Capítulo um
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“Mudaram as estações
E nada mudou...”
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Quatro anos depois...
10 de dezembro
Eu não sabia muito bem o que me esperava quando o carro onde eu estava chegasse ao seu destino. Trazia em mim apenas uma certeza: definitivamente, não seria algo bom.
E odiava a minha tia por estar fazendo aquilo comigo.
Sabia bem que cuidar de uma adolescente não era tarefa fácil, mas era consciente de que eu dava o mínimo possível de trabalho e de despesas. Fazia bico como babá dos filhos de uma vizinha, preparava cupcakes para vender na escola pública onde estudava, desenhava e costurava as minhas próprias roupas (meu sonho era no futuro ser estilista), e quase nunca ficava doente. Podia me considerar uma adolescente bem econômica. E também não tinha problemas de convivência com a minha tia, que assumira a minha criação há quatro anos, desde que minha mãe morrera. Sendo assim, ainda não era capaz de compreender os motivos de estar sendo submetida a tamanha punição.
— Melhora essa cara, Ni! — minha tia repetiu aquele pedido pela milionésima vez, sem desviar os olhos da estrada enquanto dirigia.
— Você está querendo se livrar de mim, que cara quer que eu faça? — rebati.
— Não vou me livrar de você. Será por menos de um mês. — Na verdade, seria por exatos quinze dias. Sim, eu estava contando. Para mim, aquilo equivaleria a uma eternidade. — Venho te buscar logo depois do Natal.
— Mas o que foi que eu fiz, tia? Faço qualquer coisa para resolver. Você não precisa me castigar desse jeito.
Tia Fernanda sorriu, embora fosse óbvio que não existia qualquer graça na situação.
— Passar alguns dias com a sua avó não é um castigo, Ni.
Óbvio que era, sim, um castigo. Provavelmente para as duas partes, aliás. Minha avó e eu sequer nos conhecíamos, porque ela nunca fizera qualquer questão disso. Nem mesmo quando a minha mãe morreu ela quis me ver. Por mais que tia Fernanda garantisse que sua mãe, dona Sandra, havia concordado em me hospedar em sua casa, eu não conseguia me ver sendo bem-vinda.
A viagem até lá, que já seria normalmente longa, pareceu durar uma eternidade. Um caminho que passara por estradas rodeadas por quilômetros de uma total falta de civilização, com muitas montanhas e bois pastando. Minha avó morava em um sítio localizado em uma área rural perdida no interior do estado de São Paulo. Minha mãe costumava me contar sobre a infância e a adolescência nadando em lagos, subindo em árvores e andando a cavalo. Lembrava do quanto tal realidade sempre me parecera tão antiquada e distante, e agora estava prestes a ser imersa naquele mundo paralelo.
Um homem – provavelmente funcionário da minha avó – abriu o enorme portão de madeira por onde o carro entrou, estacionando diante de uma casa antiga de dois andares, com suas paredes pintadas de um amarelo já meio desbotado do tempo. Uma mulher saiu de lá para nos receber e logo percebi que era mais uma funcionária. Ela cumprimentou a minha tia com um abraço, o que me fez concluir que elas já se conheciam. Depois parou diante de mim, abrindo um grande sorriso.
— É a filha da Fabiana? Nossa, como é linda! Parece um pouco com a mãe.
Sabia que era uma mentira educada. Fisicamente, tinha muito pouco da minha mãe, que me contava sobre eu ter os cabelos negros e ondulados e os olhos castanhos do meu pai, um namoro rápido que ela teve no final da adolescência, que não cheguei a conhecer.
Os dois funcionários nos ajudaram com as malas e entramos na casa. Uma senhora nos aguardava na sala. Os olhos azuis como os da minha tia e da minha falecida mãe me encararam por um rápido momento, sem esboçar maiores emoções, e logo se desviaram. Olhei para a tia Fernanda, que também estava séria, e a vi se aproximar da minha avó, parando diante dela.
— Oi, mãe. — Foi tudo o que ela disse antes de abraçá-la. Dona Sandra retribuiu sem muita empolgação. Observei que as mãos dela tremiam e me perguntei se seria de nervoso ou pela idade. Ela já passara dos setenta anos, afinal.
Quando se afastaram, minha avó voltou a me olhar e, quando enfim se pronunciou, o que disse foi algo bem diferente do que qualquer coisa que eu esperasse ouvir.
— Chegaram na hora, já estou quase terminando de preparar o jantar. — E sumiu por uma porta, que imaginei que sairia na cozinha.
Sabia que ela tinha muitos funcionários por ali, mas que sempre fizera questão de cozinhar. A vida inteira, só vira minha avó por fotos, mostradas pela minha tia – já que com a minha mãe ela rompera de vez o contato. E sempre achei que, pela sua expressão desconfiada, ela certamente era o tipo de pessoa que temia até mesmo que alguém envenenasse sua comida. Acreditava que por isso é que ela fazia questão de cozinhar.
Tia Fernanda pediu que eu esperasse ali – como se eu tivesse qualquer outro lugar para ir – e a seguiu. As duas começaram com uma conversa em voz baixa, a qual eu mal era capaz de ouvir. E também não queria, por isso passei a olhar ao meu redor em uma forma de me distrair enquanto analisava o ambiente. A sala era grande e toda tomada por móveis bem antigos: dois sofás de dois lugares, uma poltrona, uma mesa de centro feita de madeira rústica e uma enorme estante do mesmo material, com uma velha TV de tubo, um aparelho de som que na certa não tinha menos de vinte anos de existência, alguns bibelôs e livros espalhados pelas demais prateleiras. Atrás dos sofás havia uma cristaleira com pratos e outras louças decoradas com motivos clássicos. Foi impossível deixar de pensar que minha mãe passara a maior parte de sua vida naquela casa, onde nascera e vivera até os dezoito anos, quando engravidou e foi expulsa pelos pais altamente conservadores que não admitiam que uma de suas filhas fosse mãe solteira. Minha mãe fora a maior vergonha da família, sendo simplesmente escorraçada do próprio lar, como se tivesse cometido um crime. Só não foi parar na rua porque sua irmã, quatro anos mais velha, que já havia se mudado para a capital há dois, a abrigou em seu apartamento. Logo depois que eu nasci, minha mãe conseguiu um emprego e morou com ela por mais um ano, até que, um pouco mais estabilizada, conseguisse alugar um apartamento no mesmo prédio.
Voltei a morar com a minha tia aos doze, quando minha mãe perdeu a luta dela para o câncer que a castigou durante muito tempo. Tanto, que eu sequer possuía lembranças dela sem estar doente. A imagem que minha mente guardava era a de uma mulher extremamente magra, com os cabelos sempre curtos e o rosto envelhecido precocemente para alguém de apenas trinta anos.
Mas sempre soube que algo a castigava mais do que a doença contra a qual lutara por tanto tempo: o abandono dos pais. Quando meu avô morreu, ela recebeu a notícia pela minha tia, acompanhada por um recado da minha avó que a alertava para não comparecer ao velório, pois não seria bem-vinda.
Então, por mais que soubesse que minha mãe vivera momentos felizes de sua vida naquela casa, também sabia que ali habitava a sua maior dor.
Depois de uns dez minutos, minha tia retornou à sala. Pela expressão em seu rosto, a conversa não fora das melhores, mas ela forçou-se a disfarçar, abrindo um leve sorriso.
— Quer tomar um banho e trocar de roupa? O jantar já está quase pronto.
Movi a cabeça em negativa.
— Não estou com fome. Quero, sim, tomar um banho, e depois quero ir pra cama.
Resignada, ela me levou até um quarto no andar de cima para onde minhas malas já tinham sido levadas. Havia duas camas de solteiro, cada uma já com cobertores e toalhas dobradas, além de sabonete, pasta de dentes e shampoo, como um hotel. Como um lugar frio e impessoal onde eu iria apenas me hospedar por alguns dias, sem qualquer proximidade maior com a dona da casa.
Tia Nanda disse algo ao qual não dei atenção e saiu. Abri uma das malas, onde peguei um pijama. Apanhei o “kit banho” sobre a cama e entrei no banheiro. Ficava feliz por ficar em uma suíte. Isso me poupava de precisar sair muitas vezes do quarto pelo período em que estivesse naquela casa. Depois do banho, me enfiei embaixo das cobertas de uma das camas, pondo-me a fitar o teto. Avistei inúmeras estrelas espalhadas por ele, e fiquei pensando que tal decoração era bem a cara da minha mãe. Ela amava estrelas.
Após alguns minutos, a porta do quarto se abriu e apressei-me em fechar os olhos e fingir que estava dormindo. Tal atuação não funcionou muito bem.
— Não adianta fingir, Niara. Sei que está acordada.
Quando abri os olhos e encarei minha tia sentada na cama ao lado da minha, repeti a pergunta que já havia feito inúmeras vezes:
— É sério, tia... por que está fazendo isso comigo?
E, como sempre, a resposta era extremamente vaga:
— Será por pouco tempo, Ni. Você volta para casa comigo depois do Natal.
Quinze dias. Uma vida inteira.
Antes que eu tivesse tempo de fazer qualquer outra pergunta, tia Nanda mudou o assunto:
— Você escolheu exatamente a cama que era da sua mãe, sabia? E eu dormia nesta daqui.
— A casa é tão grande. Por que vocês dividiam o quarto?
— Porque a minha irmãzinha tinha medo de ficar sozinha no escuro. Ela era valentona e aventureira durante o dia, mas de noite, morria de medo de fantasmas.
Não consegui conter um leve sorriso. Medo de fantasmas soava mesmo como algo bobo. Porém, quem seria eu para julgar? O meu medo era de temporais. Relâmpagos e trovões me amedrontavam desde pequena, mas o pânico piorou desde a noite em que minha mãe morreu. Estava chovendo muito, a pior chuva que eu já presenciara na vida. E sabia que minha mãe nunca mais estaria lá para me abraçar e garantir que tudo ficaria bem.
— Tia, só queria que você me respondesse por que, por que quer tanto que eu passe tantos dias na casa de alguém que eu nem conheço?
— Ela é sua avó.
— Ela é uma desconhecida para mim, assim como eu sou para ela.
Ela respirou fundo, parecendo tomar coragem para enfim me contar:
— Sonhei com a minha irmã.
Isso não respondia absolutamente nada.
— Sonho com a minha mãe o tempo inteiro.
— Eu também, mas desta vez foi diferente, Ni. Foi muito intenso e muito real. Ela me fez prometer que traria você para passar o Natal com a sua avó. Que deixaria você conviver com ela durante alguns dias, para se conhecerem e se aproximarem.
Eu mal podia acreditar no que ouvia.
— Uma promessa feita em um sonho, tia? Jura? Jura mesmo?
— Sei que parece uma bobagem.
— Estou espantada por você não ter certeza de que não parece. É uma grande, enorme bobagem.
— Não sei explicar o que senti, Ni. Apenas acordei sabendo que precisava fazer isso. E tive ainda mais certeza quando liguei para a minha mãe e ela simplesmente concordou, sem fazer perguntas, sem mostrar qualquer resistência à ideia.
— E a minha resistência? Não conta?
— Era importante para a sua mãe, Ni.
— E minha mãe está morta, tia. Entendo que ela aos dez ou doze anos acreditasse em fantasmas, mas não você, aos quase quarenta!
— Antes de morrer... apenas poucos meses antes, a Fabi me contou sobre o quanto queria te trazer para cá, para conhecer o lugar onde ela nasceu e cresceu. Era importante para ela há muito tempo. Ela já havia perdoado a sua avó. Perdoe também.
— Ela não esteve ao lado da filha quando ela estava doente.
— Minha mãe não sabia da doença. A Fabi me proibiu de contar para ela.
— Proibiu porque sabia que a mãe não se importava. Tanto que ela não apareceu nem no enterro.
Minha tia soltou um suspiro, que demonstrava seu cansaço de prosseguir com a discussão que já tinha sido travada por nós duas inúmeras vezes.
— É só até o Natal, Ni. Vai passar rápido, prometo.
— Eu te odeio por me obrigar a passar por isso, tia!
Depois da declaração, virei-me de lado e fechei os olhos. Não queria prosseguir em uma conversa que já sabia que não levaria a lugar algum. Só me restava aceitar. E torcer para que os próximos quinze dias se passassem o mais rápido possível e aquele pesadelo chegasse logo ao fim.
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Capítulo dois* * * * * * * * * * * *“Mas eu sei que alguma coisa aconteceuEstá tudo, assim, tão diferente...”* * * * * * * * * * * *11 de dezembro Se o primeiro dia ali já fora difícil, sabia que a partir do segundo a coisa só iria piorar, já que minha tia já estaria de volta para São Paulo logo depois do almoço. Tinha ido até ali apenas para me levar e me abandonar sozinha em um casarão antigo perdido no meio do nada e habitado por funcionários formais e uma senhora que mal me dirigia a palavra ou sequer conseguia me olhar por mais de um ou dois segundos. Depois de
Capítulo três* * * * * * * * * * * *“Se lembra quando a gente chegou um dia a acreditarQue tudo era pra sempreSem saber que o ‘pra sempre’ sempre acaba...”* * * * * * * * * * * *13 de dezembro Meu dia, desta vez, começou um pouco mais cedo. Ainda não eram oito da manhã quando acordei – o que era praticamente madrugada em períodos de férias – e me levantei. Arrumei a cama, abri a janela e senti o sol batendo em meu rosto com bem mais animação do que no dia anterior. Peguei minhas roupas, ainda nas malas (não tinha tirado praticamente nada delas ainda), e fui para o banheiro, onde tomei um banho. Desci as escadas e, novamente, Carmem me chamou para tomar café, de novo
Capítulo quatro* * * * * * * * * * * *“Mas nada vai conseguir mudarO que ficou...”* * * * * * * * * * * *14 de dezembroMeu passeio matinal desta vez foi feito dentro da propriedade da minha avó. Como a casa ficava bem à frente do terreno, não tinha ainda explorado a parte dos fundos, que era enorme. O local era um sítio, afinal, e possuía até mesmo uma nascente de água, galinhas e porcos e um estábulo infelizmente vazio. Minha mãe me contava sobre os cavalos do meu avô. Aparentemente, já deviam ter morrido também ou minha avó os doara ou vendera a alguém, pois não estavam mais lá. O que era uma pena. Não sabia andar a cavalo, mas adoraria conhecê-los.Voltei para casa, como de costume, de
Capítulo cinco* * * * * * * * * * * *“Quando eu penso em alguémSó penso em você...”* * * * * * * * * * * *15 de dezembroCarmem abriu um sorriso enorme quando contei para ela, durante o café da manhã, que eu iria decorar a casa para o Natal. Ela reafirmou o que eu já sabia: que minha mãe, enquanto morava lá, fazia isso todos os anos. Disse que estava ansiosa para ver aquela casa tendo vida novamente. Mas não conversamos muito, porque ela permanecia ainda enrolada com a faxina geral. Neste dia um funcionário começaria o trabalho de reparos e retoque da pintura externa e ela queria ficar por perto para não deixar fazer “muita sujeira” (como se fosse possível). Contudo, atendeu ao meu pedido de me arrumar uma trena. Prec
Capítulo seis* * * * * * * * * * * *“...E aí, então, estamos bem...”* * * * * * * * * * * *17 de dezembro Sabia que já era dia, embora o quarto estivesse mergulhado ainda na escuridão devido às cortinas fechadas. Com isso, as estrelas presas ao teto ainda brilhavam, embora nem mesmo elas fossem capazes de me animar. No dia anterior, fiquei em companhia das lembranças da minha mãe. Olhei os materiais de escola dela, além das revistas, a maioria sobre artesanato ou de fotos de artistas que ela gostava. Isso ajudou um pouco a confortar a minha solidão. Fiz alguns desenhos também, de roupas no estilo dos anos 2000, como as que encont
Capítulo sete* * * * * * * * * * * *“Mesmo com tantos motivosPra deixar tudo como está...”* * * * * * * * * * * *21 de dezembro18 de dezembro de 2000Ontem não tive ânimo para escrever nada aqui, nem para iniciar a decoração de Natal, por conta de uma briga com a minha mãe. Daquelas bem feias! Eu a amo muito, e sei que ela também me ama, mas nossa convivência às vezes é tão difícil. Ela tem uma cabeça de quem vive ainda no século retrasado e por mais que eu tenha muita paciência para lidar com ela, tem horas que simplesmente não dá!Fico pensando no tanto que sinto inveja da Nanda
Capítulo oito* * * * * * * * * * * *“Nem desistir, nem tentarAgora tanto faz...”* * * * * * * * * * * *22 de dezembro O início do meu despertar se deu pela dor latejante no meu pé direito, juntamente ao frio que fazia o meu corpo inteiro tremer. A claridade batia em minhas pálpebras ainda fechadas, fazendo meus olhos arderem, mas ainda assim eu não conseguia reunir forças para lutar contra aquilo. Minha cabeça se encontrava confusa, como se as recordações do dia anterior fossem um quebra-cabeças com suas peças embaralhadas sendo unidas de forma lenta, criando aos poucos uma imagem ainda sem muita lógica.&nbs
Capítulo nove* * * * * * * * * * * *“Estamos indo de volta pra casa...”* * * * * * * * * * * *24 de dezembro Sentada no chão do quarto, olhava as fotos que espalhara no chão, organizadas lado a lado em ordem cronológica. Observando a última delas, comparei-a à fotografia em meu celular, tirada alguns anos antes, com minha mãe no hospital. Era a última recordação que tinha dela, que em muito pouco parecia com a menina loira de dezesseis anos que sorria feliz na imagem impressa diante de mim. Aquela menina saudável, livre e feliz que eu tanto sonhava conhecer... sonho que eu, de uma maneira muito incomum, havia realizado.&nb