Mais tarde, Grace senta-se à mesa da cozinha novamente, e segura um envelope pardo com seu nome. Preparo o jantar para nós duas. A TV está ligada na sala, e o som escapa para a cozinha, compensando o silêncio entre nós.
Grace parece não perceber, mas nesses dias, esse vazio me deixa uma pilha de nervos, e então jogo conversa fora para disfarçar o silêncio.
— O que acha de pedaços de frango na salada? — pergunto. Ela dá de ombros. — Prefere arroz integral ou branco? — quero saber, mas ela não responde.
— Farei o frango — digo. — Harry gosta de frango. — Mas sabemos que ele não estará em casa.
— O que é isso? — pergunto, apontando para o envelope que ela tem nas mãos.
— O quê? — Grace indaga.
— O envelope.
— Ah — diz ela. — Isto
Dirigimos pelas ruas da vizinhança. Tudo tão silencioso. As crianças voltaram para a escola depois da nevasca de duas semanas, que não estava prevista, e agora não ficam mais no gramado da frente construindo bonecos de neve nem fazendo guerra de bolas de neve com risadas altas e estridentes, sons tão estranhos em nossa casa pouco comunicativa. Algumas casas já colocaram luzes de Natal, e há um Papai Noel inflável caído e inerte sobre um monte de neve.Quando chegamos ao consultório da doutora Thompson, sento-me em uma poltrona, enquanto Grace, relutantemente, arrasta-se até o sofá. Estantes do chão ao teto estão cheias de livros em uma parede. Pela janela, que a doutora mantém com as persianas fechadas, apenas uma quantidade escassa de luz adentra à sala, proporcionando privacidade e um pouco de aconchego. A sala é escura e discreta. Ajeito meu su&eacu
Quarta-feira, 07 de novembro de 2018GraceEssa casa parece fria, vazia e escura. Puxo uma manta sobre meu corpo e vejo as chamas. Eu devo ter adormecido, porque a próxima coisa que eu sei é que é de manhã e Rebecca está fazendo barulho na cozinha. Ela faz ovos e torradas e fica comigo até que eu tenha comido tudo. Nós não falamos muito. Depois do café da manhã, Becca lava os pratos e sai para trabalhar, mas ela volta na hora do almoço para me fazer comer novamente. Ela cozinha, eu como.Harry ainda está internado. A droga injetada nele quase o matou, e ainda está causando efeitos colaterais. E eu tento descobrir o meu próximo passo. Não há nenhum obstáculo agora tomando a minha vida. Mas parece que estou esperando por algo. Às vezes, o telefone toca, toca e toca, mas eu não o pego.A &uacut
Naquela noite, sentei na minha cama com meu celular na mão e liguei para minha mãe. Eu não disse nada quando ela atendeu, mas ouvir a voz dela foi muito bom. Era disso que eu precisava.— Grace? — Dava até para sentir o alívio em sua voz. — Oi, filha. Você não vai falar nada? — Ela faz uma pausa. — Tudo bem. Eu sempre fui meio tagarela mesmo.Coloquei o telefone no viva-voz e deitei na cama, fechando os olhos enquanto ela contava tudo que eu tinha perdido.— Seus avós estão na cidade nos visitando, e imagino que você não saiba o quanto eles me deixam louca, pois você era muito pequena quando os conheceu. Eles estão de mudança para São Paulo, e seu irmão achou que seria uma ótima ideia eles passarem um tempo aqui antes de irem. Já faz três semanas que chegaram, e eu j&aa
Sábado, 10 de novembro de 2018Vault Beach, Gorran HavenReino UnidoA vizinhança parece estranhamente vazia enquanto eu caminho na direção da praia quase deserta. Eu não vi animais, não vi nada de pássaros, nada de esquilos. Eu também não ouvi os pássaros.Harry e eu alugamos um chalé aqui em Vault Beach, depois que tive outro ataque histérico de pânico. Ele me perguntou o que me acalmaria, e eu lembrei do mar. O som do mar me acalma. Chegamos há mais ou menos meia hora, e falei para Harry que iria conhecer a praia enquanto ele descarregava as malas.O silêncio é melancólico; há apenas o som do vento nas árvores. As nuvens estão se agitando. Em breve virá uma grande chuva gelada. O céu tem um horrível plano para hoje. Os animais dev
Acordo no dia seguinte, com fome. Harry ainda está dormindo, então levanto devagar e vou até a cozinha. Quando termino o segundo sanduíche, vou até o banheiro e ligo o chuveiro. A água fria bate no meu corpo e eu tremo. Olho ao redor.Tomo o cuidado de não olhar muito para o meu corpo, mas não funciona, e tenho vislumbres dos estragos nas minhas coxas e na minha barriga. Meu estômago dá um nó. Inclino o rosto para o jato do chuveiro e de repente a água fica quente, quente de uma hora para a outra. Finjo que o ardor repentino do calor é o motivo de eu estar chorando.Quando saio do banheiro, Harry ainda está dormindo. Me tirar do mar em meio à uma tempestade o deixou exausto. Olhar para ele assim, cansado por causa de mim... isso acaba comigo. Saio para a varanda do chalé, e a brisa da manhã me envolve.Depois de um momento, me assusto quando uma
— Não quero falar sobre isso agora — respondo, e enfio abacaxi e morango na boca. Pisco rapidamente e torço para as lágrimas não escorrerem. Eleanor lambe a gordura de bacon dos dedos calejados e limpa cada um deles em um guardanapo. — A maioria das garotas da sua idade vai para a faculdade, trepa com garotos, ganha peso, tira algumas notas boas, algumas notas ruins. Mente para a mamãe e para o papai. Coloca piercing, faz tatuagem... — Ela sorri para mim. — Mas você não é assim, certo? Harry disse que você só terminou o ensino médio. — Comecei um curso — respondo na defensiva, com a boca cheia de comida. Engulo. — Bom, quase. Mais ou menos. Eleanor morde um pedaço de abacaxi. Olha para mim com firmeza, os olhos ligeiramente aumentados pelas lentes dos óculos. E faz um som grave e explosivo na garganta. — Bum! — Ela abre os dedos. — Você guarda as pessoas dentro de você, é isso que acontece. As lembranças e os arrependimentos engolem você, elas v
Quase dois meses depois: Segunda-feira, 08 de janeiro de 2019 Londres, Inglaterra Grace Doutora Thompson sorri para mim. — Grandes mudanças — diz ela. — Cortou o cabelo. Não se feriu mais. Como está se sentindo? Olho para o lado. O peixinho parou no aquário, como se também estivesse me esperando abrir a boca. O corpinho balança na água. Será que ele gosta da casinha no fundo, com uma entrada grande o suficiente para que ele possa atravessá-la? Será que tem vontade de sair? Cruzo os braços e afundo na poltrona. — Nada — digo para ela, com a voz abafada. — Nada — repito. — Ainda não sinto nada. — A sensação é de um vazio ou você sente algo, mas não sabe? Não respondo. — Grace? Porque tem diferença aí, e quero que você pense nessa diferença. Vai ser essencial para o seu tratamento. Depois de m
— Eu tive uma professora na sexta série, na escola nova que fui transferida, depois da morte do meu pai. Ela era bem legal, até com as crianças mais agressivas da sala. Nunca gritava. Sempre me deixava em paz, não me obrigava a sair no recreio se eu não quisesse, nem a ir para a aula de educação física. Ela me deixava ficar na sala de aula escrevendo enquanto corrigia provas ou olhava pelas janelas grandes e quadradas. Uma vez, ela disse: “Grace, sei que as coisas estão muito difíceis agora, mas elas vão melhorar. Às vezes, a gente demora para encontrar um amigo especial, mas você vai encontrar. Puxa, acho que só fui ter uma amiga de verdade mesmo depois do ensino médio”. Ela estava certa. Eu encontrei minha amiga especial. Mas ninguém me avisou que eu ia matá-la.Dra. Thompson suspira:— Grace, nada do que aconteceu foi