar quem ele era e o que ele passou.

Enquanto escovava os dentes, o som de sirenes aumentava cada vez mais. Ouviu tiros seguidos, mesmo que distantes ele conseguia distinguir.

.45 e 9mm, é a polícia ou o exército, pensou ao cuspir a espuma que a pasta formou em sua boca.

Mais uma vez, outra rajada de disparos. Parou por um momento e voltou para o quarto, no instante que adentrou o cômodo seu celular tocou, alguém estava ligando. Com pressa foi até a mesa de cabeceira ao lado de sua cama. Era sua irmã.

 — Alô – ele atendeu.

 — Fred, graças a Deus! Você está bem? – Sara perguntou aflita.

 — Claro, claro. Por que o nervosismo? Aconteceu alguma coisa? – Curioso, Fred se sentou na cama.

 — Nossa – ela suspirou do outro lado da linha – eu fiquei preocupada.

 — Obrigado, maninha – Fred sorriu. Ele e Sara não se davam muito bem, mas ele não a culpada por odiá-lo.

 — A cidade está um caos, não viu? Tem gente mordendo gente, parecem malucos ou algo do tipo.

 — Viraram canibais do nada? – Brincou Fred ao procurar o controle da televisão.

 — Isso é sério, Fred. Está um inferno lá fora. Liga a televisão pra tu ver.

 — Eu estou procurando, achei o controle. Algum canal específico? – Fred ligou a televisão e deu de cara na cobertura especial da tv local.

 — A local é a melhor – ela respondeu.

Fred ficou olhando para a tv que transmitia de um helicóptero os arredores do prédio que sua irmã morava. Centenas de pessoas fugiam entre carros dessas outras pessoas alucinadas. A jornalista dizia:

Este é o maior distúrbio civil conhecido em toda a história do Brasil e do Rio Grande do Sul. Recebemos informações que outras cidades estão sendo afetadas pelo estado e até outros lugares do Brasil. Rio de Janeiro, Campinas, Salvador e Belém também sofreram ataques semelhantes. O Prefeito que se encontra em um clube de embarcações na zona sul de Porto Alegre, pediu para o governador o emprego das forças armadas. Alguns quartéis foram tomados pelos revoltosos...

 — Puta que pariu – ele disse boquiaberto.

 — Fred? Alô? – Sara o chamou.

 — Sara, isso não é um distúrbio normal não. Tranca o apartamento e não deixa ninguém entrar. A Elisa está contigo, né? – o ex militar saiu da cama e se ajoelhou no chão, começou a tatear embaixo de sua cama.

 — Sim, ela está no quarto dela ouvindo música.

 — Ótimo, ouviu a parte de trancar o apartamento? – o loiro retirou uma mochila militar de onde mexia.

 — Ouvi sim, Fred. Acha que eu já não tranquei? Não sou mais uma criança – Sara falou em tom rude com seu irmão.

 — Certo – ele arqueou as sobrancelhas, sabia do gênio forte da irmã – eu vou me arrumar e irei para aí.

 — Está perigoso na rua, eu não consegui falar nem com Beatriz e nem com o Hugo. Espero que estejam bem. Então não te arriscar por besteira, isso logo vai estar resolvido – Sara falou com indiferença – você conhece, a mídia é muito sensacionalista.

 — Eu sei, mas desta vez é diferente. Tenha cuidado – pausou a fala - Sara, eu queria – Fred ficou em silêncio.

 — Fred? – Ela o chamou.

 — Queria dizer que – antes de falar, ouviu tiros muitos próximos e uma gritaria desenfreada – Sara?! O que rolou aí? Sara! – Fred gritava pelo celular e a ligação caiu. Tentou ligar novamente mais só chamava, gritou esmurrando o roupeiro. Foi até a janela e abriu a cortina. O que viu foi a cidade em caos. Fogo, sirenes, tiros, gritos e fumaça. Conseguia com dificuldade enxergar o prédio onde sua irmã morava, pouco mais de cinco quilômetros e estaria lá. Parece um apocalipse zumbi, pensou.

Abrindo o guarda-roupa, se veste para sair. Camisa de manga curta branca, um colete balístico para 556 e o sobretudo cor de musgo que tinha. Separando os casacos, encontra suas duas armas. Uma espingarda calibre 12, ação em pump de cor preta fosca e um revólver de sete tiros com cano de 4 polegadas. Ambas numerações das armas eram raspadas, ou seja, eram ilegais. Fred que trabalhava como marido de aluguel em muitos casos, também trabalhava em escoltas e segurança privada. Seus clientes eram banqueiros, empresários, políticos e celebridades que passavam por Porto Alegre.

No fundo falso, duas caixas de munições eram escondidas. Uma para cada arma. A cartucheira com capacidade de armazenamento de quinze cartuchos, a faca que usava na época de forças armadas e uma lanterna completavam o pequeno arsenal.

Uma explosão foi ouvida, indo até a janela mais uma vez, viu a fumaça escura e a língua de fogo serpentina próximo do prédio de sua irmã. Na televisão, a jornalista no helicóptero informava que um posto de gasolina havia explodido, infelizmente, um caminhão tanque estava no local. Dois prédios ao lado foram derrubados e as ruas banhadas em destroços e corpos.

Com pressa, Fred foi colocando as coisas na mochila. Passou no banheiro para pegar dois pequenos frascos de sedativos e o pouco de remédios que detinha. Na cozinha, foi rápido, enlatados, farináceos, suco em pó e duas garrafas de água foram colocadas na mochila.

Na mesa de saída, a bandana, o par de luvas e a chave da moto encontravam-se dispostas no mesmo lugar que costumava deixar. Os capacetes, Fred deixava no armário do estacionamento, nunca teve problemas em deixar os itens lá. O segredo das fechaduras eram todos diferentes, o que evita de engraçadinhos tentarem furtar os colegas condôminos.  Colocando as luvas e guardando a bandana no bolso da calça, girou a chave do apartamento. Ouvia gritos do lado de fora, um pequeno estampido de arma de fogo também foi ouvido. A espingarda estava coberta por um fino pano cinza e presa no compartimento especial para armas longas na mochila. Faca embainhada no suporte de couro e o revólver no coldre.

Com cuidado, abriu a porta e espiou o corredor. Apenas gritos, mas ninguém entrara em seu campo de visão. Com sutileza, passou para o corredor e trancou seu apartamento por fora. Gritos fervorosos eram escutados na curva do corredor, o alvoroço parecia envolver ao menos meia dúzia de pessoas. Passo a passo, Fred foi se esgueirando até a quina da parede para o corredor adjacente.

A tétrica visão que teve, foi de um de seus vizinhos e alguns desconhecidos devorando os corpos de outros dois condôminos. Não havia o que fazer por aqueles dois infelizes que, dilacerados pelas presas assassinas de seus irracionais semelhantes, jaziam diante da morte.

Fred olhou ao redor, as lâmpadas de led do andar ainda estavam acessas, indicando que ainda a energia não havia sido cortada. Entre dois apartamentos da parede oposta, o outro elevador do andar apitou, avisando que faria o trajeto até o térreo. Sendo o caminho mais rápido, Fred se apressou para apertar o botão. Conseguira no último instante, por muito pouco não perderia a condução.

As portas do elevador se abriam, Fred que o ia adentrar, ficou paralisado. Uma jovem moça de seus vinte anos tinha seu pescoço mordido. As paredes eram tingidas com sangue fresco, mais dois corpos eram literalmente comidos por outros três. Os olhos da menina pediam socorro, erguendo seu braço direito tentava alcançar futilmente Fred.

A criatura que se deleitava na carne macia e jovem, olhou de soslaio para o homem. Largando do corpo feminino que escorreu até cair sentada ao chão, o canibal virou-se e vagou para próximo de Fred.

Assustado, ainda mantinha seu olhar na menina que parecia tanto sua mãe quando nova. A cena do erguer do seu braço, o fez relembrar do mesmo gesto que sua mãe fez no acidente de treze anos atrás. Talvez por medo ou por algo que somente ele sentia, salvou naquele fatídico dia apenas sua irmã caçula, Elisa.

Com as mãos, a criatura o pegou pela gola do sobretudo verde musgo que usava. Quando se preparava para abocanha-lo, Fred voltou a si e segurou com as mãos a cabeça do humano demoníaco. Sentia o bafo fedorento de podre das entranhas, o cheiro era expelido pela boca pintada de sangue viçoso que pingava em quantidade considerável.

Desequilibrado, Fred caminhou para trás até se chocar com a parede. A criatura tentava abocanhar seu rosto, a força daquele ser era algo fora do comum. Possuído de um estranho instinto assassino, emitia também um urro abafado.

Resistindo como podia, Fred observou sobre o ombro do ser que, os seus semelhantes se levantavam aos poucos. Inclusive a jovem que a pouco caíra morta, esguichando sangue de seu pescoço. Não restava mais tempo, o ex militar conhecedor e brigão por natureza, acertou uma boa joelhada na barriga de seu atacante. O golpe foi irrisório ao relevar a dor sentida, mas o impacto foi suficiente para afastar a criatura. Aproveitando-se do impulso, acertou um soco no queixo, agora era seu adversário que foi desequilibrado. Para os outros canibais, faltava muito pouco para saírem de dentro do elevador. Fred, sem hesitar aplicou uma solada no peito do seu atacante. O golpe foi poderoso o suficiente para derrubar os desengonçados comedores de carne humana. Aproveitando disso, Fred entrou no elevador e apertou o botão de térreo.

Como a condução não ia diretamente para o subsolo, estaria livre de cruzar com eles novamente. Enquanto saia, sentiu fortes dedos agarrarem seu tornozelo. Olhou para trás e a jovem que havia sido morta, tinha a mesma expressão assassina do seu algoz.

Isso só pode ser brincadeira, pensou Fred na mesma hora. As portas do elevador estavam prestes a se fecharem, então usando de toda sua força arrastou a jovem ao se jogar pela porta. Caído no chão, virou-se e viu o elevador descendo e o corpo feminino ser separado em dois. Para sua surpresa, ela continuava viva. Suas mandíbulas batiam sem harmonia como um filhote de predador, ainda não tinha a prática da mordida apesar do instinto animalesco presente nos olhos misteriosos que Fred havia visto em seu sonho.

Com o tempo correndo, não perdeu tempo admirando a atroz criatura. Se levantou e correu até as escadarias de emergência. No instante que acessou a área das escadas circulares, viu um corpo sendo arremessado de algum andar superior. Bisbilhotou o que acontecia mais acima, algumas pessoas pareciam lutar contra zumbis como pensou Fred.

Não teria como ajuda-los, nem sabia se estariam vivos até ele chegar lá. Voltou a tomar sua jornada, desceu com rapidez pelos degraus do seu andar para o sexto, quinto e consequentemente o quarto. A chegada no terceiro andar foi barrada por um trio de zumbis se banqueteando com as entranhas de algum estranho para Fred, o mal-aventurado deve ter tentado se refugiar e sem recursos, não conseguiu lutar.

Hora de fazer um teste, julgou Fred. Puxando o revólver da cintura e se manteve na distância segura. Mirou na cabeça do zumbi mais à direita, o dedo indicador da mão direita deslizou sem incerteza pelo gatilho. A bala percorreu o cano e foi cuspida pelas chamas, acertando em cheio a nuca. O projétil abriu um buraco de uma polegada, mas o cérebro foi cortado de ponta a ponta. Antes de dar a janela de oportunidade para os dois outros, Fred alvejou o segundo e já avançando empurrou com o pé o terceiro que se levantava. Mais uma vez puxou o gatilho.

— É realmente como nos filmes – sorriu de lado.

Com o caminho livre, passou pelo terceiro andar com tranquilidade. Chegando no segundo andar, ouviu gritos pedindo socorro. Passou pelo andar em direção ao primeiro, mas travou indeciso se continuava ou se retornaria para acudir quem precisava de socorro. Dando um murro no corrimão, deu passadas maiores ao retornar para a entrada do andar. Olhou com cuidado pela janela que, manchada em escarlate por uma palma humana. Entre a mão de sangue, não avistou nenhuma ameaça, talvez os zumbis estivessem vagando pelos apartamentos abertos, visto a enorme quantidade de linfa avermelhada no chão. O grito de socorro era transmitido do 202, um dos mais próximos a entrada. Desta vez não poderia fazer tanto barulho, sacou sua faca da bainha e trocou de mão o revólver, assim segurando a faca com a mão direita. Mesmo sendo ambidestro, por experiência militar, era melhor manter a arma de fio na mão oposta ao lado que entraria no apartamento.

Entrando no corredor, imediatamente encostou-se de lado na parede. Esperto, foi como se escorregasse na parede bege. Com furtividade espiou para dentro do apartamento. Dois zumbis forçavam a porta do banheiro. Não duraria muito, pois feita de plástico e sanfonada, poderia facilmente ser solta dos encaixes superiores devido à sua fragilidade.

Entrou sem ser notado, passando entre o balcão e o sofá golpeou com força o crânio do mais próximo com a faca. O zumbi aparentava ter um bom trabalho quando vivo, vestia-se bem e o terno de boa qualidade. Menos um. O segundo tinha um estilo mais metaleiro, camiseta preta com logo de uma banda de metal rock, magro de barba crespa e cabelos longos.

Com destreza, Fred arrancou a faca do crânio a girando em sua mão. Deixando a empunhadura e lâmina em sentido de perfuração na horizontal, assim o fez. O aço frio da faca entrou em cheio pela cavidade ocular e atingiu o cérebro. Estava feito, quem quer que seja foi salva.

Lentamente a porta do banheiro se abria. Dela, uma jovem de ascendência oriental com seus vinte anos ou talvez menos olhava assustada para o resultado do feroz ataque.

— O que? Assustada? – Perguntou Fred em um tom tênue entre zombaria e seriedade.

Ela assentiu que sim com a cabeça, vestia em seu torso uma camisa social feminina com pequenos babados centrais. Na parte inferior, uma saia reta preta e sapatilhas da mesma cor.

— Eu estava saindo para o trabalho, aí ouvi gritarias e fui até a porta – ela olhou para o homem de terno – ele fugia e caiu rente a minha porta. O outro rapaz vinha atrás dele, quando me dei conta, os dois tentaram me atacar – a jovem contou saindo aos poucos do estado de choque.

— Então você correu até o banheiro e gritou por ajuda, certo?

— É – respondeu sem jeito.

— O pior lugar possível – ele foi até a entrada para conferir se nenhum deles mais se aproximava do apartamento. Então fechou a porta e a trancou por dentro – se eles não derrubassem a porta, você morreria sem ar. Pelo menos teria água por algum tempo.

— No desespero só pensei em correr.

— Errada não está, fez bem ao sair correndo. Muita gente nesse prédio foi pega – contou Fred.

— Você sabe o que é isso? – Perguntou curiosa.

— Vai parecer besteira, mas é como nos filmes. São zumbis – ele riu de lado.

— Você diz como Resident Evil e The Walking Dead? – Questionou com certa surpresa.

— Pois é – ele suspirou – só acertando eles aqui – colocou o indicador na própria cabeça – eles morrem de vez.

— Como você sabe disso? Testou antes de me salvar?

— Digamos que sim, na verdade foi um chute ao vento. Se não fosse isso, não sei o que poderia resolver – confessou bastante aliviado.

— Estou impressionada, não acabei agradecendo, me desculpe. Mas obrigada por me salvar – a garota agradeceu com timidez.

— Aliás, me chamo Frederico. Mas pode me chamar de Fred – ele estendeu a mão limpa para a moça – eu moro no sétimo andar, no 705.

— Prazer, Fred. Eu sabia que já tinha te visto em algum lugar. Eu sou Hae, Yasmin Hae – ela soltou um leve sorriso.

— Japonesa?

— Coreana.

— Me desculpe, eu realmente me confundo com os sobrenomes – Fred guardou a faca na bainha.

— Tudo bem – ela riu brevemente – é normal as pessoas se confundirem com isso – Yasmin se sentou e gesticulou para Fred fazer o mesmo.

— Espera, tu não és a menina escritora? – Indagou cerrando os olhos na tentativa de relembrar o rosto dela – não me é estranha.

— Sou eu mesma – mais uma vez mostrava timidez olhando para o chão sem jeito – como você sabe?

— Dona Marlene, a fofoqueira desse condomínio sabe mais das nossas vidas do que nós mesmos. Eu apelidei de Correio de Marlene, a velha é mais rápida que os noticiários e as redes sociais – descontraiu Fred zombando da mulher do delegado Paulo. O mesmo havia socorrido Fred, quando acabou preso por agressão ao vizinho do 711.

— É – Yasmin sorriu – ela falou bem pelo menos?

— Muito bem, disse que você tem um talento e tanto.

— Fico lisonjeada. Nesse caos todo, será que ela está bem? Chegou a vê-la? – Sondou Yasmin que nutria boa amizade com a mulher. Vez ou outra, recebia bolo e até mesmo comida quente feita por dona Marlene, uma cozinheira de mão cheia. Como Yasmin morava sozinha e dividia seu tempo entre faculdade e estágio no maior meio de comunicação do RS, se alimentava de maneira desajeitada. Quando Marlene soube, passou a mimar a garota com saborosos pratos.

— Infelizmente não a vi. Espero que esteja bem em algum lugar, hoje é quinta. Acho que é o dia de folga de Paulo e eles devem ter ido passear – explicou Fred.

— Ah sim. Que bom, né? – Yasmin não era acostumada a conversar com estranhos, muito menos quando estavam armados em meio a um apocalipse zumbi.

— Sim, Paulo é um ótimo atirador. Vai defender ambos bem – Fred colocou a mão no bolso e retirou o celular – se me permite, vou fazer algumas ligações.

— Claro, claro. Fique à vontade – ela respondeu mirando o loiro que soltava sua mochila e ia em direção a cozinha, onde era mais reservado.

Fred ao chegar na cozinha se encostou na pia, haviam muitas mensagens nos aplicativos. Ao tentar acessar, a falta de internet o impediu. Com raiva, crispou os lábios e decidiu ligar para a sua irmã. Mais uma vez, apenas tocou. Indo na sua agenda, decidiu ligar para os amigos mais próximos.

— Vamos lá, Heitor. Atende logo – passaram-se alguns segundos, quando Fred iria desistir, foi atendido.

— Fred? – a voz suave do garoto de médios cabelos escuros com dois brincos pretos e rosto liso atendeu o telefone.

— Heitor, tu está aonde?

— Eu vou ir ver o Bruno, ele não atende o telefone. Acabei de pegar a chave do carro e vou para lá – Fred conseguiu ouvir o barulho da porta da casa de Heitor se fechando – morar no fim de mundo deve estar prejudicando o sinal.

— Te cuida cara, está um inferno e é pior do que um simples distúrbio – Fred foi até a janela da lavandeira que ficava anexada na cozinha e viu o caos total nas ruas da cinza Porto Alegre.

— Vai me dizer que é como o Bruno falava, as teorias da conspiração sobre zumbis e essa parada toda? – Questionou com sátira - Eu vi na televisão que as pessoas enlouqueceram. Tem gente comendo gente, até mesmo parecem zumbis – brincou Heitor do outro lado da linha.

— É por aí mesmo. Quase me pegaram – Fred noticiou.

— Capaz? Te machucou ou algo do tipo? – O tom de Heitor era de preocupação.

— Nada. Eu estou bem, dei um jeito neles. É como nos filmes mesmo, acerta a cabeça que eles caem – Fred revelou ao sair de perto da janela.

— Isso é muita loucura – Heitor respondeu do outro lado da linha, pelo som da porta do carro batendo, já partiria para encontrar Bruno.

— Demais, mano. Se alguma dessas coisas chegar perto de você, corre.

— Sou jogador de futebol, correr é comigo mesmo – brincou ao dar partida no carro – ainda está no teu apartamento, Fred?

— Vou ir para o apartamento da Sara. É uma pernada, mas irei de moto. Acho que consigo chegar antes do anoitecer.

— Qualquer coisa me avisa, te cuida também.

— Beleza, Heitor – riu Fred ao abrir a torneira e lavar as mãos – farei isso.

A ligação foi desligada por Fred. Saber que Heitor estava bem era um alivio, faltava ligar para Martin e Carol. A bateria do celular de Fred tinha pouco mais de 50% de carga, teria que ser breve nas ligações.

Rapidamente, digitou o número de Martin e ligou.

— Martin, onde tu estás cara?

— Bah, Fred. Eu trancado em uma lanchonete aqui na Avenida Ipiranga, perto do shopping – o rapaz de meia altura com cabelo crespo e pele negra contou ao amigo.

— As coisas estão feias por aí? – Perguntou Fred sem esperança.

— Te contar que sim, pior do que eu pensava. As pessoas estão atacando uma as outras, a polícia mandou entrarmos e não abrir a porta até eles voltarem. E até agora, nada.

— Provável que eles demorem, a cidade virou de cabeça para baixo. Sabe aqueles jogos de zumbi? É como se estivéssemos em um – enfatizou Fred.

— Então estamos em um apocalipse zumbi? Meu dia melhora a cada dia, tomei uma fora ontem, esquece de fazer rancho e cá estou eu. Esperando um hambúrguer para entupir minhas veias de gordura norte-americana – brincava ao mesmo tempo que lamentava a situação.

— Vai melhorar, eu espero – tentou fazer o amigo se sentir melhor – conseguiu falar com alguém? Se não tentou, liga pro Heitor. Ele está de carro e vai até o Bruno. Eu preciso ligar para a Carol antes que minha bateria termine.

— Beleza, Fred. Vou fazer isso mesmo – suspirou do outro lado da linha – tenho que ligar pro meu primo, o Beto. Vai que ele está por perto e me busca.

— Show, te cuida Martin. Assim que eu conseguir recarregar o celular, tento entrar em contato de novo – Fred desligou e no marco da porta da cozinha, Yasmin aguardava em pé.

— Pois não?

— Eu ouvi que você vai ir até a sua irmã. Pode me levar com você? – Perguntou com vergonha e cabisbaixa.

— Sem chance, muito perigoso lá fora – respondeu enquanto procurava o contato de Carol.

— Por favor, eu não quero ficar sozinha aqui. 

— Te garanto com toda a certeza que é melhor sozinha aqui do que correndo dessas coisas na rua sem saber o que te espera na próxima esquina – ressaltou Fred olhando para o seu celular.

Yasmin se aproximou e agarrou em suas mãos, os olhos tristes transmitiam a sinceridade daquele sentimento. Fred notou além disso que a beleza de Yasmin era admirável. O rosto tão belo, contrastando a pele perfeita, a boca desenhada por um dos mais talentosos pintores do movimento Renascentista e os mesmo olhos, castanhos mel pareciam adornos brilhantes completando o encanto vindo dela.

— Por favor – ela suplicou quase em prantos. Fred voltou a si, ainda encantado com a beleza de Yasmin.

— Você venceu, eu te levo comigo – respondeu e na mesma hora, foi abraçado por ela. Sentiu o pequeno corpo dela juntar-se ao seu.

— Me desculpe – pediu sem jeito – obrigada, Fred. De verdade – ela agradeceu.

— Não precisa se desculpar – o loiro sorriu com honestidade – aliás, eu trocaria de roupa. Saias retas são ruins se precisar correr – Yasmin acenou e foi apressada para o quarto trocar de vestimenta e se preparar para sair.

Fred então ligou para Carol. Foram alguns segundos de espera, até que a menina de cabelos azuis atendeu.

— Fred! Pelo amor de Deus, você está bem? – Carol parecia agitada, no fundo Fred conseguia escutar um forte alvoroço.

— Tive alguns problemas, mas estou. Onde você está?

— Eu estou com o pai e a mãe aqui no clube. Estava tendo o evento com o prefeito e alguns cabeças dele. Aí a polícia chegou junto de um batalhão inteiro do exército. Eu vi na internet que tem “zumbis”, é real isso? Tem um monte de vídeos e fotos rolando por aí – A garota perguntou.

— É, tipo isso. Trombei com alguns deles aqui no prédio – revelou ao olhar para o corredor e ver Yasmin trocando de roupa com a porta do quarto aberta. Recuou e voltou para a cozinha.

— Meu Deus, Fred! Não te aconteceu algo? Tem certeza? Não precisa esconder se algo aconteceu contigo – disse com a voz falhada de tristeza.

— Não aconteceu nada, meu bem. Eu dei um jeito neles, foi até que fácil. Mas sim, se te morderem você vira um deles – o ex militar passou a mão na testa – então fique longe deles e se precisar, acerte a cabeça. Essas coisas não estão mais vivas.

— Saber que você está bem, me deixa mais tranquila. Mandei mensagem para os rapazes, só consegui falar com Heitor. Ele disse que ia falar com Bruno e tal – Carol caminhava junto de seus pais até o píer.

— Falei com Martin e Heitor, eles vão conseguir se virar. Confio neles – garantiu Fred checando os armários da casa de Yasmin.

— Tomara viu. Aqui as coisas estão sob controle. Tem pessoas que moram no entorno tentando se refugiar aqui – um disparo – o que foi isso? – Perguntou Carol para a mãe dela.

Outro disparo foi efetuado, seguido de outro e depois uma dúzia deles.

— Carol! O que aconteceu aí? – Fred se assustou com estampidos de fuzil.

- Parece que o exército atirou, não sei. Algo do tipo, mas estão mandando entrarmos nos barcos e irmos para o meio do Guaíba – Fred ouvia vozes mais agitadas – Fred – ela chamou o loiro mais uma vez.

— Eu estou aqui pequena – Fred tentou conforta-la.

— Eu estou com medo – falou tão baixo que murmurou sobre o sentimento que sentia.

— Eu sei que está, todos nós estamos – ele baixou a cabeça e se apoiou no armário – faça o que eles pedem e se esconda.

— Sim – Carol ficou em silêncio por poucos segundos – se cuida, ?

— Pode deixar – agora foi a vez de Fred ficar em silêncio – Carol – ele a chamou.

— Eu – respondeu com tristeza.

— Não importa para onde você for, eu irei te achar – assegurou – apenas fique segura – do outro lado da linha, o rosto triste ganhou um sorriso espontâneo de felicidade.

— Sei que sim, você sempre me encontrou – respondendo em alusão a um sequestro que ela sofreu, pois, seu pai era um dos homens mais poderosos do Estado e Fred foi a quem resgatou – quando puder, me liga para saber como está?

— Ligo sim, Carol.

— Bom, eu tenho que ir – ela suspirou – te amo, Fred – pela primeira vez, ela soltou aquelas palavras. Ambos não namoravam, mas constantemente ficavam juntos, praticamente a um ano já vinham entre beijos e noites juntos.

— Eu também, azulzinha – apelido que Fred deu a ela gostar muito de uma das principais personagens de um anime que ela o fez gostar de assistir.

— Até mais, trovãozinho

– desta vez, foi ela que o apelidou com o nome de um personagem do mesmo anime.

A ligação se encerrou.

Fred checou a bateria, 44% de carga. Guardou o aparelho eletrônico no bolso da calça e retirou o que achava de mais importante. Enlatados, massas pré-cozidas, molho de tomate, algumas sardinhas e bolachas recheadas. Na geladeira, tirou algumas garrafas de 500 ml e as colocou em sua mochila. A quantidade de comida recolhida não era alta, mas daria para alguns dias se racionada calculando que quatro pessoas comessem.

Quando saia da cozinha, trombou com Yasmin. Com outra mochila nas costas, carregava pertences pessoais e vestida a caráter. Calças longas, moletom escuro e uma touca.

— Agora sim parece uma sobrevivente de um apocalipse zumbi – brincou com Yasmin. Em resposta, a menina com traços asiáticos fez uma careta e uma pose desajeitada, fazendo Fred rir.

— Os filmes e séries ajudaram muito – confirmou ao sorrir.

— Então está pronta? – Fred foi até a porta.

— Estou!

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