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Parte I - O curiso destino de André Harlam - Capítulo 1

Os estilhaços do caça inimigo mal tinham parado de atingir os escudos de sua nave e Polara já desativava o escudo protetor, ignorando as eventuais pancadas que começaram a ecoar por toda carenagem da nave. A Capitã soltou o cinto que a mantinha fixa na poltrona, permitindo que seu corpo flutuasse pela nave e, antes que o duto de oxigênio esticasse, soltou o capacete, libertando os grossos dreadlocks grisalhos que, sem gravidade, passaram a serpear próximos de seu rosto. Um sorriso de satisfação cruel ainda pairava em sua face, tornando-a uma representação de Medusa. O prazer da batalha, a necessidade de combater implacavelmente os bárbaros que ainda se opunham ao Grande Império, a sensação do sangue correndo rápido e quente em suas veias, a percepção aumentada pela adrenalina, a única maneira de se sentir viva, de se sentir vingada. Mas essa sensação durava cada vez menos, a melancolia sempre voltava e era implacável, preenchendo cada segundo de sua vida solitária até o próximo encontro, o próximo confronto, a próxima vitória.

O monitor principal do painel de controles acendeu subitamente, o ícone de chamada piscava, ao lado do nome Marechal do Espaço Sharif.

- Hal, Gravidade Padrão.

Ao comando de Polara, o computador da nave emitiu um leve ruído e, gradativamente, seu corpo foi puxado em direção ao chão e seus dreadlocks se esparramaram pelas costas.

- Hal, Responder à chamada.

Imediatamente a imagem no monitor foi substituída. Uma sala de cujas janelas se podia observar a prosperidade de Atlantis, a capital do Grande Império com seus enormes monumentos e edifícios de alta tecnologia. Ao centro, três homens, que aparentavam ter cerca de quarenta anos, o que nada significava, pois, com os tratamentos disponíveis, eles poderiam manter a mesma aparência até a morte por velhice, por volta dos cento e cinquenta anos, quando o corpo começava a se acostumar aos medicamentos e a deterioração dos órgãos era inevitável. O uniforme azul do homem ao centro apresentava um número significativo de divisas maior do que seus companheiros, e foi ele quem quebrou o silêncio.

- Capitã Polara, há quantos anos não tenho o prazer de entrar em contato.

O sorriso no rosto do Marechal era afetuoso e paternal, diferente de sua interlocutora, que mantinha uma expressão séria.

Polara não respondeu de imediato. A mesma pele clara com leves indícios de surgimento de marcas de expressão, os mesmos olhos azuis, a barba negra perfeitamente aparada também não tinha mudado, nem mesmo o cabelo penteado para trás com esmero. O rosto de Sharif era exatamente igual ao de quando se conheceram, há mais de trinta anos, quando Harlam ainda vivia.

Apesar da evidente satisfação do homem, a voz de Polara soou seca, quase robótica:

- Marechal Sharif, a que devo a honra?

- Você ainda não entende, não é mesmo, Capitã? Se existir honra nessa conversa, é a que sinto por falar com você! A grande lenda! A campeã do Grande Império! Seu nome é proferido com pavor por soldados de todos os nossos inimigos e, para ser completamente sincero, até mesmo muitos de nossos aliados sentem calafrios ao ouvir seu nome! E você continua a vagar pelo espaço, implacável, a despeito dos meus inúmeros convites para voltar, apesar de tantas naves e caças superiores que lhe oferecemos, e de todas as promoções propostas! Pelo Império, Polara! Você deveria estar a meu lado como Marechal! O peso de seu uniforme deveria torná-lo impossível de ser carregado tamanho o número de condecorações que você receberia, mas aí está você, em um setor ermo do universo, emboscando bárbaros que não mais representam uma ameaça.

O rosto da Capitã não era mais de seriedade, mas quase de tristeza, quando interrompeu o Marechal.

- Desculpe, Sharif, ainda não entendo qual o propósito desta chamada, mas...

- Encontramos outro planetoide utilizado como cativeiro pela República de Cérnia...

O coração de Polara pareceu falhar por um instante, sua vista escureceu e o resto da frase pronunciada pelo Marechal se perdeu.

Mais um planetoide cativeiro, será que depois de tantos anos...

Os três homens olhavam para ela em silêncio.

- Marechal, você acha que existe alguma possibilidade dele...

- Você sabe que não, Capitã. Já faz vinte anos que eu desencorajo esse tipo de pensamento, você sabe que ele está morto, você estava lá quando...

- Não precisa me lembrar... Então ainda não entendo o propósito dessa chamada.

- Queremos você nessa missão de resgate.

O rosto da Capitã endureceu e seus olhos escuros pareceram enegrecer ainda mais.

- Eu não posso.

- Sem você, as chances de sucesso da missão são ínfimas, precisamos de você, e sua tripulação já a aguarda.

- Eu não posso aceitar, Marechal. Não posso aceitar esse tipo de missão, não posso aceitar trabalhar com outras pessoas.

- Esse afastamento tem que acabar, Capitã, quanto tempo faz que você não compartilha o mesmo ambiente com outro ser humano? Vinte anos? Mais? Você acatará essa missão, você aceitará os soldados que lhe forem designados, e você vai concordar com sua aposentadoria após esta missão. Não são pedidos, Capitã, são ordens. Deixamos você por conta própria por tempo demais, agora chegou a hora de você compensar isso. Precisamos de você. Eu passei para Hal as coordenadas dos saltos que trarão a nave de volta a Atlantis utilizando o código de autoridade máxima. Você sabe que isso significa que não será capaz de encontrar loopings nessa ordem, então, poupe-se do esforço. Nos encontraremos em breve, obrigado.

 Antes que a Capitã pudesse responder, o monitor se apagou, indicando que a comunicação tinha sido cortada. Lágrimas escorriam por seu rosto e, com as pernas enfraquecidas, deixou seu corpo desabar na poltrona de comando. Não importa o quanto tentava fugir do passado, a perseguição era implacável. Olhando para o monitor negro, no qual ainda podia imaginar o contorno do Almirante, foi invadida por lembranças.

*

A festa estava repleta de militares empolados, exibindo trajes e sorrisos petulantes, como se fossem lordes com poderes infinitos, e, dentre eles, os que mais se portavam como galos eram os da Divisão Espacial, os verdadeiros 'senhores do universo'. Mas a recém-formada Cabo Polara estava cansada de andar entre eles. Dia após dia de aulas e treinamentos onde tinha de tolerar a arrogância, o ar de superioridade e as mesmas piadas. Mas aquele momento era especial, era o dia em que provava aos seus familiares que eles estavam errados, que ela era capaz de lutar por seus sonhos, era a oportunidade de provar para seus colegas de sala que eles também estavam errados, que uma mulher de origem humilde, de um planeta periférico do Grande Império tinha o direito de estar ali entre eles, nobres e militares. Aquele era o dia de sua glória e não permitiria que nenhum deles estragasse o seu prazer, nem que para isso tivesse que voltar para seu dormitório e comemorar sozinha.

Polara tinha acabado de servir seu copo com um drink espumante quando percebeu que um colega de turma, Cabo Kin, olhava em sua direção e fazia algum comentário para os outros membros do grupo em que estava. Com o objetivo de evitar qualquer conflito, ela esvaziou o copo em um grande gole e se virou com o intuito de se perder por entre os convidados da celebração, foi quando trombou de frente com um rapaz trajado com a habitual toga dos homens de cargo burocrático. Com a força do empurrão, o rapaz foi ao chão.

Pela fração de um instante, Polara quase sorriu, mas o pensamento de que aquela seria exatamente a reação de qualquer um dos "galos" que ela tanto desprezava, manteve-se séria, estendendo a mão ao homem a seus pés. O rapaz de toga sorriu e Polara sentiu seu coração bater em falso. Os olhos castanhos escuros possuíam uma vitalidade contagiante, mas não era só isso, tudo parecia diferente nele, os lábios grossos, o nariz largo, o cabelo enrolado bagunçado sobre a testa...

- Desculpe entrar assim no seu caminho e obrigado pela ajuda, Cabo!

Ao contrário do que seria esperado dos homens com quem estava habituada a conviver, aquele não aparentava estar com o orgulho ferido por ter sido derrubado, inclusive, parecia estar genuinamente divertido com a situação e aquilo intrigou Polara. Foi tomada por uma enxurrada de sensações, despeito, constrangimento, curiosidade e, mais do que tudo, ela sentiu imediata necessidade de conhecer melhor aquele rapaz.

- Quem deve pedir desculpas sou eu, e não você! Eu sou Cabo Alis Polara, a propósito!

- Muito prazer, Cabo Polara, apesar do treinamento para ser um soldado, eu ainda não tenho título nenhum do qual eu possa me orgulhar, mas meu nome é André Harlam.

*

A voz metálica de Hal quebrou o silêncio da nave:

- Desculpe incomodá-la, Capitã. O salto em hiperespaço, seguindo a programação estabelecida pelo Marechal do Ar Sharif terá início em 1 minuto.

Polara fechou os olhos demoradamente e respirou fundo. Sentiu que uma lágrima escorria por seu rosto.

- Obrigada, Hal. Vou me preparar.

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