P I E M O N T
P I E M O N T
Por: Saturno
Introdução

P  I   E  M   O   N   T 

Prólogo.

O vento frio batia em seu corpo lhe dando arrepios, os braços finos se cruzam imediatamente em um reflexo comum do ser humano de tentar se aquecer da brisa fria, ao mesmo tempo que a agradava, visto que amava frio, lhe causava desconforto.

Entre os tecidos dos agasalhos, Aurora sentia um cansaço excessivo tomar cada fibra e célula de seu ser, ela só queria deitar em sua cama e sentir a maciez de sua coberta. Olhar para o canto do seu quarto e visualizar, mais uma vez, as paredes rachadas.

Ao mesmo tempo, sua mente iria maquinar o quanto aquilo era incômodo e que ela devia mandar arrumar imediatamente aquele defeito, entretanto a mulher apenas ficaria deitada na cama a pensar nisso, tais fatos concerteza gerariam apenas mais uma frustração para sua longa lista. Frustrada. Foi assim que ela se sentiu nos últimos dias. 

Alguns cachos ruivos se soltaram do coque mal feito de acordo que suas passadas ficavam mais fortes, eles caiam emaranhados pelo rosto maculado e pálido da mulher; pequenas poças roxas se destacavam também, assim como os lábios grossos rachados. Estava acabada fisicamente e visualmente, pensar nisso a deixava com mais raiva ainda de si mesma. Malditos genes.

Ela chega em frente à sala e a mão se levanta rente a porta de madeira — ou aço — que separa a sala de aula para o corredor da universidade. Um vidro no formato retangular vertical permitia que ela visualizasse o que ocorria dentro daquele cômodo e por mais que os alunos vestidos com a douma cinza os deixasse com um padrão agradável aos seus sentidos, as orbes de cor anil estavam concentradas em um outro ponto fixo, ou talvez uma pessoa fixa.

A forma como o homem dentro da sala gesticulava com as mãos e tensionava os ombros para cima a deixou com uma sensação estranha no estômago. Seus traços italianos nas linhas expressivas de seu rosto mostravam-se extremamente evidentes, e causavam uma satisfação estranha em Aurora. Sem perceber, ela morde a bochecha em resignação, tinha esquecido que uma das primeiras aulas era dele, talvez por isso que estava habituada a faltar na quinta-feira de manhã. 

Percebeu então que estava perdida com o próprio calendário, ou seja, havia esquecido que era o penúltimo dia daquela semana. Esse acontecimento iria lhe custar caro, que seria suportar a aula que mais odiava naquele curso inteiro; teria que lidar com troca de olhares, reprovações e deboches do professor que mais a deixava incomodada e irritada. 

Talvez se saísse antes que ele a visse, conseguiria pegar o segundo turno do dia. A biblioteca era uma boa opção para ficar, geralmente não era uma pessoa que fugia das situações, mas naquele dia estava com a paciência mais abaixo de zero do que a própria temperatura do polo norte.

Logo a melhor opção seria se manter longe. 

E ela até tomou a iniciativa de arrastar os pés para trás, dar meia volta em passos curtos e silenciosos e sair dali. Infelizmente ela não foi hábil em sua fuga.

 Se fosse em outra situação Aurora praguejaria pela sua falta de agilidade, mas naquele momento ela só conseguia focar nos olhos acinzentados que lhe encaravam profundamente. Não soube adivinhar o que eles diziam, ela nunca sabia. Isso era um dos motivos pela qual ela tinha tanta aversão a aquele homem. 

 Ela engoliu com dificuldade, a garganta fechada, a saliva descendo como ácido pela faringe. Ela não se sentia no controle. E ela odiava não ter o controle.

Sem ter mais como escapar Aurora por fim atravessa o batente e adentra na sala de aula, os olhares dos alunos antes atentos ao professor foram rápidos em mudar para sua direção.

— Buongiorno Senhorita Bernardi, que honra ter a sua rara presença por aqui. — E como ela esperava, as farpas se iniciaram quase que de maneira natural. Era assim entre eles.

— Porque a Surpresa professor? Sabe que eu apareço porque não tem outro jeito. Detesto a sua aula, ela é chata e tediosa. — Dante arregalou os olhos pela resposta 

cirúrgica, ela nunca havia deixado explícito o quanto odiava suas aulas, e ele se viu surpreso e decepcionado com isso. Suas aulas não a agradavam, não prendiam sua atenção.

“Onde eu estou errando?”  —  Internamente ele se questionava.

Aurora não disse mais nada, preferiu o silêncio a ter que adicionar mais farpas; sabia que se não se segurasse daria a ele uma resposta ofensiva, e nunca haviam chegado a esse nível. Ele nunca a havia ofendido de maneira aberta, explícita. E nas raras vezes que o fazia, não era realmente uma ofensa, e de maneira alguma era intencional, sempre no calor do momento. 

Estranhamente Aurora sempre se coibiu quando a resposta malcriada emergia do fundo de sua garganta, nunca teve pudores para soltar um palavrão, mandar alguém ir a merda ou exclamar um foda-se. Sua língua coçava e ela o fazia, mas não era assim com o professor Martinelli.

O professor limpou a garganta constrangido, olhou ao redor e viu o quanto a fala de Aurora havia causado comoção, olhos arregalados e vergonha alheia.

— Dizer que a aula de um professor é entediante não é educato. — Tentou Dante, seu sotaque italiano se sobressaindo e enrolando-se na última palavra. Ele não sabia realmente o que falar para rebater, estava envergonhado.

— Eu não dou a mínima para educação. — A rispidez na voz dela era cortante e agia de maneira rápida. Como fogo que se alastrava por folhas secas, seu cérebro processava e registrava a pronúncia amarga de cada sílaba.

— Você dará a mínima para sua nota ao final do semestre? — O sarcasmo mascarado com censura irritou Aurora como o inferno, seus ombros tencionaram e seus passos cessaram antes que pudesse enfim chegar ao seu assento. — Você está na berlinda senhorita Bernardi, cabular as minhas aulas não vai fazer com que suas notas se estabeleçam, pense nisso.

Foi involuntário, a cabeça de Aurora pendeu por sobre o ombro para olhar o professor por outra perspectiva. Um riso de desdém se instalou em seus lábios e seus olhos azuis faiscaram ao encarar os cinzas do professor de maneira desafiadora.

Dante se sentiu pequeno, exposto, como sempre acontecia ao ser alvo da avaliação minuciosa de sua aluna. Ela o desarmava sem nem usar as palavras, e o quebrava quando resolvia pronunciá-las.

Esperou pelo embate, pela resposta afiada que ao seu ver, tinha certeza que viria. Mas surpreendendo a si e a todos os presentes, que observavam a ambos com atenção, Aurora lhe deu as costas e se dirigiu ao seu assento, acomodando-se.

Longos minutos se passaram, o silêncio na sala era incômodo e o professor visivelmente abalado com o descaso dela, acompanhava Aurora retirar seus materiais da bolsa sem ao menos perceber que o fazia. Os alunos olhavam fixamente e revezavam entre ela e ele, muitos ansiosos com o desfecho da situação, e outros temendo mais um embate. Embates que se tornaram rápidos e desregulados ao longo dos dias em que a Senhorita Bernardi não comparecia às aulas de degustação.

— Achei que quisesse que eu recuperasse minha nota Professore, como espera que eu o faça se está aí estático. Não se sente bem? Precisa que eu chame outro professor para dar a sua aula? Talvez o professor Alessandro seja uma boa opção, as aulas dele são meraviglioso. — Não, Aurora Bernardi nunca ficaria sem lhe responder a altura.

Trincou os dentes apenas pela menção do outro professor, e principalmente, pelo elogio direcionado a ele em sua língua natal, seu idioma, como ela ousava? Dante não o suportava, e todos sabiam disso, Aurora principalmente sabia disso. 

O professor de gastronomia estrangeira vivia querendo ensiná-lo a fazer o seu trabalho, era esnobe, egocêntrico e desagradável, pelo menos era assim para com ele.

Era também de domínio público o quanto Aurora amava suas aulas, sua lista de presença na disciplina era impecável, suas notas de uma excelência exacerbada. Tinha também o fato de que ao se referir ao professor de gastronomia estrangeira, ela o fazia pelo nome e de maneira impessoal, com um carinho especial que causava certo incômodo entre as entranhas de Dante. Eles tinham cumplicidade, o professor Martinelli já havia percebido.

Não queria admitir, não queria mesmo sequer pensar que suas "desavenças" com o Molinari, pelo menos da sua parte, seja por um único e exclusivo motivo. Mais não tinha como negar para si próprio que ele tinha inveja do outro professor, por ter tudo aquilo que ele nunca conseguiu — e que quando o tinha, era através de farpas trocadas. A atenção de Aurora, sua presença constante e seus raros sorrisos.

Dante ignora sua evidente provocação, olha de canto de olho para a mulher que tirava o caderno e outros materiais de dentro da bolsa e que, após isso, escorregou pela cadeira bufando de forma tediosa. 

— Sei que estão notando algo de diferente aqui — O homem anda até uma bancada branca e passa os dedos pela superfície lisa e gelada do mármore.

Era uma sala ampla. composta por essa bancada maior e as mesas que os alunos sentavam, essas que eram simples; de cor marrom, cobertas por um tecido bege com quatro taças para cada dois alunos. Embaixo delas havia um pano branco e um quinto copo redondo e grosso com água, todos esses objetos prontos para que a aula de degustação fosse feita sem nenhum erro, seguindo todos os critérios ensinados pelo professor. 

Logo, o diferencial era que apenas a mesa do professor possuía as taças caras e finas que a faculdade disponibilizava, além dos diversos vinhos, champanhes e espumantes que foram ensinados a degustar durante o curso.

Não foi muito difícil para os educandos notarem que haveria um teste ali, um bem complicado e que com certeza daria alguma nota. 

O professor em questão não costumava prejudicar os alunos, pelo contrário, a maior parte das vezes ele tentava ajudá-los.

 "Talvez por isso ele seja um dos queridinhos do campus." Aurora pensa olhando para a unha lascada em seus dedos.

Há alguns meses ela sentiria uma raiva enorme por apenas ver aquele quebradiço, agora todas elas estavam assim. Tortas e curtas. Isso se dava pelo seu toque de roer todas elas. Aquilo era uma droga.

Aurora fica tão focada em suas frustrações, que nem nota o olhar analítico do professor sob si.

 Dante conseguia notar o olhar de entendimento tomar cada um dos seus alunos; alguns tinham a face contraída em aflição e medo, já a de uma minoria era de felicidade e alívio. 

Esses o professor pode identificar como os que já haviam passado em sua matéria. Entretanto, o que mais lhe incomodou foi o olhar de tédio da mulher de cabelos ruivos, ela olhava para as próprias unhas ignorando tudo e todos ao seu redor, como se aquilo fosse de seu maior interesse e importância.

Será que as cutículas dela realmente eram mais interessantes do que prestar atenção em um teste que a ajudaria na nota?! Uma raiva e indignação começou a tomar conta de Dante, realmente aquilo era um ultraje contra ele. Uma falta de respeito. 

Porém ele sabia que não eram só esses sentimentos negativos que tomavam conta de si, a curiosidade ainda estava ali. Ela estava tão escondida e sorrateira quanto a aproximação calma de um beija-flor, o cutucando para descobrir mais sobre a mulher que conseguia tirá-lo de seu juízo apenas com meias palavras. 

Aurora vivia sempre sozinha,  perdida em seu mundo, esse mundo que ele estava muito atiçado para conhecer.

O batuque das unhas dela sobre a mesa havia sido seu limite. 

— Senhorita Bernardi, gostaria que parasse com sua batida de mãos e focasse em algo mais interessante, a sua nota. — Toma fôlego, mas ao mesmo tempo sente ele faltar assim que os olhos azuis recaem em cima de si. 

Eram ferinos. Brilhavam como se uma arma pudesse ser engatilhada e uma bala fosse o acertar. 

Claro que ela ficaria nervosa, quando que não ficava? As duas sobrancelhas erguidas no entanto expressavam uma certa raiva, o completo oposto. Na verdade, a única coisa que Aurora pensava era no porque dele não a deixar em paz, aquilo já estava virando uma perseguição. ele a incomodava. E muito.

— Estou incomodando? — Ela fez uma pergunta retórica acompanhada de uma falsa expressão de arrependimento, para logo lhe abrir um sorriso desafiador e ao ver do professor Martinelli, um de tirar o pouco ar que ele ainda possuía em seus pulmões. —  Creio que sua prova surpresa de degustação de vinhos seja mais interessante que minha presença em aula. — Ela solta. A frase saiu ácida e completamente sem remorsos ou medos, a língua ferina de Aurora era uma de suas maiores características.

 A sala intercalava o olhar entre professor e aluna. A tensão entre os dois subia como a névoa em lugar de alta altitude, sem controle ou alguma visibilidade. Alguns apenas pensavam que aquilo ficaria interessante, já outros tinham vontade de bater na testa pelo novo conflito que estava se formando. Claro que não era nenhuma novidade, nas raras vezes que Aurora ia para aquela aula era assim. Uma névoa de acidez e palavras retrucadas.

— Não é? Pro-fe-sso-re? — Soletra o substantivo com gosto e em seu idioma. Dante apenas trinca os lábios, ciente do efeito que ela causa em si quando resolve, com maestria, bancar a Italiana. Ele indaga-se o quão petulante ela ainda conseguia ser.

— Já que está com vontade de dialogar hoje, Bernadi, por que não vem aqui nos mostrar seus conhecimentos sobre degustação de vinhos — Não era uma pergunta, não era um pedido, Aurora notou isso.

A raiva correu com extrema velocidade por sua corrente sanguínea, e piorou quando o professor deu a ela seu sedutor sorriso de canto, o que a afetava, a deixava confusa e diria que até mesmo excitada. Aurora nunca desejou desmanchar a pose superior de Dante.como sentia naquele momento.

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