HAFIQSe ele tivesse aceitado abdicar, talvez ela ainda estivesse viva. O seu desejo de poder e a sua omissão foram igual ou mais abomináveis, que a frieza dos homens que a mataram.Seus olhos estão marejados de lágrimas e eu nunca me senti tão perto de meu pai. Velho, sozinho e dilacerado pelas perdas.Eu penso que se não tivesse conhecido a minha Antônia, a minha onça de olhos de gato, eu me sentiria igualmente só.Levanto-me e ando em sua direção, ele também se levanta de sua cadeira real e nos encaramos por um tempo.Então eu me lanço de encontro ao inexplorado. Envolvo os seus ombros rígidos e cansados e ele estanca com os braços frouxos, Suando, sem saber como agir.Eu insisto, não vou voltar atrás, daqui a alguns meses serei pai, só allah sabe o quanto posso falhar com os meus filhos, mas ainda assim eu quero ser um homem melhor.Não posso seguir em frente, limpo e renovado, sem chafurdar na sujeira do me
HAFIQ Ele ficou parado, a porta ainda aberta, encarando o par de coxas a sua frente, sem piscar. Eu tomei a frente, fechei a porta do carro e ri do seu constrangimento.— Se controle Youssef.— Não sei o que deu em mim, senhor.Eu entro e peço para Youssef seguir para casa, pensando que sei perfeitamente o que deu nele. Eu já passei por isso e alegro-me em saber que nunca estarei curado do efeito que Tônia me causa.Antônia aguarda Brenda na sala, tentando inutilmente colocar a calça em Kaled que corre até a porta para me abraçar, só de cuequinha.A minha habibi cada dia está mais linda, com uma blusinha de alça rosa e uma saia branca longa de cós baixo.A barriga redonda de quase seis meses a torna ainda mais feminina.Ela se apressa e agarra Brenda, as duas se abraçam, batem com as mãos espalmadas dando gritinhos de “ah! Amiga”.E riem muito, como duas doidas varridas.— Galega, como é que você tá minha amiga, fez d
Tônia procura a sua calcinha pelo chão e não acha, então lança mão da minha boxer Armani que está em cima da cama, veste minha camisa, fechando-a até a barriga e me deixa sozinho no quarto, indo ao banheiro.— Espera aí, você disse que vai continua a pagar o tratamento de saúde de minha mãe, então foi por isso que eu não recebi a fatura do hospital no mês passado?Allah proteja-me dessa fuzilada de olhos que ela me lançou, se fosse somente pelo olhar eu estaria caído no chão esturricado, finjo que não notei o seu tom de desaprovação e confirmo com a cabeça.— Então já estamos resolvidos, certo habibi?Ela assente, suspirando de cara feia, eu decido ir um pouco mais fundo.— Você tem falado com ela?— Falei semana passada, ela piorou muito, os médicos não me deram muitas expectativas, prefiro parar de falar sobre isso, tudo bem pra você ou quer me torturar mais um pouquinho? Quem sabe óleo fervente ou pinça de unha.Eu fico em silêncio e ela percebe que foi grosseira com o seu sarcasmo
ANTÔNIAO meu tom de voz aumenta a cada palavra proferida, Hafiq não rebate e não discute, me olhando surpreso pela minha reação. Ele tenta me abraçar e eu me desvencilho, eu já estou no meu limite com essa conversa inútil.Uma crise de choro me toma de surpresa e eu não consigo mais parar.Vê-la para quê? Ligar para ela já é esquisito pra cacete, eu nem consigo chamá-la de mãe.Quantos anos faz? Treze anos. Treze anos que a gente mal se fala, e eu sinto que estar cara a cara com ela é como tentar transpor inutilmente um abismo.Eu não estou preparada para me lembrar do cheiro de cachaça de Pedro, das mãos asquerosas em minha pele e principalmente de minha mãe, deitada em seu quarto, fingindo que dormia, enquanto ele me usava do jeito que bem quisesse.Eu quero esquecer a sujeira da minha infância, quero me sentir limpa, será possível que esse sujeito insistente não consegue entender isso?Hafiq me puxa da cadeira
ANTÔNIAYoussef agora é Chefe geral da segurança de Hafiq e abriram em sociedade um comércio de antiguidades, próximo a Pearl Qatar. Por mais que os dois não admitam, ele é o irmão que Hafiq teve a vida inteira, é o amigo em quem ele mais confia, mesmo que tenham essa relação meio fechada, acho que é coisa de homem, não querer demonstrar sentimentos.Ligo para Khadija pedindo autorização médica para viajar e descubro que o filho da mãe do Hafiq já fez isso há dois dias. Eu deveria reclamar por ele ser tão intrometido, mas sei que é o seu jeito estranho de mostrar que me ama.Anusha e Malika chegaram aqui em casa antes do almoço, frustrando a minha intenção de visitá-la. E como sempre, a velha abusada foi logo entrando na cozinha e dando ordens para Ranya.— Ranya, quero que ajude Basmah e Sadja no jantar de noivado de Malika, será amanhã por volta das vinte horas.Eu entro na cozinha junto com Brenda e Anusha está d
ANTÔNIAPousamos no aeroporto de Salvador às dezenove horas, a viagem foi razoável apesar das turbulências. Hafiq foi um fofo em cada um dos meus ataques de pânico, comprou uns livros de romance para eu me distrair e até fez massagem nos meus pés.A nossa casa de praia fica em um local de acesso restrito, perto da Costa do Sauipe, região litorânea da Bahia.É um lugar ótimo descansar, senão fosse à tensão em que eu estou desde que concordei com a ideia absurda de Hafiq de visitar a minha mãe.Tive uma noite de sono péssima, virei na cama de um lado para o outro a noite inteira e bem cedinho, acordo Hafiq já arrumada para irmos ao hospital.Somos recebidos pelo Dr. Samuel, um oncologista experiente, que está acompanhando o caso dela desde que se internou. Hafiq faz muitas perguntas sobre o seu estado de saúde e o médico é muito sincero, sem enganar-me com rodeios técnicos.— Para ser bastante sincero Antônia, ela só está esperando por você. Não há mais nada que possamos fazer, só podem
ANTÔNIAEu vou abrir as janelas do meu coração, acabar com esse cheiro de mofo das minhas lembranças, enfim, eu quero deixar o sol entrar, basta de fantasmas escondidos no armário.Ela foi uma mãe omissa, teve medo de encarar a vida sozinha com mais três filhos e preferiu fingir que não via os abusos sexuais que eu sofria.Mais uma mulher nas estatísticas de violência doméstica no nosso país.Por diversas vezes ele fez com ela o mesmo que fazia comigo, fodendo-a até machucá-la, batendo nela sempre que chegava bêbado.Ele se foi... E eu sobrevivi, eu fiz o que eu aprendi fazer de melhor. SOBREVIVER!Eu contrariei todos os prognósticos que põe à margem social a minha raça e minha origem, venci apesar de todos os NÃOS, não quero mais essa dor dentro de mim.— Tá tudo bem, eu te perdoo, nós duas conseguimos mãe, ele não pode mais nos machucar.Ela aperta bem forte a minha mão e começa a tossir muito e se debater, bastant
ANTÔNIAChegamos em casa e Malika nos recebe, me abraçando forte. Eu sento-me no sofá da sala e de repente meu coração gela.Não consigo dizer nenhuma palavra.Os meus olhos cravam na mesinha de centro, lá está a caixinha de joias de Anusha, reconheço por que fui eu que dei a ela de presente de aniversário.Eu olho para Malika e ela abaixa a cabeça, desviando os olhos para segurar o choro.— Quando foi Malika?— Ontem, ela se foi enquanto dormia.Youssef leva Hafiq para o escritório, que anda atônito. Após longos minutos, Hafiq aparece na sala com os olhos inchados e pergunta a Malika.— Como nenhum de nós percebeu que ela estava doente? Que neto de merda eu fui. Anusha entrava e saía daqui de casa e eu não reparei que ela estava morrendo, você sabia que ela estava com câncer, Malika?Malika nega abatida, eu levanto o queixo e o encaro. Sem mais segredos, eu prometi isso a Anusha.— Eu sabia.Os dois me olham sem saber