Os estilhaços do caça inimigo mal tinham parado de atingir os escudos de sua nave e Polara já desativava o escudo protetor, ignorando as eventuais pancadas que começaram a ecoar por toda carenagem da nave. A Capitã soltou o cinto que a mantinha fixa na poltrona, permitindo que seu corpo flutuasse pela nave e, antes que o duto de oxigênio esticasse, soltou o capacete, libertando os grossos dreadlocks grisalhos que, sem gravidade, passaram a serpear próximos de seu rosto. Um sorriso de satisfação cruel ainda pairava em sua face, tornando-a uma representação de Medusa. O prazer da batalha, a necessidade de combater implacavelmente os bárbaros que ainda se opunham ao Grande Império, a sensação do sangue correndo rápido e quente em suas veias, a percepção aumentada pela adrenalina, a única maneira de se sentir viva, de se sentir vingada. Mas essa sensação durava cada vez menos, a melancolia sempre voltava e era implacável, preenchendo cada segundo de sua vida solitária até o próximo encontro, o próximo confronto, a próxima vitória.
O monitor principal do painel de controles acendeu subitamente, o ícone de chamada piscava, ao lado do nome Marechal do Espaço Sharif.
- Hal, Gravidade Padrão.
Ao comando de Polara, o computador da nave emitiu um leve ruído e, gradativamente, seu corpo foi puxado em direção ao chão e seus dreadlocks se esparramaram pelas costas.
- Hal, Responder à chamada.
Imediatamente a imagem no monitor foi substituída. Uma sala de cujas janelas se podia observar a prosperidade de Atlantis, a capital do Grande Império com seus enormes monumentos e edifícios de alta tecnologia. Ao centro, três homens, que aparentavam ter cerca de quarenta anos, o que nada significava, pois, com os tratamentos disponíveis, eles poderiam manter a mesma aparência até a morte por velhice, por volta dos cento e cinquenta anos, quando o corpo começava a se acostumar aos medicamentos e a deterioração dos órgãos era inevitável. O uniforme azul do homem ao centro apresentava um número significativo de divisas maior do que seus companheiros, e foi ele quem quebrou o silêncio.
- Capitã Polara, há quantos anos não tenho o prazer de entrar em contato.
O sorriso no rosto do Marechal era afetuoso e paternal, diferente de sua interlocutora, que mantinha uma expressão séria.
Polara não respondeu de imediato. A mesma pele clara com leves indícios de surgimento de marcas de expressão, os mesmos olhos azuis, a barba negra perfeitamente aparada também não tinha mudado, nem mesmo o cabelo penteado para trás com esmero. O rosto de Sharif era exatamente igual ao de quando se conheceram, há mais de trinta anos, quando Harlam ainda vivia.
Apesar da evidente satisfação do homem, a voz de Polara soou seca, quase robótica:
- Marechal Sharif, a que devo a honra?
- Você ainda não entende, não é mesmo, Capitã? Se existir honra nessa conversa, é a que sinto por falar com você! A grande lenda! A campeã do Grande Império! Seu nome é proferido com pavor por soldados de todos os nossos inimigos e, para ser completamente sincero, até mesmo muitos de nossos aliados sentem calafrios ao ouvir seu nome! E você continua a vagar pelo espaço, implacável, a despeito dos meus inúmeros convites para voltar, apesar de tantas naves e caças superiores que lhe oferecemos, e de todas as promoções propostas! Pelo Império, Polara! Você deveria estar a meu lado como Marechal! O peso de seu uniforme deveria torná-lo impossível de ser carregado tamanho o número de condecorações que você receberia, mas aí está você, em um setor ermo do universo, emboscando bárbaros que não mais representam uma ameaça.
O rosto da Capitã não era mais de seriedade, mas quase de tristeza, quando interrompeu o Marechal.
- Desculpe, Sharif, ainda não entendo qual o propósito desta chamada, mas...
- Encontramos outro planetoide utilizado como cativeiro pela República de Cérnia...
O coração de Polara pareceu falhar por um instante, sua vista escureceu e o resto da frase pronunciada pelo Marechal se perdeu.
Mais um planetoide cativeiro, será que depois de tantos anos...
Os três homens olhavam para ela em silêncio.
- Marechal, você acha que existe alguma possibilidade dele...
- Você sabe que não, Capitã. Já faz vinte anos que eu desencorajo esse tipo de pensamento, você sabe que ele está morto, você estava lá quando...
- Não precisa me lembrar... Então ainda não entendo o propósito dessa chamada.
- Queremos você nessa missão de resgate.
O rosto da Capitã endureceu e seus olhos escuros pareceram enegrecer ainda mais.
- Eu não posso.
- Sem você, as chances de sucesso da missão são ínfimas, precisamos de você, e sua tripulação já a aguarda.
- Eu não posso aceitar, Marechal. Não posso aceitar esse tipo de missão, não posso aceitar trabalhar com outras pessoas.
- Esse afastamento tem que acabar, Capitã, quanto tempo faz que você não compartilha o mesmo ambiente com outro ser humano? Vinte anos? Mais? Você acatará essa missão, você aceitará os soldados que lhe forem designados, e você vai concordar com sua aposentadoria após esta missão. Não são pedidos, Capitã, são ordens. Deixamos você por conta própria por tempo demais, agora chegou a hora de você compensar isso. Precisamos de você. Eu passei para Hal as coordenadas dos saltos que trarão a nave de volta a Atlantis utilizando o código de autoridade máxima. Você sabe que isso significa que não será capaz de encontrar loopings nessa ordem, então, poupe-se do esforço. Nos encontraremos em breve, obrigado.
Antes que a Capitã pudesse responder, o monitor se apagou, indicando que a comunicação tinha sido cortada. Lágrimas escorriam por seu rosto e, com as pernas enfraquecidas, deixou seu corpo desabar na poltrona de comando. Não importa o quanto tentava fugir do passado, a perseguição era implacável. Olhando para o monitor negro, no qual ainda podia imaginar o contorno do Almirante, foi invadida por lembranças.
*
A festa estava repleta de militares empolados, exibindo trajes e sorrisos petulantes, como se fossem lordes com poderes infinitos, e, dentre eles, os que mais se portavam como galos eram os da Divisão Espacial, os verdadeiros 'senhores do universo'. Mas a recém-formada Cabo Polara estava cansada de andar entre eles. Dia após dia de aulas e treinamentos onde tinha de tolerar a arrogância, o ar de superioridade e as mesmas piadas. Mas aquele momento era especial, era o dia em que provava aos seus familiares que eles estavam errados, que ela era capaz de lutar por seus sonhos, era a oportunidade de provar para seus colegas de sala que eles também estavam errados, que uma mulher de origem humilde, de um planeta periférico do Grande Império tinha o direito de estar ali entre eles, nobres e militares. Aquele era o dia de sua glória e não permitiria que nenhum deles estragasse o seu prazer, nem que para isso tivesse que voltar para seu dormitório e comemorar sozinha.
Polara tinha acabado de servir seu copo com um drink espumante quando percebeu que um colega de turma, Cabo Kin, olhava em sua direção e fazia algum comentário para os outros membros do grupo em que estava. Com o objetivo de evitar qualquer conflito, ela esvaziou o copo em um grande gole e se virou com o intuito de se perder por entre os convidados da celebração, foi quando trombou de frente com um rapaz trajado com a habitual toga dos homens de cargo burocrático. Com a força do empurrão, o rapaz foi ao chão.
Pela fração de um instante, Polara quase sorriu, mas o pensamento de que aquela seria exatamente a reação de qualquer um dos "galos" que ela tanto desprezava, manteve-se séria, estendendo a mão ao homem a seus pés. O rapaz de toga sorriu e Polara sentiu seu coração bater em falso. Os olhos castanhos escuros possuíam uma vitalidade contagiante, mas não era só isso, tudo parecia diferente nele, os lábios grossos, o nariz largo, o cabelo enrolado bagunçado sobre a testa...
- Desculpe entrar assim no seu caminho e obrigado pela ajuda, Cabo!
Ao contrário do que seria esperado dos homens com quem estava habituada a conviver, aquele não aparentava estar com o orgulho ferido por ter sido derrubado, inclusive, parecia estar genuinamente divertido com a situação e aquilo intrigou Polara. Foi tomada por uma enxurrada de sensações, despeito, constrangimento, curiosidade e, mais do que tudo, ela sentiu imediata necessidade de conhecer melhor aquele rapaz.
- Quem deve pedir desculpas sou eu, e não você! Eu sou Cabo Alis Polara, a propósito!
- Muito prazer, Cabo Polara, apesar do treinamento para ser um soldado, eu ainda não tenho título nenhum do qual eu possa me orgulhar, mas meu nome é André Harlam.
*
A voz metálica de Hal quebrou o silêncio da nave:
- Desculpe incomodá-la, Capitã. O salto em hiperespaço, seguindo a programação estabelecida pelo Marechal do Ar Sharif terá início em 1 minuto.
Polara fechou os olhos demoradamente e respirou fundo. Sentiu que uma lágrima escorria por seu rosto.
- Obrigada, Hal. Vou me preparar.
A Capitã se posicionou confortavelmente na poltrona de comando, prendeu os dreadlocks utilizando o próprio cabelo e vestiu o respirador secundário para saltos em hiperespaço. Mal havia travado os cintos de segurança quando percebeu a diferença na atmosfera, a gravidade fora desligada.As luzes cederam lugar à escuridão e mais uma vez, Polara se perdeu no passado.*- Você já realizou um salto em hiperespaço, Dr. Harlam?- Não, Capitão de Assis, essa será minha primeira oportunidade.- Vou deixar que a Segundo-Sargento Polara lhe explique sobre os desconfortos que você terá o ‘prazer’ de vivenciar pessoalmente em breve.Antes de se retirar, o Capitão de Assis deu um sorriso cheio de cumplicidade para a mulher que considerava a mais promissora espaçonauta de sua ger
Capítulo 3Houve um tempo em que os membros do Conselho Imperial não se encontravam presencialmente e as reuniões eram sempre via holograma, mas, o simples detalhe de não estarem ocupando o mesmo espaço físico enquanto discutiam, tornava os membros cada vez mais ousados e desrespeitosos.Tudo mudou quando o Almirante Quintus, em um acesso de raiva, atirou a bengala em direção ao holograma do Imperador Montezuma, enquanto liberava uma torrente de impropérios. O motivo para tão brutal quebra de protocolo foi, segundo constam os boatos, o de que Imperador fingia não compreender o que era dito pelo Almirante, fazendo-o repetir todas as suas colocações, em algumas ocasiões, mais de três vezes. O evento acabou com um Almirante enforcado e o comprometimento de todos os outros membros de que as reuniões, daquele dia em diante, seri
- Achei que nunca mais veria este planeta...A nave de Polara, a última Millenium Swan ativa, pairava no limite máximo de aproximação aguardando a escolta da Força Aérea de Atlantis, pois qualquer nave que penetrasse em Atlantis sem a escolta da Força Aérea seria abatida pelo SADE, o Sistema Autônomo de Defesa Espacial.Visto do espaço, o planeta era completamente azul, principalmente pela semelhança entre sua atmosfera e a do Planeta Original, em tempos passados conhecido como "Terra". A existência de uma camada de ozônio e a gravidade próxima da padrão foram os principais motivos que levaram à colonização daquele planeta, apesar das dificuldades, como a temperatura ambiente de dezenove graus nas regiões equatoriais, quatorze graus nas regiões tropicais e de sete graus negativos nas regiões polares mesmo nas estaç&otild
Uma multidão saudava a lendária Capitã Polara com uma chuva incessante de aplausos, assovios e palavras de carinho, mas aquela manifestação não causava na mulher nenhum efeito positivo, apenas aumentava sua repulsa pelos seres humanos. Ela era aplaudida por quê? Por ter passado vinte anos destruindo vidas de pessoas a quem não tinha nenhuma desavença pessoal simplesmente por servirem sob uma bandeira diferente? Se ela se mantinha afastada de todos é por não ter orgulho de quem era, do animal que tinha se tornado, mas ali, sendo aplaudida, percebia que todos eram animais como ela, sedentos de sangue e utilizando uma desculpa qualquer para derramá-lo, mas, e se ela matasse um deles ali, naquele momento? Será que continuaria sendo aplaudida? O planejamento veio com naturalidade: O guarda da direita seria mais fácil, ele olha para o povo como se fosse ele o aplaudido, eu pisaria em seu p
O Soldado Embaixador vestia apenas uma tanga. Seu corpo apresentava diversos hematomas e cortes superficiais, seus joelhos estavam sujos, sua pele negra completamente lubrificada pelo suor. Ele empunhava dois pequenos bastões de madeira e parecia acuado, cercado por três homens com fardamento negro com detalhes dourados, no peito de cada homem o foguete negro sobre o círculo dourado, a bandeira de Cérnia. Às suas costas, uma quina de parede impedia a livre movimentação. Harlam arqueou um pouco o corpo, como uma fera que se prepara para dar o bote e, instintivamente, os dois homens mais a frente retraíram o corpo. O Soldado Embaixador aproveitou o momento oportuno para correr em direção ao soldado da direita, mas, ao invés de atacá-lo, com um salto mortal, transpôs seu inimigo, ficando com a maior parte do cômodo quadrado às suas costas, onde jaziam mais três homens, um deles i
Os dois homens caminhavam pelo galpão do espaçoporto, vestiam os macacões azul turquesa que indicavam a função no setor de manutenção e carregavam suas respectivas maletas de ferramentas. O da direita era alto e completamente careca e o da esquerda tinha estatura mediana e usava óculos de armação grossa.- Não sei por que estão tão interessados em destruir aquela nave!- É mesmo? Eu não sei é por que estão tão interessados em desativar o sistema da nave, já que ela será destruída.- Eu ouvi umas coisas sobre isso, mas não sei se acredito...- Sobre ela invadir o sistema da cidade?- É! Isso não te assusta? A nave sabotar os sistemas pra impedir a própria destruição? Já ouviu falar disso?- Se eu acreditasse, você acha que eu entr
As naves pairavam no espaço, paralelas, recarregando as energias para o próximo salto em direção ao destino misterioso. A Capitã Polara estava sentada em sua poltrona de comandante, treinando no simulador.Pelo visor de seu capacete, via a posição das naves inimigas, mas, apesar da inteligência artificial, os movimentos ficavam previsíveis com o passar do treino.No combate real, os comandantes cometiam erros e, nem sempre, isso era ruim ou desvantajoso para eles. Por mais de uma vez, durante combates reais, Polara se arrependeu de um movimento prematuro para logo em seguida perceber que seu erro podia ser utilizado para uma estratégia melhor que a ideia original. Com o simulador não acontecia aquilo, ele sempre usava as estratégias mais racionais para as situações, movimentos capazes de derrotar bons comandantes, mas fáceis de ser previstos por pessoas com gra
Grande Kelvin verificou a bateria do sintetizador de oxigênio de seu traje. Marcava menos de trinta por cento. Se o mercenário responsável por substituir seu turno de vigia não aparecesse em breve, ele largaria o posto. Grande Kelvin era um guerreiro experimentado, famoso pelo número de vidas que já tinha tirado em campo de batalha e não um garoto qualquer para ser esquecido em um posto de vigia num planeta longe de tudo. Se a remuneração que lhe pagavam não fosse tão alta, já teria abandonado aquela missão há muito tempo.Uma luz brilhou no céu avermelhado, chamando sua atenção.- Parece que finalmente teremos um pouco de ação.O mercenário acionou seu comunicador:- Alguém na escuta? Seis naves acabaram de penetrar em nossa atmosfera. Se continuarem nessa rota, irão pousar a poucas milhas do meu posto.