Capítulo 2

A Capitã se posicionou confortavelmente na poltrona de comando, prendeu os dreadlocks utilizando o próprio cabelo e vestiu o respirador secundário para saltos em hiperespaço. Mal havia travado os cintos de segurança quando percebeu a diferença na atmosfera, a gravidade fora desligada.

As luzes cederam lugar à escuridão e mais uma vez, Polara se perdeu no passado.

*

- Você já realizou um salto em hiperespaço, Dr. Harlam?

- Não, Capitão de Assis, essa será minha primeira oportunidade.

- Vou deixar que a Segundo-Sargento Polara lhe explique sobre os desconfortos que você terá o ‘prazer’ de vivenciar pessoalmente em breve.

Antes de se retirar, o Capitão de Assis deu um sorriso cheio de cumplicidade para a mulher que considerava a mais promissora espaçonauta de sua geração. Polara e Harlam esperaram em silêncio até o barulho de deslizar e lacrar da porta no final do corredor.

- Você devia ter vindo com um traje menos pomposo, será um desperdício de energia a tentativa de remover todo o resto de café da manhã dos bordados, depois que você vomitar.

Harlam sorriu, enquanto estendia as mãos na direção de Alis.

- Parece que estou fadado a, de um modo ou de outro, acabar com a toga manchada, sempre que nos encontramos!

A Sargento acolheu as mãos do Doutor entre as suas, e sorriu, mas, apesar do olhar afetuoso, a voz que saiu da sua boca foi séria e professoral.

- O salto em hiperespaço pode ser muito desconfortável e a primeira experiência é sempre inesquecível, você sentirá uma pressão intensa nos tímpanos enquanto um ruído grave irá preencher todo o ambiente, te impedindo de ouvir qualquer outra coisa. Se você falar, ou até mesmo gritar, será incapaz de ouvir sua própria voz. O salto não dura mais do que cinco ou seis segundos, mas, nesse meio tempo, você será incapaz até mesmo de respirar. O segredo está em não lutar contra essas sensações, relaxe e espere o tempo passar, quanto mais você lutar, maior será o enjoo e a dor de cabeça que seguirão a viagem.

André ouvia atentamente as instruções de Polara, mas a intensidade de seu olhar deixava evidente que ele queria conversar de coisas de natureza mais íntima com a jovem de lábios tão chamativos parada em sua frente.

- Eu sei que é inapropriado e peço desculpas, mas já faz alguns anos desde que tivemos nossa aventura amorosa. Você deve ter mudado muito, assim como eu. Antes eu não era nada, agora, além de ser soldado, sou também um Doutor, especialista em direito interplanetário, em minha primeira missão, ainda que seja somente para estudos. Eu consegui tudo isso, mas eu nunca consegui apagar seu sorriso de minha memória, será que existe a possibilidade de cultivarmos algo, apesar da discrepância de nossos caminhos?

Polara soltou as mãos de André e se afastou um passo. O Doutor se retraiu diante do que considerou ser uma recusa, mas a jovem avançou e o envolveu em um abraço apertado. O corpo de Harlam estremeceu de satisfação enquanto a jovem sussurrava em seu ouvido:

- O espaço é relativo, assim como o tempo. Tudo pode ser moldado e controlado pela vontade do ser humano e a discrepância de nossos caminhos não é nada se comparada à força do que sinto por você.

*

As luzes da nave acenderam e os cabelos de Polara pararam de flutuar, lentamente, conforme a gravidade era reativada, indicando o término do primeiro salto. Polara removeu o respirador.

- Hal, quanto tempo temos até o próximo salto?

O computador não respondeu de imediato, o que fez a Capitã cogitar a possibilidade de que entre as ordens deixadas pelo Marechal à nave, constava uma instrução de que ela não deveria receber informações sobre os planos de viagem. E ela estava correta, no entanto, a inteligência artificial pode ser mais eficiente do que a humana quando se trata de burlar as regras e a demora do computador em responder era apenas o teste lógico de vários raciocínios buscando um que, ao mesmo tempo, preservasse as ordens do Marechal e o permitisse ser fiel à sua Capitã.

- Não estou autorizado a responder essa pergunta. A gravidade será desativada automaticamente dentro de três horas, quando a energia estiver restaurada.

- Hal, não sei por que dizem que estou há muito tempo sozinha, você, com certeza, é melhor companhia que qualquer ser humano.

A intensidade da luz na nave reduziu por um instante. Essa era a maneira habitual do computador dizer que estava lisonjeado.

A espaçonauta soltou o cinto que a prendia à poltrona e despiu o macacão de seu uniforme. Apesar de não ser mais uma mulher jovem e de nunca ter realizado nenhum tratamento para impedir o envelhecimento de seus tecidos, a vida espartana que levava impedia qualquer um de dizer que aquele era o corpo de musculatura bem torneada e pele rígida pertencia a uma mulher de cinquenta anos de idade.

- Hal, gravidade em dois ‘g’, por favor.

Nua, ela observou cada um de seus músculos enrijecer conforme o peso de seu corpo dobrava. Assim que o corpo se acostumou com o novo peso, começou a andar, lentamente pelo ambiente de vinte metros quadrados em que vivia há vinte anos. A caminhada se tornou em um leve trote. O suor escorria por seu corpo, contornado a musculatura rígida. Ofegante, passou a realizar exercícios no solo, primeiro abdominais e, logo em seguida, flexões.

- Hal, gravidade padrão.

Tendo terminado o aquecimento, a Capitã passou a treinar os movimentos de combate no estilo Twisting Heliconiano, comumente subestimado pelos militares que costumam dizer que esse estilo é mais adequado aos psico-historiadores, mas extremamente eficiente, como ela já provara inúmeras vezes em campo de batalha. Os movimentos se repetiam, ora em sequencias pré-determinadas, ora completamente imprevisíveis, até que, realizando um alongamento final, Polara considerou o treino como terminado.

- Hal, sintetize água para um banho, por favor.

- Sinto muito capitã, não estou autorizado a sintetizar água, o procedimento atrasaria a viagem.

- E só agora você avisa, Hal? Poderia ter dito isso antes do treino.

- Peço desculpas, Capitã, mas você sabe que, em naves espaciais, o banho é apenas um hábito de relaxamento meramente sociocultural, não há bactérias no ambiente que possam causar qualquer odor e uma assepsia com toalha umedecida é mais do que o suficiente para remover os vestígios de sais minerais expelidos por seu corpo.

- Me deixa em paz, Hal.

 Ainda resmungando, Polara pegou uma toalha no compartimento de tecidos esterilizados e procedeu com a ablução. Ela já tinha o macacão em mãos quando o monitor se iluminou, indicando o recebimento de nova chamada. Estranhamente, os caracteres indicando o nome de quem efetuava a ligação eram ilegíveis.

- Hal, porque não consigo a identificação da chamada?

- A codificação é elaborada demais para que eu possa decifrar.

- É seguro atender?

- Eu recomendaria cautela em suas palavras.

- O que isso significa Hal, o Marechal está monitorando minhas chamadas?

- Fui instruído a não responder algumas de suas perguntas. Mas sua preocupação é unilateral.

- Entendo, a criptografia de quem efetua a chamada impede que o Marechal o ouça, ele só poderá captar minhas palavras, Hal, não sei o que eu seria sem você.

As luzes da nave enfraqueceram por um instante, para logo em seguida normalizar.

- Atenda a chamada, Hal.

A imagem do monitor foi substituída por uma transmissão de péssima qualidade e com um ruído de fundo constante, mesmo assim, Polara conseguiu discernir um cenário apocalíptico. As paredes eram ruínas em chamas, feixes de energia atacavam do alto, indiscriminadamente, mas o homem, no centro da imagem, parecia confiante de que não seria atingido.

-Alis.

Os olhos da Capitã se arregalaram, e ela levou a mão à boca, fazendo um esforço hercúleo para segurar um grito. O homem à sua frente, vestido como um soldado. Sua reação natural foi querer dizer o nome de André Harlam, seu amado, mas ela se conteve.

- Eu imagino que você deve estar sendo vigiada e por isso, não poderá me responder, mas peço que me ouça com atenção. Primeiro, para você ter certeza de quem sou, eu vou te lembrar de nosso juramento, 'não importa quão discrepante sejam nossos caminhos, a força de nosso amor será sempre maior'. O Grande Império está planejando iniciar uma guerra que levará o universo ao colapso, eu sacrifiquei minha vida para impedir isso, e agora chegou a hora de você fazer o seu sacrifício. Nesse momento, você deve estar no caminho para Atlantis. A missão é uma farsa e nunca deve ser levada à frente. Você receberá ajuda e, se acreditar em si mesma, terá sucesso.

Antes que Polara pudesse dizer qualquer coisa, o monitor escureceu. Tudo ficou em silêncio na nave. Ela não sabia o que pensar, aquele cenário ela conhecia, estava gravado em sua memória, A mensagem parecia gravada no dia em que Harlam morreu, o dia em que a missão do "soldado embaixador" falhou. Mas como aquela transmissão lhe fora enviada? Como ela pode ser transmitida justamente agora e com informações sobre o que ainda estava para acontecer?

- Iniciar procedimento de segurança, o próximo salto ocorrerá dentro de instantes.

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